A ESCOLA
Caminhei a oeste, como fora orientado. Havia um grande vazio naquela direção, apenas duas ou três casinhas e um prédio pequeno que eu examinei sem maiores problemas. E, finalmente, alcancei o último edifício. O que se ergueu diante de mim foi um prédio acinzentado de dois andares, incrivelmente comprido. A fachada sustentava apenas um indício do reboco que um dia estivera sobre as paredes. As plantas do jardim cresceram de forma desordenada durante os anos de abandono e mais lembravam uma pequena selva, mas não havia mais flores ou mesmo trepadeiras, apenas arbustos estranhos e contorcidos repletos de espinhos compridos e afiados.
Na rua deserta, encontrei mais ou menos uma dúzia de carros abandonados. Dois deles eram viaturas policiais. Um deles, para minha sorte, era um furgão blindado, aparentemente muito pesado, com uma lataria muito grossa e telas de aço protegendo os vidros. Aquele veículo não estava ali há muito tempo. O carro estava aberto. Verifiquei o painel do automóvel e percebi, satisfeito, que a chave ainda estava na ignição, o que indicava que os passageiros do veículo não haviam pensado em ficar por ali muito tempo. Já deviam estar mortos, imaginei. A bateria do veículo ainda estava carregada, e o tanque permanecia quase pela metade. Era muita sorte. Vasculhei o automóvel e tomei para mim algumas granadas e uma escopeta solitária, abandonada no banco de trás. A outra viatura era um carro simples, não guardava armas e parecia estar ali há ainda menos tempo que o furgão. O motor ainda permanecia morno. Eu já tinha meu bilhete de saída, então tomei a chave, travei o carro e continuei minha busca.
Só precisei de um pouco de meu talento para arrombar a fechadura da porta principal do colégio. Uma nuvem de poeira escura se precipitou para fora do prédio, como que fugindo de algo. Uma brisa gelada bateu contra meu rosto. O cheiro de mofo e abandono era muito forte ali, mas não chegava a ser tão intenso quanto nos outros prédios. No saguão de entrada, uma pichação gigantesca alertava os visitantes: “Fujam!”. Mas era apenas isso. O silêncio e a tranquilidade daquele lugar eram de arrepiar. Lugares conturbados nunca me assustaram de verdade; lugares tranquilos é que sempre me apavoravam. E é incrível como as tempestades mais poderosas e arrasadoras do planeta nascem em águas onde não há uma única brisa. Por isso tal tranquilidade, em meio a todo aquele caos, não me parecia normal. Nem sangue, nem roupas sem corpos, nem a costumeira destruição. Apenas um pouco de bagunça, o que, aliás, parecia extremamente normal em uma escola. Vasculhei as salas do primeiro andar, mas não encontrei nada, exceto sujeira e teias de aranha. As janelas da grande maioria das salas permaneciam abertas, por isso o ar ali soprava gelado. Subi a escada que levava ao segundo andar preparado para o pior, mas nada aconteceu. No lado de cima, apenas o mesmo abandono.
Mas havia algo muito estranho naquele prédio. Depois de uma rápida análise do cenário, cheguei a uma conclusão, uma conclusão que me aturdiu imensamente: aquelas pobres crianças passaram um bom tempo de suas vidas recebendo lições nada convencionais naquele lugar. Aquilo nunca fora uma escola comum. O conteúdo lecionado não parecia normal: sobre as carteiras, livros escritos em línguas completamente estranhas, ilustrados com figuras bizarras da anatomia humana. Em alguns deles, encontrei fórmulas matemáticas muito diferentes das que vira em meus tempos de escola, além de operações aritméticas com resultados verdadeiramente inesperados. A tabela periódica exibia o triplo de elementos. Tudo aquilo era estranho demais. E havia ainda o globo terrestre enorme, que mostrava a terra oca e repleta de galerias subterrâneas. Folheei dois ou três cadernos e encontrei uma infinidade de citações que me pareceram fragmentos religiosos, mas certamente não haviam sido extraídos da bíblia. Os ensinamentos eram grotescos e estranhos e pareciam não fazer nenhum sentido. As máximas e preceitos, espalhados em cartazes pelas paredes do colégio, causaram-me um verdadeiro incômodo: "Quando as trevas ganharem forma, é preciso saber ouvi-las", "Os que flutuam no vazio conhecem novos caminhos ", "O conhecimento sobre os outros é mais valioso que qualquer ciência, mas é preciso compreender seus nomes". No quadro negro de uma das salas, uma inscrição marcada a giz:
As cavernas mais inferiores não são para a compreensão dos olhos que veem... Grandes buracos são cavados secretamente onde os poros da Terra deveriam bastar, e as coisas que deveriam rastejar aprendem a andar.
Do que se tratava aquilo tudo? Eu começava a formular uma hipótese: alguma seita estranha havia se instalado na cidade e doutrinado até mesmo as crianças, durante um bom tempo. Os pais sabiam de tudo, compactuaram com aquilo? Eu tinha a ligeira sensação de que sim. Era assustador demais. Mais que isso, não era uma religião comum. Por tudo que eu havia visto, ficava claro que se tratava muito mais de algum tipo esquecido de pseudociência do que de qualquer forma de espiritualidade. Apesar disso, o apelo a alguma forma estranha de poder oculto era constante.
O LIVRO
Eu não tinha mais tempo para refletir sobre todas aquelas bizarrices, então simplesmente segui em frente. Estourei mais uma porta. Era uma porta gigantesca, de duas folhas. Eu havia descoberto à biblioteca. O espaço era colossal, simplesmente desproporcional a todo o resto, um salão realmente monstruoso. A coisa tinha três andares e era maior do que todo o prédio parecia visto de fora, uma arquitetura simplesmente bizarra. As estantes eram altas e pesadas e se estendiam até se perder de vista. Uma biblioteca daquelas, em uma cidadezinha perdida no meio do nada, soava como algo completamente surreal. Eu observei aquele verdadeiro oceano de livros por um bom tempo, completamente boquiaberto, antes de prosseguir.
O que percebi de imediato, assim que desci as escadas, foi que quase todos os livros ali eram muito antigos. Milhares e milhares de exemplares espalhados por aquelas prateleiras de cedro altíssimas, naqueles corredores intermináveis, e não parecia haver ali nem um único volume que pudesse ser considerado normal, ao menos pelo que pude perceber: nenhum livro literário, nenhum livro didático, de qualquer disciplina conhecida, apenas um grande amontoado de livros realmente muito antigos. Tudo ali cheirava a papel podre e poeira. Não havia tempo para analisar a fundo o conteúdo daqueles livros, mas não eram obras pedagógicas, disso eu tinha certeza. Pelo menos, não continham o tipo de material didático mais comum. O que aquelas pessoas estavam fazendo com aquelas crianças? Era só nisso que eu conseguia pensar. Na última estante da biblioteca, encontrei ainda alguns rolos de pergaminho, protegidos por expositores de vidro. Aqueles pareciam realmente muito velhos.
Um livro, em especial, chamou minha atenção. Repousava sobre um pedestal cravado em uma espécie de altar, bem no centro da biblioteca. Uma capa estranha confeccionada com um tipo diferente de couro de tom marrom escuro protegia a obra. Aquele livro era velho, eu percebia, e fora escrito em alguma língua extinta há muito tempo. Nem o alfabeto era familiar. Eu o abri e dei de cara com o título, algo como “Os Mil Nomes Mortos”, percebi pela tradução em latim no rodapé da primeira página. Nas folhas enegrecidas, centenas de gravuras sobre as mais variadas formas de tortura já inventadas pelo homem: cruzes, fogueiras, caldeiras, cadeiras cheias de pontas afiadas, ganchos, navalhas, objetos em brasa e uma infinidade de coisas pontiagudas que serviam, certamente, para cortar, destroçar e dilacerar. Anotações naquela mesma língua diabólica descreviam a utilidade de cada objeto. Havia também imagens de seres deformados, amorfos e híbridos, todos verdadeiras bestas. Uma gravura, em especial, atraía muito a atenção. Era extremamente realista e aparentava ter sido desenhada a carvão. Mostrava uma mulher abraçada a uma criança pequena, protegendo-a de uma sombra que se projetava da chama de uma vela. Estavam realmente muito assustadas no desenho, a mãe e a criança. Mas o que diabos significaria tudo aquilo?
No centro do livro, a imagem que mais me impressionou. Aquela era tão perfeita que mais parecia ter sido esculpida na folha. Mostrava inúmeras galerias de pedra que desciam em espiral até um gigantesco precipício que aparentava simplesmente não ter fundo. Só havia uma frase naquela página. No rodapé, a tradução em latim, escrita a punho com algum tipo de tinta vermelha: “onde dorme o mais velho”, ou algo do tipo. Quem seria o mais velho, eu me perguntava, e percebi, no mesmo momento, que não queria saber a resposta.
Demorei para me libertar daquele livro. A coisa macabra tinha um grande poder de absorção, era diferente de qualquer coisa que eu tivesse visto neste mundo, mas não havia mais tempo para qualquer leitura. Eu precisava correr. O prédio todo se revelara completamente irrelevante em minha busca, então resolvi averiguar o lado de fora.
O CONFRONTO
Desci as escadas e estava prestes a partir, quando algo pesado golpeou minha nuca. Só a coronha de um fuzil poderia machucar tanto. Caí de joelhos, disposto a lutar, mas um chute violento atingiu em cheio meu estômago. Era um policial... De onde tinha saído, eu não fazia ida. Tratava-se de um sujeito baixo e muito forte, branco como leite, que parecia não ter um único pelo em todo corpo. E havia um segundo policial, percebi quando ele golpeou novamente minha nuca com a coronha do fuzil. Observei-o, bastante irritado. Aquele era alto, loiro e bem mais magro que o primeiro. Tinha a pinta e o corte de cabelo de um desses atores de novelas adolescentes, e eu seria capaz de apostar que era um tremendo presunçoso.
Ainda no chão, agarrei o pé do sujeito antes que ele percebesse e o arremessei o mais forte que pude. Ele caiu de costas, completamente paralisado. A pancada lhe roubara parte dos sentidos, mas ele não ficaria caído por muito tempo. O outro policial estava prestes a me chutar uma segunda vez, mas golpeei seu estômago com muita força. Ele caiu, completamente sem fôlego. Eu não tinha mais tempo a perder. Levantei o fuzil e o apontei. O sujeito mais alto soltou a arma, e os dois ergueram as mãos, completamente dominados. O problema, agora, era como imobilizar aqueles homens. Eu já refletia sobre isso, quando uma voz poderosa soou bem na minha nuca, acompanhada pelo estalo seco do carregador de uma escopeta.
—Fica frio aí!... Abaixa essa arma!...
Havia um terceiro policial, uma mulher, escoltando os outros. Espiei-a um tanto sem ângulo, por cima de meu ombro esquerdo. Ela estava realmente furiosa, ou pelo menos fingia muito bem. Eu estava bastante assustado agora. Mulheres sempre me assustaram: elas são impetuosas, corajosas e imprevisíveis. Nada no mundo me faria contrariar as ordens de uma mulher armada: era perigoso demais! Levantei as mãos e girei lentamente meu corpo a fim de observá-la nos olhos.
Era uma mulher muito bonita, embora o uniforme esquisito e largo da polícia escondesse parte da beleza. Tinha cabelos loiros, provavelmente compridos (não dava para ter certeza com aquele quepe), olhos claros e o corpo esguio e firme de quem puxa ferro pelo menos três vezes por semana. O braço esquerdo exibia uma tatuagem muito grande, que se estendia além da manga da camisa, uma espécie de tribal colorido ou algo do tipo. Na mão direita, outra tatuagem. Aquela era pequena, mas eu a reconhecia muito bem: era a tatuagem dos fuzileiros. A mulher era uma ex-soldado. Parecia bastante corajosa. Mais que isso, havia nos olhos daquela garota uma determinação que me obrigava a abaixar o rosto. Era a primeira vez em muito tempo que me via obrigado a desviar meu olhar.
—Escute... —disse eu. —Não estamos sozinhos aqui. Não sei se perceberam, mas há coisas muito perigosas lá fora. Precisamos...
—Cale a boca! —gritou o policial mais alto, massageando o pescoço. —O que fez com todas aquelas pessoas? Onde elas estão? O que fez com os corpos?
Não, minha aparência não ajudava. Algo nela gritava: "maníaco". Não havia como convencer aqueles homens de que eu era inocente. Eu ainda estava com as mãos levantadas, mas não estava disposto a entregar minhas armas. E, se a mulher parecia uma verdadeira profissional, o mesmo não se podia dizer de seus companheiros. O mais alto se aproximou para apanhar minhas armas, mas foi descuidado demais. A mulher deu cobertura, posicionando-se ao meu lado, de forma correta, mas não foi o suficiente. Quando o sujeito tocou a fivela da escopeta para arrancá-la de mim, girei meu corpo, saquei a pistola do coldre em minha perna e a apertei contra sua cabeça. Os outros entraram em pânico.
—Solte-o! —gritou a mulher.
—Nem pensar. —respondi.
—Não faça nenhuma bobagem!
—Prestem atenção... —tentei dizer, mas fui interrompido pelo estouro da escopeta do policial baixinho, que disparou, sabe lá Deus por que razão, um tiro de alerta. O tiro despedaçou o teto, arrancou o reboco. O som do disparo ecoou por todo o prédio como uma bomba.
Eu o excomunguei. Poucas vezes em minha vida fiquei tão furioso.
—Não devia ter feito isso, idiota! —afirmei, entre dentes.
—Por que não? —perguntou o homem, bastante confuso.
Eu congelei. Todos congelamos. Novamente aquele mesmo barulho de inseto. Aquele ruído me dava arrepios. Senti meu estômago dando voltas. Os policiais trocaram olhares assustados e esqueceram completamente de mim.
—Mas que bosta é essa? —perguntou o mais baixo deles, e caminhou alguns passos na direção do corredor escuro, de onde vinha o barulho. —Um grilo gigante?
Soltei o outro policial, que aquela altura já não lembrava que tinha uma arma apontada para própria cabeça, coloquei a pistola no coldre e apontei o fuzil para as sombras. Os outros fizeram o mesmo, sem saber exatamente por quê. Estávamos agora lado a lado, como velhos companheiros de guerra.
—Tem um deles aqui. —afirmei, num sussurro.
—Um o quê? —perguntou a mulher, num sussurro ainda mais baixo.
—Melhor rezar para não precisar descobrir. —respondi. —Precisamos sumir daqui, agora...
—E do que exatamente nós vamos fugir? —perguntou o mais baixo dos policiais, caminhado mais alguns passos na direção do corredor. O outro o seguiu e foi um pouco além. Eu tentei impedi-los, mas não me deram ouvidos. A garota tentou seguir os companheiros, mas eu a segurei com força pelo ombro. Só então lembrei que eles não sabiam nada sobre o olfato daquelas coisas. Eram alvos fáceis daquele jeito.
O corredor sombrio parecia interminável. O ruído continuava, mas era tão alto que se tornava impossível localizar a fonte com exatidão. O eco piorava tudo. Os dois policiais deram mais alguns passos pelo corredor, mas não conseguiam ver absolutamente nada naquela escuridão.
—Voltem aqui! —sussurrou a garota.
Eles não deram ouvidos. Na verdade, estavam assustados demais para prestar atenção em qualquer coisa.
—Eu não consigo ver nada. —afirmou o policial mais alto, compenetrado, enquanto dava mais um passo na direção das sombras. O último passo foi mortal.
Algo caiu do teto e agarrou o sujeito com tanta violência que eu fui capaz de ouvir seus ossos se partindo. Dentes pontiagudos se cravaram em sua carne, e um jorro de sangue esguichou em nossa direção. O sujeito gritava como um porco no abate. A última coisa que consegui distinguir foi sua face branca contorcida em uma carranca. A pinta de galã de novela já havia desaparecido àquela altura. A coisa o arrastou de volta para as trevas com muita velocidade. O último grito do sujeito soou alto na escuridão, mas foi abafado pelo ruído dos dentes atravessando os ossos. Então tudo se silenciou.
Se a mulher no hospital era assustadora, a criatura que emergira das sombras e voltara para elas era muito pior. Parecia ainda menos humana e era certamente muito mais forte, tão forte que o policial foi partido ao meio antes mesmo de pensar em reagir. Nós atiramos!... E atiramos mais!... Uma nuvem de poeira e cinza de concreto se ergueu no corredor, então continuamos a atirar. A munição chegou ao fim. Recarreguei o fuzil em meio segundo e continuei atento. O policial mais baixo estava em choque, com os olhos vidrados sobre a escuridão do corredor. Permanecia alguns metros a nossa frente e não tinha a menor chance.
—Caminhe lentamente para trás! —ordenei eu, a mulher. Ela obedeceu. —Seu amigo já está morto.
Apanhei uma granada e retirei o pino.
—Essas coisas são cegas durante o dia e um tanto surdas também. Então, quando a coisa surgir, corra como nunca correu na vida!
—Não dá pra correr disso! —afirmou a mulher, a ponto de chorar. Estava desesperada. Eu não podia culpá-la.
A criatura surgiu pela segunda vez, rápida como um raio, e saltou sobre o policial em choque, esmagando seu crânio com uma mordida poderosa. O homem ainda se debateu convulsivamente, mas desabou morto um segundo depois. A criatura rugiu. Era uma coisa realmente monstruosa, muito mais alta e inchada que um ser humano normal. O corpo deformado se curvava ao meio numa corcunda de dar medo. Sua pele era grossa e escura, parecia mais um tipo estranho de couro. E eu seria capaz de jurar que a coisa tinha até escamas. Foi tudo o que consegui perceber nos segundos em que pude enxergar seu vulto. Então joguei a granada no corredor o mais longe que consegui e esperei alguns segundos.
—Corra! —gritei.
A mulher me obedeceu e correu alucinadamente. A coisa nos observou com olhos flamejantes. Parecia não nos enxergar direito em meio a luz opaca do interior do colégio, como um sujeito estrábico que perdera seus óculos, mas eu sabia que, aquela altura, isso não faria muita diferença. A granada explodiu e atingiu a criatura com um impacto que teria estraçalhado um elefante, mas aquele ser amaldiçoado não parecia ferido e se ergueu ainda mais zangado. Apanhei o fuzil e atirei com vontade. A mulher fez o mesmo. Nada aconteceu. Os tiros eram insignificantes. Pior que isso, tive a clara sensação que, pelos disparos, a coisa conseguia nos localizar melhor.
Minha filha precisava de mim. Isso parecia cada vez mais evidente. Eu estava desesperado, e o fato de não conseguir ferir sequer uma daquelas coisas malditas me encheu de uma fúria alucinada. Saquei a faca e parti para cima da criatura asquerosa de peito limpo, como um maldito idiota. Cheguei a acreditar que poderia realmente fazer algo contra aquele ser diabólico, mas fui derrubado um segundo depois. Era como bater de frente com uma locomotiva. Não havia esperança. A coisa segurou meus braços com muita facilidade e escancarou uma boca descomunal, cheia de dentes pontiagudos. Gotas de uma saliva quente e pegajosa acertaram em cheio meu rosto e eram mais fedorentas do que entranhas podres. Tentei desesperadamente me soltar, mas não conseguia nem ao menos me mover. Estaria condenado, se estivesse sozinho.
A policial voltou a atirar, e um dos disparos pareceu incomodar a criatura quando atingiu um de seus olhos. Eu consegui me erguer e acertei três tiros a queima roupa com a escopeta. A coisa me golpeou com as costas de um das mãos e me lançou com força contra a parede. O impacto foi doloroso. A mulher esvaziou outro pente do fuzil. Eu fiz o mesmo. Não foi o suficiente. Aliás, tudo que fazíamos parecia apenas aumentar a fúria daquela coisa diabólica, que agora partia para cima da policial apavorada. A mulher tentou fugir, mas não conseguiu dar sequer dois passos. A criatura a derrubou e a arranhou com violência. A coitada gritou e se sacudiu como um animal ferido. A criatura só não arrancou sua cabeça porque eu voltei a disparar e chamei sua atenção.
Eu era o alvo agora. A coisa correu em minha direção. Tentei fugir, mas fui derrubado com a mesma facilidade da primeira vez. Em um movimento reflexo, cravei minha faca naqueles olhos brilhantes. A coisa gritou. Seu grito, daquela vez, tinha algo de humano. Eu puxei a faca com muita força, rasguei seu rosto de cima a baixo. Um jato de sangue negro e quente me acertou em cheio.
Eu a havia machucado de verdade agora. Ainda assim, não era o suficiente: a coisa rugiu e me mordeu. Seus dentes feriam como pregos em brasa. Gritei como um vira-lata acuado. Era impossível não gritar. Senti meu próprio sangue escorrendo e me percebi a ponto de desmaiar. Durante tudo aquilo, enfiei a faca naquela cabeça deformada tantas vezes que cheguei a perder a conta, mas foi inútil. A coisa continuava sobre mim e cravou as unhas em minha escápula. Eram afiadas como facas. Eu gritei ainda mais. Estaria morto agora, se a policial não tivesse sacado uma pistola e acertado mais alguns tiros certeiros. Aquela mulher atirava muito bem, muito melhor do que eu, mesmo ferida como estava e com as mãos tremendo. Num esforço desesperado, consegui me desprender, puxei minha última granada e a enfiei no buraco onde estivera um dos olhos da criatura, fazendo a coisa gritar de dor. Depois daquilo, eu ainda me arrastei pelo chão como um cão amedrontado, tentando escapar daquela criatura dos infernos e da iminente explosão. A policial soltou um grito alto e cheio de fúria para chamar a atenção da criatura e disparou um último tiro certeiro.
A granada explodiu. A cabeça da criatura foi aos ares, literalmente. Eu já me achava a uma boa distância. Ainda assim, a explosão foi forte o suficiente para me fazer rolar pelo chão como uma bolinha de gude. A mulher também foi arremessada longe. O estrondo afetou significativamente meus sentidos, e tudo a minha volta se diluiu em um clarão poderoso e em um estampido dos infernos que parecia não ter fim.
Demorei um pouco para me recompor da violência do impacto e do zumbido ensurdecedor da explosão, mas percebi que ainda estava relativamente bem. Só então me lembrei da criatura e o terror voltou a tomar conta de meu corpo. Com alguma dificuldade, lutando para me localizar, eu a encontrei. A coisa ainda estava de pé, no mesmo lugar. Sobre o corpo inumano, havia agora apenas um pequeno indício do que fora uma cabeça. A criatura desabou e ainda conseguiu se arrastar por alguns metros antes de morrer. Finalmente havia acabado. E era só uma daquelas coisas.
Eu continuei no chão, completamente sem forças. Estava bastante machucado. Minhas roupas ensanguentadas se apegavam ao meu corpo quase como uma segunda pele. Se fechasse os olhos, não os abriria novamente, então os mantive abertos e apenas observei a luz do sol através das janelas altas do primeiro andar. O brilho dourado do dia estava perdendo força. Foi o suficiente para me lembrar que eu não tinha muito tempo a perder. Ainda permaneci ali, paralisado, por alguns minutos, mas a ideia de que outra daquelas coisas poderia aparecer me encheu de força.
Finalmente consegui me levantar e prestei alguma atenção em mim mesmo: meu ombro esquerdo fora dilacerado, mas o calor daquela mordida infernal aparentemente havia cauterizado o ferimento. Procurei por meus companheiros de combate. Os dois policiais estavam irreconhecíveis, apenas um grande mosaico de sangue e membros soltos. Senti pena deles. Nunca fui um grande fã da polícia, preciso admitir, mas aqueles homens estavam ali para proteger pessoas. Não mereciam aquilo. A mulher também não estava nada bem. Tremia de forma convulsiva. Suas roupas estavam destruídas. Sua respiração era a mais pura descrição do desespero. Suas pupilas haviam se dilatado por completo. Seus ferimentos, ao contrário dos meus, jorravam sangue. Mais grave que isso, a garota parecia em estado de choque. A coitada era muito menor do que eu e, consequentemente, menos resistente. Além disso, foi a primeira a ser atacada de verdade e a criatura gastou alguns segundos a mais com ela que comigo. Isso explicava a gravidade de seu estado, se comparado ao meu, que já não era nada animador.
Peguei a garota no colo e, com alguma dificuldade, carreguei-a até a viatura blindada, no lado de fora do prédio, então a acomodei, o melhor que pude, sobre o chão gelado da carroceria do veículo. Alguns segundos depois, encontrei o kit de primeiros socorros e fiz o possível para estancar o sangramento. O resultado não foi muito animador. Quando abri suas roupas com a tesoura, para analisar melhor o ferimento, acabei soltando uma exclamação. A coisa estava feia. Os arranhões haviam rasgado pele e músculo, e eu tinha a nítida impressão de que haviam atingido alguns órgãos. Dava para ver até mesmo os ossos das costelas e de um dos braços. Voltei a pressionar os ferimentos.
—Está tão mal assim? —perguntou a mulher, com olhos cheios de dor e desespero. Senti muita pena, mas não dava para mentir. Não tínhamos tempo para isso.
—Muito mal. Realmente muito mal.
Ergui os olhos e observei o céu. O sol havia deslizado muito durante tudo aquilo. Não era animador. Eu precisava tomar uma decisão. Analisei mais atentamente a face da garota: era mais jovem do que parecia à primeira vista, tinha vinte e três anos ou pouco mais que isso. Seu rosto, eu não havia percebido antes, era salpicado de sardas. Seus cabelos loiros batiam na altura dos ombros, eu agora podia perceber, já que não havia nem sinal do quepe que ela usava antes do início do tiroteio. Suas pupilas não se contraíram mais, mesmo com a claridade do sol. Era um mal sinal. Ela estava em choque. Era só uma criança ferida. Não seria fácil para ela.
—Escute! —disse eu. —Você precisa prestar atenção no que eu vou dizer agora. Tudo bem?
—Tudo bem!
—Há uma caixa de primeiros socorros ao seu lado. Eu vou aplicar um analgésico forte em você. Mas seus cortes precisam de pontos. Você vai ter de suturá-los.
—Eu?... —resmungou ela, entre dentes. —Eu nem consigo me mover.
—Eu sei. Mas é preciso.
—Me leva para um hospital.
—Não há tempo. Você vai sangrar até morrer se tentarmos. O hospital mais próximo fica a quase meio dia de viagem. Não vamos chegar a tempo.
—Faça você! Suture! Eu aguento!
—Eu sei que aguenta, mas eu tenho de ir.
Os olhos dela se encheram de surpresa e revolta.
—Você vai me deixar aqui, seu desgraçado! Eu podia ter abandonado você lá dentro e não abandonei. Eu salvei sua vida!
—Eu sei. —afirmei, e tentei explicar a situação, mas ela não parava de me xingar.
—Minha filha! —eu gritei. —Ela está na cidade, em algum lugar.
Os olhos da garota se encheram de compreensão.
—Jesus!... E você faz alguma ideia de onde ela está.
—Não. Estou vasculhando a cidade desde a manhã, e não encontrei nada. Não sei nem por onde começar. Mas tenho de continuar procurando. Nós temos pouco mais de uma hora até o crepúsculo. Aquelas coisas vão aparecer com força depois que o sol morrer.
—O quê? Há mais delas nesta cidade?
—Dezenas, pelo menos, e eu seria capaz de apostar que centenas. E elas ficam muito mais agressivas à noite. Entendeu?
—Deus!... Isso parece um pesadelo.
—Hei! Entendeu?
—Entendi!
Eu abri a mala de primeiros socorros, preparei um sedativo e o apliquei na garota. Apliquei um em mim também. Meus ferimentos não estavam tão feios quantos os dela e a dor não era tão grande, mas atrapalhava bastante a movimentação.
—A sutura vai demorar umas duas horas. Eu não tenho esse tempo. Você vai precisar começar agora, ou vai morrer.
—Entendi!
—Você é destra?
—Sim.
—Bom. Seu braço direito não foi ferido, vai ficar mais fácil de suturar. Você entende de primeiros socorros?
—Fiz aquele curso idiota dos bombeiros. Fui obrigada.
—Bem parece que o curso não era tão idiota assim.
Ela sorriu e chorou ao mesmo tempo. Eu tirei meu relógio do pulso e coloquei ao lado dela.
—Fique de olho na hora. O sol se põe em torno das seis e meia. Graças a profundidade do vale, ele pode se por antes. Me espere aqui. Se eu não chegar até às seis e quinze, vá embora. Pise fundo. Deve ser tempo mais do que suficiente para fugir do vale.
—Eu não vou deixar vocês aqui.
—Se eu não voltar até seis e quinze, não vou estar vivo. Simplesmente vá! Prometa!
—Tudo bem, eu prometo.
—Se ouvir algum barulho, fique imóvel. E, aconteça o que acontecer, nem pense em dormir.
—O quê?
—Não durma, ou vai virar uma daquelas coisas! Entendeu?
—Não faz sentido.
—Eu sei, mas é assim que funciona. Entendeu?
—Entendi.
—Não durma!
—Entendi...