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O CEMITÉRIO

Fechei a porta lateral da viatura. Precisava agir mais rápido se quisesse salvar minha filha. Manquei até o meio da rua e analisei mais atentamente o cenário a minha volta. Não havia nada. O homem no bueiro havia dito que minha filha e o sujeito alto haviam passado por aquela estrada. Mas só havia a escola ali. Não fazia sentido. A não ser que houvesse outra coisa. Mas o quê.

Depois de um tempo, acabei percebendo uma grande cruz de concreto no fim daquela rua, quase um quilômetro à frente. Um cemitério, certamente. Era a única coisa ali, além da escola. Fazia sentido averiguar. Eu corri o mais rápido que consegui, cortei aquelas centenas de metros com alguma facilidade, mas acabei perdido outra vez diante daquele mar de sepulturas velhas. Os túmulos se estendiam, um a um, como feridas na terra. Eu não esperava tantos. A quantidade deles era absurda. E eram quase todos muito velhos, escuros e realmente muito sujos. Não havia muito que encontrar naqueles jazigos, eu tinha certeza, já que quase todos estavam selados pelo lado de fora, amarrados com correntes velhas ou chumbados com tijolos.

 

No meio do cemitério, deparei-me com uma capela velha, cravada em um terreno extremamente pegajoso, quase um charco. Era um lugar antigo. Explodi a porta do casebre: dentro dele, apenas duas fileiras de bancos e um púlpito destruído me encararam. O lugar estava prestes a desmoronar. Não havia nenhum sinal de vida ali.

 

Já no lado de fora, acabei pisando por acidente em algo pequeno, algo que se partiu sob o peso de meu sapato. Com a ponta dos dedos, arranquei o objeto do meio do lodo. Era um dos prendedores de cabelo de minha filha. Meu coração palpitou. Meu sangue ferveu. Eu estava no caminho certo. Ela havia deixado aquilo ali de propósito, eu tinha certeza. Mas para onde ir? Onde procurar? Observei todos aqueles túmulos velhos: o concreto encardido, as pedras cobertas de limo, a imensidão de cruzes apunhalando o ar. Quantos mortos se espalhando por aquele terreno pegajoso, nutrindo a terra podre e os vermes sob ela! Foi então que lembrei da frase estranha naquele livro: “Onde Dorme o Mais Velho!”. Valia a pena tentar.

 

Mas quem seria, afinal, o mais velho? Observei cada uma das catacumbas. Todas pareciam velhas. Eu não podia arrombar uma a uma, por isso analisei ainda mais atentamente a imensidão de cruzes e túmulos. Foi então que eu a vi: encravada em uma grande rocha como uma ferida profunda, a catacumba mais velha que alguém poderia encontrar. Os tijolos tinham se misturado à rocha de tal forma que era quase impossível distingui-los. O mesmo musgo verde se espalhava sobre tudo. A porta de metal já não passava de uma crosta de ferrugem. Estava entreaberta. Eu a arrebentei com facilidade. Mas havia me enganado novamente. Dentro daquele mausoléu gigante, apenas mais um jazigo velho e largo. Tratava-se de um túmulo escuro coberto por estranhas inscrições esculpidas na pedra. Eu reconhecia aquele alfabeto, era a mesma língua do livro na biblioteca. Seria obviamente exagero esperar uma passagem secreta ali, ainda assim arranjei um pedaço de madeira e o usei como alavanca para remover o tampão de mármore. A poeira que se ergueu era branca e densa e cheirava a séculos e a morte.

 

Eu havia descoberto um esqueleto. Era a coisa mais óbvia a se encontrar dentro de uma catacumba velha, alguém poderia afirmar, mas aquele não se parecia com nada que possa existir em outros sepulcros antigos espalhados por este mundo ainda mais antigo. Eu havia descoberto um esqueleto incrivelmente comprido e deformado. A coisa parecia ter uns cinco metros ou mais. Seus ossos eram inacreditavelmente grossos e densos. A cabeça era alta, meio pontuda e desproporcionalmente pequena em relação ao corpo. Os dedos pareciam adagas muito compridas. Não havia costelas. A coluna vertebral se alongava e se estendia em uma espécie de cauda muito comprida, na ponta da qual pendia um ferrão muito afiado. E a coisa não tinha pés. Mas tinha asas, um par de asas enormes, que se fechavam sobre o corpo e cobriam tudo como um verdadeiro cobertor. No fim, era como se alguém tivesse colocado no mesmo túmulo os ossos de uma daquelas serpentes gigantes pré-históricas, as asas de um pterodátilo e, só para finalizar, a cabeça e os braços de um ser humano que havia crescido demais. Seria cômico se a coisa toda não fosse de verdade. Mas era... Aquele esqueleto era real, e eu podia enxergar os pontos nos quais os ossos se encaixavam e se acoplavam. Imaginar como aquilo devia parecer quando estava vivo era de assustar.

 

A visão daquela coisa horrenda fez com que eu esquecesse, por alguns segundos, o motivo de estar ali. Eu estava perdendo meu tempo naquela sepultura. Aquele esqueleto era certamente velho, mas algo me dizia que ele estava longe de ser “o mais velho”. Mas o que mais havia para encontrar naquele cemitério? Aparentemente, nada. Eu trotei por aquelas avenidas mortas por um longo tempo, vaguei pelas ruas enlameadas até quase perder a esperança, mas não encontrava nada. Tudo era muito igual, muito desbotado, muito morto... O sol perdia sua força rapidamente. O tempo estava se esgotando. Eu precisava de um sinal.

 

Acabei pisando novamente em um dos prendedores de cabelo de Joseline. Estava ali, em uma daquelas ruas, bem no meio de duas fileiras de túmulos silenciosos. Eu segui em frente, observando o barro pegajoso do solo com muita atenção. Havia outro prendedor, um pouco mais à frente, quase no limite do cemitério.

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AS CAVERNAS

E as coisas ficavam cada vez mais estranhas. Eu me encontrava agora diante de uma grande fenda cravada no paredão rochoso que separava o vale da floresta, exatamente no limite da cidade. Uma espécie de túnel mergulhava na terra, a que profundidade eu não seria capaz de dizer. Era uma passagem para algum lugar desconhecido. Liguei minha lanterna, respirei fundo e entrei.

 

Daquele ponto em diante, tudo ficou ainda mais estranho. O fato é que mergulhei naquele túnel gigantesco, que se estendia por muitas centenas de metros. Encontrei lamparinas presas à parede e as acendi uma a uma. Aquele túnel largo desembocava em um tipo de câmara e dava lugar a uma infinidade de túneis mais longos e mais estreitos que mergulhavam ainda mais na escuridão da terra. Eu precisava escolher um deles, e escolhi vários, mas para onde quer que fosse me descobria sempre no mesmo lugar. Estava andando em círculos. Perdi minutos preciosos preso naquele labirinto subterrâneo. Foi quando senti uma corrente de ar e a segui. Um rato correu a minha frente. Era o primeiro animal que via naquela cidade.

 

Minutos depois, logo após perder o rato de vista, deparei-me com um trecho fortemente iluminado por lâmpadas fosforescentes. O brilho era infernal. Ali, debaixo da terra, encontrei quartos lacrados por espessas portas de aço. As rochas do subsolo funcionavam como paredes, mas alguém as havia plainado e pintado de branco. Eu via macas e equipamentos cirúrgicos por todos os lados. Aquilo lembrava um hospital, mas certamente não era o tipo de lugar para o qual alguém levaria um ente querido. Tudo ali se mostrava impecavelmente branco e limpo, é verdade, mas eu podia ver uma infinidade de equipamentos e instrumentos cortantes cuidadosamente guardados em armários embutidos nas paredes. Algumas daquelas coisas não se pareciam com nada que pudesse servir para curar alguém. Enfim, não era necessário muito esforço para perceber o tipo de coisa que acontecia por ali.

 

Abandonei aquele lugar, com um frio estranho na espinha, e entrei em um túnel mais largo. Aquele era bastante íngreme. Mergulhei algumas centenas de metros dentro da terra, acendi mais meia dúzia de lamparinas pelo caminho e acabei em uma sala espaçosa e muito alta escavada na rocha. As paredes ali eram úmidas e frias e gotejavam muito. Velas de formato estranho lançavam sobre tudo o que havia ali uma luz vermelha fosca e tremeluzente. Muitos livros e pergaminhos se amontoavam em prateleiras incrivelmente altas. Alguns deles pareciam estranhos, quase vivos. Talvez realmente fossem. Na verdade, tive a nítida impressão de que quatro ou cinco deles realmente se moverem quando entrei, embora aquilo pudesse ser apenas um efeito estranho provocado pelas chamas tremeluzentes.

 

Eu o encontrei ali, de pé, no meio de tudo aquilo. Era um homem verdadeiramente estranho. Folheava um pequeno livro de capa escura: os dedos longos deslizando pelas páginas delicadas como os tentáculos de um polvo acariciando um petisco. O velho no casarão havia dito que o homem media quase três metros, mas do meu ponto de vista ele parecia bem mais alto, quatro metros no mínimo, algo realmente absurdo. Mas era um homem tão comprido e tão magro que cheguei a cogitar se não seria possível derrubá-lo com um sopro. Seus membros superiores pareciam desproporcionalmente longos. E eu não via nenhum indício de pernas sob aquela veste negra pesada e comprida. O homem parecia reto, impressionantemente vertical, quase um risco feito à régua. Além disso, tinha uma aparência bastante frágil, mas algo me dizia que ele era a coisa mais perigosa naquela cidade. E era um ser humano diabólico e cruel, eu pude perceber assim que me aproximei. A frieza em seu rosto deixava isso bem claro. Seus olhos eram estreitos e pequenos. Na verdade, não passavam de círculos negros cravados em um rosto pálido e muito fino. Sua cabeça era minúscula se comparada ao resto do corpo, e sua testa era alta e anormalmente reta. Os cabelos não passavam de um vislumbre, fios negros, compridos e ralos que, na verdade, não pareciam realmente cabelos.

 

Apontei a pistola. Ele não me percebeu, ou pelo menos não se importou com a minha presença.

 

—Onde está minha filha? —perguntei.

 

O homem não moveu um único músculo. Continuou ali, lendo aquele livro idiota. Os olhos percorriam as páginas velhas como muita velocidade.

 

—Onde está minha filha? —gritei, completamente sem paciência.

 

O sujeito se limitou a levantar um dedo gigantesco, pedindo que eu esperasse. Suas unhas eram compridas, negras e incrivelmente afiadas. Pareciam capazes de cortar pedra. Depois de alguns segundos de muita paciência, o sujeito simplesmente recolocou o livro na prateleira, apanhou outro e começou a folheá-lo. Aquilo já estava me irritando de verdade. Pensei em esvaziar o pente. Matá-lo me faria muito bem. Contudo, algo me dizia que provocar uma coisa daquele tamanho não era uma boa ideia. 

 

—O que você fez com a minha filha?

 

—Sempre acreditei que o inferno clamava por almas atormentadas. —afirmou ele, mas não parecia estar falando comigo. Falava, na verdade, consigo mesmo, como alguém que ensaia um discurso diante de um espelho. Era um narcisista, eu podia perceber. —Eu estava errado! Os opostos se atraem. Sempre se atraíram. O mal clama por inocência, pela beleza.

 

—O que está acontecendo com esta cidade? —perguntei.

 

—Jogue sangue no mar, e os tubarões aparecerão. É isso o que está acontecendo com esta cidade.

 

Aquelas metáforas só serviam para me deixar ainda mais confuso.

 

—E o que isso significa?

 

—Um homem como você não compreenderia.

 

—Tente!

 

Ele fez uma pequena pausa para pensar, talvez para ensaiar, então prosseguiu:

 

—Deixe-me ser claro: eles estão aqui! Em minha inocência, cheguei a pensar que estavam aqui por nossa causa. Eu fui um tolo. Na verdade, eles sempre estiveram aqui! Mesmo antes de a primeira forma de vida deslizar por este planeta miserável. Estariam aqui mesmo se nós não existíssemos. Nós fomos jogados no meio de uma verdadeira guerra cósmica. Somos insignificantes.

 

—Está falando das coisas lá encima?

 

—Oh, não. —respondeu o homem, com um sorriso sarcástico nos lábios finos. —Se acha as marionetes assustadoras, precisa conhecer os ventríloquos.

 

Tentei compreender o significado exato daquelas palavras, mas o horror entorpeceu meus sentidos. Na verdade, não fazia a menor diferença. Minhas palavras soaram com mais intensidade:

 

—Não me importo com nada disso! Só vim buscar minha filha! Vou levá-la comigo!

 

—E o que lhe faz pensar que vou permitir isso?

 

Meus joelhos vacilaram. A voz dele continuava baixa e áspera, mas as palavras vibraram no ar carregadas de ameaça, estenderam-se diante de mim como garras afiadas. Por alguma razão, eu tinha a impressão de que aquele homem estranho poderia me partir ao meio com uma só mão se quisesse.

 

—Espere!... —ponderou ele, e gastou longos segundos refletindo sobre algo. —Vai ser interessante! Vamos ver como eles vão reagir!

 

—Quem? —eu perguntei.       

 

Ele não respondeu. Uma brisa repentina soprou naquele lugar tão fechado, eu não sabia como. As chamas das velas apenas vacilaram, algo muito sutil, mas confundiram meus sentidos por um breve instante.

 

—Continue descendo!... —ordenou o homem estranho.

 

Apenas suas palavras continuavam ali, vibrando na escuridão. Ele havia desaparecido. Eu havia tirado os olhos dele por meio segundo, juro que não passara de meio segundo, mas, quando dei por mim, estava sozinho ali. Só consegui distinguir o vulto comprido, que já escorregava pelas sombras de um dos túneis. Mas o eco pegajoso ainda vibrou no ar por algum tempo: “Descendo!... Descendo!... Descendo!...”.

 

Eu me percebi novamente sozinho, parado na escuridão, com os dois pés fincados na terra. Aquilo tudo era de assustar, mas eu precisava seguir em frente. No fim de mais um túnel, deparei-me com uma imensidão de galerias que se entrelaçavam e desciam interminavelmente. Independente de qual eu escolhesse, certamente acabaria no fundo de tudo aquilo. E eu realmente desci, desci mais do que achei que fosse possível, desci por muito e muito tempo, sem saber ao certo para onde estava indo, até que avistei o ponto onde todos os túneis se encontravam. O que vi ali foi algo espantoso.

 

A terra se abria, literalmente, em uma gigantesca caverna. As paredes ali eram largas e inacreditavelmente altas. No teto, várias centenas de metros acima, eu consegui avistar uma abertura através da qual era possível vislumbrar o céu azul. Um estreito raio de luz passava por ela. E havia o mais fascinante: uma espécie de construção, bem no meio de tudo aquilo. Tratava-se de um grande templo, todo esculpido em uma gigantesca rocha negra. Não havia paredes ou teto. Doze altares pequenos formavam um círculo perfeito em volta de um décimo terceiro altar, muito maior que os outros. Aquilo certamente me assustou. Mais o que me apavorou de verdade foi o fato de que o altar central parecia pender sobre o nada, como se alguma mão invisível sustentasse todo o seu peso. E, o pior, a coisa flutuava sobre um abismo gigantesco, que parecia simplesmente não ter fundo.

 

Doze passarelas estreitas de pedra ligavam os altares menores ao altar central. Caminhei quase trinta metros sobre uma delas, até alcançar a construção estranha que flutuava sobre o vazio. Durante a travessia, não tive medo de olhar para baixo, até porque não havia realmente nada para se olhar, apenas trevas. O som de meus passos deslizava pelo abismo, mas parecia não bater em lugar algum, como se a cratera realmente não tivesse fundo.

 

—Que lugar é esse? —perguntei, a mim mesmo num sussurro, e minha própria voz me respondeu diversas vezes: “lugar esse... lugar esse... lugar esse...”. Meus pés finalmente tocaram o altar central. Coloquei meus pés sobre o chão escuro, com medo de que a coisa pudesse desabar com meu peso, um medo idiota, obviamente. O altar central era incrivelmente massivo e denso. Tinha uns cinquenta metros de diâmetro ou mais. O chão ali era feito da mesma rocha negra que cobria toda a caverna, mas ela parecia mais grossa e mais espessa.

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O ABISMO

Eu havia alcançado meu destino. As crianças estavam ali, de pé, umas trinta delas, no mínimo. Formavam um círculo, com suas faces voltadas para o centro, onde encontrei a última criança. A última era uma menina de dez anos, de pele morena e cabelos cacheados. Era Joseline.

 

Minha filha estava diferente: a pele de seu rosto parecia esticada e cheia de rugas e sucos profundos, como se ela tivesse envelhecido muitas décadas naquelas poucas horas. Suas pupilas haviam se dilatado muito além do que parecia possível, e ela havia perdido realmente muito peso naquele pouco tempo. Seus lábios sussurravam alguma prece estranha, mas seus pensamentos não pareciam estar ali.

 

Observei as outras crianças. Elas estavam ainda piores que minha filha, todas elas, sem nenhuma exceção. Algumas delas haviam emagrecido até os ossos e envelhecido muito mais do que parecia possível. Um dos garotos, em especial, lembrava um cadáver de anos, e eu não conseguia acreditar que ele realmente estivesse vivo, mesmo vendo-o ali, de pé. Todas as crianças sussurravam aquela mesma prece, todas ao mesmo tempo, como se tivessem ensaiado aquilo por muito e muito tempo. Achavam-se em uma espécie de transe, ou algo pior, como se alguém tivesse arrancado suas almas.

 

—Joseline! —sussurrei.

 

Não houve resposta. Nem mesmo aquela prece idiota fora interrompida. Eu sacudi minha filha e voltei a chamá-la. Novamente, não houve resposta. Da terceira vez, eu a sacudi com mais força e gritei:

 

—Acorde! Joseline!

 

As crianças se calaram, todas ao mesmo tempo.

 

—Ela não está aqui. —respondeu Joseline.

 

A voz que saiu de sua boca era estranha, áspera e muito grave. Eu me afastei instintivamente, mas lutei para me controlar.

 

—O quê? —perguntei, para a coisa dentro de minha filha.

 

Os olhos de Joseline me observaram, mas não eram seus olhos, não de verdade. Havia desprezo e crueldade neles.

 

—Sua filha. —disse novamente aquela voz. —Ela não está aqui. Não no momento.

 

—Quem é você?

 

A coisa sorriu antes de responder, um sorriso gélido, sádico.

 

—Eu já tive muitos nomes, desde o início dos tempos, desde quando o universo não passava de um gigantesco cobertor de sombras. Eu sou o primeiro. Eu sou o mais velho.   

 

Então, ponderei, eu estava finalmente diante do chefe de tudo aquilo, ou fosse lá o que fosse. Respirei fundo e tomei coragem.

 

—Preciso de minha filha de volta!

 

—É impossível!

 

—Por quê?

 

—Por que ela ainda não cumpriu sua utilidade.

         —Utilidade?

         —Força... Vida... Ele está nascendo. E precisa de alimento, de bom alimento, como toda criança destinada à glória.

 

Eu tentava amarrar aquelas palavras, mas não conseguia. Nada daquilo fazia sentido. A coisa dentro de minha filha continuou falando:

 

—Eu tentei me reerguer, mas não fui capaz. Minha ferida foi profunda demais. Estou condenado. Não há mais esperança para mim. Mas há esperança para ele. Ele é a nossa esperança, tudo o que ainda nos resta.

Joseline ergueu os olhos para o céu. A coisa dentro dela parecia entusiasmada agora, quase emocionada.

 

—Veja meus antigos irmãos. Acharam que haviam me derrotado, que não haveria justiça para tamanha traição. Mas eu encontrei um jeito. Eu me sacrificarei, uma vez mais. —Os lábios de Joseline sorriram. —Eles não contavam com isso. Não, eles não podiam imaginar. Olhe para eles, escondidos entre as estrelas, amedrontados pelo poder que está se erguendo. Covardes e hipócritas. Escondam-se, meus irmão! Escondam-se enquanto puderem! Não há escapatória.

 

Eu não entendia uma só palavra e já não me importava com toda aquela esquisitice.

 

 

—Entregue minha filha, por favor! —implorei. —Nós nem deveríamos estar aqui. Foi um acidente.       

 

—Um acidente? Verdade? Será mesmo, Jonathan Stein.

 

Eu me afastei instintivamente, sem nem me dar conta. Então aquela coisa me conhecia. Como era possível?

 

—Você sabe meu nome?        

 

—Claro que sim, caro Jonathan. Ou, como era mesmo que seu velho tio Carlos o chamava? Jonazito, não é isso... Venha Jonazito, —disse a coisa dentro de minha filha, e sua voz soou extremamente parecida com a voz de meu falecido tio, mais nítida do que a voz que ecoava em minhas lembranças. Muito mais. —Vamos... O jogo está começando, Jonazito!... Ah, Tio Carlos, tio Carlos... —continuou a coisa dentro de minha filha, e sua voz já havia voltado ao normal. —Era um bom sujeito, seu tio, muito melhor que os chapados de seus pais, não é verdade? Uma pena o que aconteceu com ele, estourar os próprios miolos daquele jeito. Presenciar aquilo deve ter sido horrível. Todo aquele sangue. E você era pouco mais que uma criança.  Aquilo marcou você, não marcou, meu caro Jonathan? Quase tanto quanto aquela noite que você passou com aquela antiga professora, naquele acampamento de verão. Como era mesmo o nome dela, aquela com aquele rabo gostoso...? Ah, sim, Bianca. Professora Bianca... Por Trás Jonathan, por trás... —sussurrou a coisa dentro de minha filha, entre gemidos, e sua voz soava como o de minha antiga professora. —Assim... Assim... Assim... —A coisa gargalhou. —Você era safadinho, não era. Quantos anos você tinha, quatorze, talvez nem isso? E sua professora não era exatamente jovem. Você sempre foi um sujeito precoce, eu sei, mas aquilo foi quase um abuso. Aquilo marcou você, não marcou. Como algo podia ser tão bom e tão ruim ao mesmo tempo? Você se sentiu culpado, não foi? Só para você saber, sua professora não sentiu culpa alguma. Apenas um pouco de preocupação.

 

Eu encarava a coisa dentro de minha filha completamente perplexo. Não podia acreditar em tudo aquilo.  

 

—Por que está tão surpreso, caro Jonathan? Você sempre soube que algo o observava nas trevas, não é verdade? Você sempre sentiu. Era eu... Eu sempre estive lá. Eu lhe ofereci aquele primeiro comprimido, que você aceitou prontamente, naquele prédio abandonado. Eu lhe ofereci a arma, com a qual você deu seu primeiro disparo, em meio a todos aqueles depravados perniciosos que você considerava uma família. Eu estava lá quando você espancou aquele pobre coitado na quarta série, estava lá quando você fez sua primeira vítima, naquele estacionamento deserto. Pobre Jorge... Você era um só um garoto, é verdade, mas ele também era. E tinha tanta culpa por estar lá quanto você tinha.

 

Eu senti meu corpo estremecendo de cima a baixo. Aquelas lembranças me destruíam, todas elas. Ele as estava escolhendo, arrancando-as de lugares sombrios de meu passado.

 

—Acredite, meu caro, não existem acidentes nesta cidade. Eu escolhi cada um de vocês, eu trouxe todos para cá.

 

—Tudo bem, fique comigo então, mas liberte minha filha, por favor!

 

—Acho que você entendeu errado, meu caro. Eu não quero nada com você. Você não me serve. Com o perdão da metáfora, você não passa do esterco nojento sobre o qual uma bela e preciosa rosa floresceu. É sua filha que me interessa.

 

—Por quê?

 

—É difícil explicar. —respondeu a coisa dentro de minha filha, antes de fechar os olhos. —Você deveria vê-la aqui embaixo, na escuridão. A forma como ela brilha... É esplêndido! Fazia tempo que não testemunhava tamanha luz. Ela está ajudando a reunir os outros, as almas abandonadas que vagam pela escuridão deste universo tão vasto. Aqueles que nunca tiveram um corpo. Muitos deles já estão aqui. Mas muitos outros ainda estão chegando. As outras crianças também ajudaram, também fizeram a parte delas, mas sua filha. Sua filha é especial. Eu a aguardava com muita ansiedade. Em breve, todos nos reuniremos. Então estaremos completos novamente. É por isso que não posso entregar sua filha. Agora, se me der licença...

 

A coisa dentro de minha filha voltou a sussurrar aquela prece idiota. As outras crianças a acompanharam. O desdém era demais. Eu fui tomado por uma fúria intensa.

 

—Devolva minha filha, sua aberração. —gritei. —Devolva Joseline, ou...

 

A coisa dentro de Joseline gargalhou. As outras crianças a acompanharam, todas ao mesmo tempo.

 

—Não! –respondeu a coisa malévola, sem me dar a menor atenção.

 

—Devolva minha filha! —ordenei, buscando as palavras do fundo da minha alma e de meus pulmões. —Em nome de Deus!

 

Ele gargalhou. As crianças gargalharam, todas ao mesmo tempo, todas com a mesma voz.

 

—Em nome de Deus... Essa é nova... Acha que Deus está aqui, acha que ele se importa com esta cidade?

 

—Apareça, desgraçado!...  Saia do corpo da minha filha!...

 

A coisa dentro de minha filha gargalhou mais uma vez, com mais vontade. As crianças o acompanharam novamente, todas ao mesmo tempo. O cretino estava brincando comigo. Eu já não sabia o que fazer. Sacudi a criatura dentro de minha filha com mais força.

 

—Devolva minha filha!

 

—Devo admitir que você é uma figura. Ah, se você soubesse como é patético... Mas eu gosto de toda essa coragem. Você me convenceu. Quer sua filha? Então pegue!

O corpo de Joseline começou a tremer convulsivamente. O mesmo aconteceu às outras crianças. Segundos depois, minha filha começou a sangrar pelos olhos e pelo nariz. Eu não sabia o que fazer. As outras crianças começaram a se decompor diante dos meus olhos. Algumas pareciam estar até mesmo derretendo. Eu fui tomado por um desespero profundo.

 

—Pare com isso! —berrei. —Pare com isso, desgraçado!

 

Joseline ia acabar morta se aquilo continuasse, eu sabia. Então fiz a única coisa que podia fazer, a única coisa na qual sempre fui bom, e esbofeteei minha filha com força. Ela desabou. As outras crianças caíram no mesmo instante. Eu já estava arrependido, mas não podia voltar atrás. Um tapa como aquele poderia mandar um marmanjo para o hospital. Pelo menos minha filha havia parado de tremer e de sangrar. Eu a apanhei do chão, tirei seu cabelo do rosto e a analisei atentamente. Suas feições haviam voltado ao normal, ao menos em parte, apesar da mancha vermelha na maçã do rosto. As rugas ainda estavam ali. Eram irreversíveis, aparentemente.

 

—Joseline! —eu chamei.

 

Minha filha abriu as pálpebras trêmulas e levou uma das mãos ao rosto instintivamente.

—Acho que perdi um dente. —disse ela. —Obrigada, pai!

 

Eu a abracei com vontade. Senti vontade de permanecer ali por muito em muito tempo, até o raiar de um novo dia, mas não podíamos perder mais um único segundo. Eu coloquei minha filha de pé, firmei-a no chão e a analisei atentamente. Ela parecia melhor agora. As outras crianças estavam irreconhecíveis. Nenhuma parecia viva. Um dos meninos virou pó, literalmente.

 

—Como você está? —perguntei a Joseline. —Consegue andar?

 

—Acho que sim. Mas não vou a lugar nenhum.

 

—Por quê? —perguntei.

 

—Porque eles não vão deixar.

 

—Eles?

 

Um som estranho explodiu pelas sombras da caverna, inundou todas as galerias, todos os túneis. Era o som de algum instrumento musical, grave e ininterrupto. A terra toda tremia agora, um tremor leve mas perceptível, como um pequeno terremoto. Então surgiram as vozes, muitas delas: sussurros e gemidos de ódio e dor que quase fizeram meus ossos chocalharem. De tão numerosos, lembravam o barulho de uma cachoeira gigantesca.

 

Caminhei sem muita coragem até a borda do precipício e olhei para baixo. O que vi foi apavorante e fez meus pés recuarem sem que eu me desse conta. Sombras subiam pela escuridão como se escalassem um paredão íngreme. Não eram centenas, nem milhares, eram mais, muito mais, um número incalculável. Por alguma razão, pareciam furiosas. Algumas delas gritavam. Eram lentas e se moviam com muita dificuldade, como se estivessem emaranhadas em barbantes invisíveis ou sendo tragadas por uma força muito poderosa, mas nos alcançariam em muito pouco tempo.

 

—Vamos agora!

 

—Não, pai. —respondeu Joseline. —Você precisa fugir. Mas eles não vão me deixar partir. Não mais.

 

—Isso está fora de questão. —respondi, e apanhei minha filha nos braços. 

 

Corri o mais rápido que pude, atravessei a passarela e cheguei ao túnel. As sombras já estavam na superfície e avançavam: passaram pelo precipício como se houvesse algo sólido sob seus pés e aumentaram a velocidade. O abismo as tragava, eu pude perceber, como se não quisesse que aquelas coisas saíssem, mas elas se moviam ainda mais rápido agora, também com mais fúria.

 

Tentei acertá-las com um tiro, apenas para me certificar, mas era óbvio que os projéteis passaram por elas como se não existissem. Eram realmente apenas sombras, mas eu não estava disposto a descobrir o que aconteceria se elas nos alcançassem, por isso voltei a correr.

 

Joguei minha última granada no túnel quando chegamos a galeria principal. O teto desabou, e as pedras fecharam a passagem, mas as sombras avançaram como se não houvesse qualquer obstáculo.

 

Coloquei minha filha no chão e corremos ainda mais rápido. Nós nos movíamos com agilidade, mas aquelas coisas eram mais rápidas do que pareciam à primeira vista. Mais do que isso, elas não seguiam uma trajetória retilínea, não estavam sujeitas as leis da física como nós, e começaram a brotar das paredes e do chão. Em determinado momento, quase fomos cercados, mas escapamos por um fio.

 

Alcançamos o quarto com as celas pouco depois e continuamos subindo. Chegamos ao labirinto de túneis, depois ao túnel mais largo e finalmente conseguimos enxergar a luz do dia. Senti uma borrifada de ar frio em meu rosto quando emergimos da terra. As sombras chegaram à entrada da caverna, mas não se atreveram a enfrentar o dia e apenas permaneceram ali, desesperadas, gritando com fúria. A imagem era bizarra.

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O CREPÚSCULO

Nós seguimos em frente sem olhar para trás. Descemos a rua e corremos alucinadamente na direção da viatura. O que nos impelia agora era a luz do sol, que já começava a se diluir. Não conseguiríamos escapar se as coisas na cidade despertassem. Meio minuto depois, embarcamos na viatura. Eu girei a chave: o ronco estalado do motor soou alto e trouxe certo alívio, mas a morte se aproximava com velocidade. Esmaguei o acelerador e partimos.

 

O carro se mostrou pesado nos vinte primeiros metros, mas finalmente arrancou. Era um veículo muito mais rápido do que alguém poderia imaginar vendo seu tamanho, ainda assim estávamos lentos demais. As ruas permaneciam quase livres, e eu pude forçar o motor ao máximo. Estávamos a cem por hora e acelerando ainda mais, mas algo já me dizia que era um esforço inútil.

 

O sol agora não passava de uma tênue linha dourada no horizonte. A entrada da cidade estava perto. Arrebentei um carro destruído que trancava a avenida, e aceleramos mais uma vez. Uma curva!... Uma reta monstruosa!... Outra curva!... Um meio círculo entre dois prédios!... O sol desaparecia. Só a luz dourada sobrevivia em um último espasmo. Uma pequena reta!... Um atalho sobre um pequeno jardim!...

 

A última curva surgiu a nossa frente, e o gigante blindado a venceu com uma fúria selvagem. Ganhamos segundos preciosos em tudo aquilo, fizemos tudo o que estava a nosso alcance, mas não foi o suficiente. Por entre os prédios, no fim da estrada, avistei o portão de entrada da cidade. Meio segundo depois, porém, o sol morreu em nosso retrovisor. Fechei meus olhos instintivamente, tentando não perder a esperança, mas a noite havia chegado. Era o fim.

 

Algo muito forte atingiu o veículo, esmagando uma das laterais. Giramos várias vezes sobre o asfalto, rodamos, rodamos novamente, e eu já não sabia para onde estávamos indo. Outra daquelas coisas acertou o automóvel!... E mais outra!... E mais outra!... A cada batida, as chapas de aço se deformavam, como se fossem feitas de papelão. Então garras atravessaram a lataria do veículo. Arranhões começaram a abrir o metal blindado como se fosse uma lata de sardinha. Um rosto surgiu na pequena fresta recém aberta sobre o capô, e seus olhos eram vermelhos. Apertei o cano da espingarda contra aquele rosto pavoroso e disparei. A coisa gritou, mas continuou sobre o teto do automóvel. Havia dezenas deles ao nosso redor e muitos outros se aproximavam. O carro girou mais uma vez! E outra! Mais garras atravessaram o metal, e o capô estava a ponto de ser arrancado.

 

Eu estava à beira da loucura. Não, não era mais uma simples loucura, era algo pior, uma sensação de abandono, de desolação, e a certeza de uma morte dolorosa.

 

—O que querem de nós? —perguntei, aos gritos, mas as coisas do lado de fora não responderam. Não duraríamos mais vinte segundos naquele estado.      

 

Eu já sangrava como nunca imaginei ser possível. Mal me dei conta de que minhas pernas estavam presas nas ferragens do automóvel. Em um esforço desesperado, esmaguei o acelerador. O carro se desprendeu e avançou mais alguns metros, mas fomos atingidos novamente.

 

Garras se cravaram mais uma vez na lataria, com mais força agora. As telas de metal que protegiam as janelas foram rompidas sem dificuldade. Uma mão gigantesca atravessou o vidro blindado e agarrou meu ombro machucado, fazendo meus ossos estalarem. Eu berrei de dor, ergui a pistola e disparei uns seis ou sete tiros certeiros até conseguir me desvencilhar. A coisa desistiu de mim, mas não faria a menor diferença se aquilo tudo continuasse. Acelerei novamente, mas o carro daquela vez não se moveu nem meio centímetro, apesar da fumaça escura dos pneus que se ergueu no lado de fora. Não havia esperança! Outras daquelas mãos me prenderam, duas ou três delas, passando pelas telas blindadas como se fossem feitas de plástico. Eu atirei, e atirei novamente. As garras me soltaram, não sem antes levar um bom pedaço da minha carne. Eu urrei de dor. E urrei novamente.

 

—O que querem de nós? —perguntei, e minha voz agora era puro desespero. —O que querem de nós?...

 

A resposta veio da garotinha ao meu lado.  

 

—Eu... Sou eu que eles querem!

 

A voz de minha filha soou mais adulta do que jamais havia soado. Chegou a ofuscar, por um momento, o grito das coisas do lado de fora. Minha filha estava ferida, mas parecia muito melhor do que eu, muito mais lúcida. Seu nariz sangrava, e um corte profundo se estendia sobre o supercílio esquerdo, mas não havia nenhum ferimento grave.

 

—Eles não me deixarão partir. —disse Joseline, antes de destravar a porta. Eu estava atônito demais para perceber o que ela estava prestes a fazer. —Só há uma forma de isso acabar.

 

—O quê?    

 

—Adeus, pai! —disse minha filha, antes de partir.

 

Tentei segurá-la, mas estava paralisado e não fui rápido o suficiente. Joseline mergulhou na escuridão da noite. As coisas pararam de atacar no mesmo instante e abriram caminho para que ela passasse, como se não pudessem fazer-lhe mal. Era como a mais sombria das noites diante da chama de uma pequenina vela. Minha filha continuou. Tentei agarrá-la, mas minhas pernas estavam cravadas no metal pontiagudo dos estilhaços do automóvel.

 

Ela se foi... Eu gritei, urrei, espumei, sacudi meu corpo e acabei me ferindo ainda mais. Um círculo daquelas criaturas diabólicas se formou em torno de Joseline. Um segundo depois, ela desapareceu.

 

Eu gritei. E gritei novamente. Era uma questão de tempo até aquelas coisas me atacarem novamente, eu sabia disso, então tomei a decisão mais difícil que já havia tomado em toda a minha vida: acelerei o carro e deixei para trás a pessoa que mais amei sobre a face da terra.

 

O tempo parecia passar mais devagar agora. Em meu peito, só restava um vazio assolador. O que eu havia feito? Tentei encontrar algum vestígio de minha filha no retrovisor do carro, mas só enxerguei escuridão. Estava acabado.

 

Segundos depois, o carro chegou ao limite da cidade. Atravessamos o portão e continuamos em frente.

 

—Já posso dormir agora? —perguntou a policial, muitos quilômetros depois. Eu havia esquecido completamente dela.

 

—Sim, você já pode dormir. —respondi, e chorei como uma criança abandonada.

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