
A Noite dos Cães Selvagens

(Baseado em uma história de família)
Foi numa noite fria e chuvosa de um inverno rigoroso. O temporal castigava o barro escuro das encostas pegajosas, enquanto raios fantasmagóricos explodiam pelos céus das campestres gigantescas. O matagal se agitava, golpeado por pesadas gotas de chuva. Plantações de milho e de fumo se estiam por incontáveis milhas, mesclando-se às árvores disformes da floresta escura. As rodas de madeira da velha carroça castigavam o cascalho negro da estrada em um ranger assustador. A solidão daquela madrugada me envolvia como se estivesse viva.
O lugar era conhecido popularmente como “a vila das almas”; e aquela era a madrugada das almas. Tamanha coincidência, associada aos uivos desconexos de cães nada pequenos em algum lugar não muito distante, causou-me uma pontada de assombro, para não dizer desespero. Haveria, então, alguma verdade naqueles boatos?
Finalmente, após intermináveis horas de solidão, encontrei ao longe uma casa grande e velha, com uma aparência por demais aconchegante. Senti-me tentado a pedir abrigo e um pouco de calor. Amarrei meu cavalo sob a proteção de um velho galpão e parti ao encontro de algum sinal de vida. O casarão ficava a mais de duzentos metros da estrada. Caminhei apressado, tremendo de frio, até alcançar a porta. Bati duas ou três vezes e aguardei um bom tempo sem qualquer resposta. Por fim, desistindo de encontrar ali viva alma, parti novamente para o portão, sem saber ao certo como enfrentar aquela chuva infernal. Avançava já o quarto ou quinto passo, quando uma voz rouca e velha inquiriu com considerável mau humor:
—O que quer aqui?
—Abrigo. —respondi, instintivamente, percebendo mais certeza em minha própria voz do que esperava ouvir.
A porta se abriu com um ranger longo e estridente.
Do outro lado, um velho magro e pálido, com feições enrugadas e ranzinzas, analisou-me de cima a baixo.
—Você é um ladrão? —perguntou ele.
—Acho que eu não bateria se fosse um. —respondi, tentando uma conversa animada, mas meu sorriso sem graça desapareceu diante do olhar fulminante do homem.
—Então o que faz por estas bandas a uma hora dessas? —perguntou ele, com olhos semicerrados de curiosidade.
—Venho da capital. –respondi —Meus pais moram na próxima fazenda.
—Ela fica a meio dia de viagem.
—Eu sei. Esperava encontrá-los ao amanhecer, mas não posso seguir viagem com essa chuva. E está frio demais aqui fora.
A desconfiança desapareceu do rosto do velho por um momento.
—Entre, ou vai congelar! —disse ele. —Mas vou logo lhe avisando: tenho duas filhas moças! Qualquer atrevimento...
—Oh, não! —retruquei, com as mãos levantadas, como que reagindo a um assalto. —Não faço esse tipo. Sou um homem decente.
—É bom. Sempre há lugar para um homem decente nesta casa.
Senti meus pés afundando no assoalho macio. A madeira velha estalou como que reclamando. O calor do fogão a lenha aqueceu meu corpo quase que instantaneamente. O velho lampião pregado em uma das paredes inundava o lugar com uma luz avermelhada fosca e tremeluzente. O ambiente simples e aconchegante reviveu as lembranças de minha infância, tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes.
—Obrigado! —agradeci.
—Clarice! —bradou o velho. —Clarice!
Segundos depois, uma senhora de traços delicados e cabelos brancos chegou à cozinha usando os trajes típicos daquela região (roupas largas e xale de lã sobre os ombros).
—O que foi...? –estava a perguntar, mas gelou com minha presença como se estivesse diante de uma assombração. –Trouxe visitas? Sabe que não podemos...
—Deixe de cerimônia! —ordenou o homem, em uma mescla de mau humor e afeição. —Traga uma toalha e roupas quentes para o senhor...
—Bassani. –respondi.
A mesma fagulha de desconfiança ressurgiu nos olhos do velho.
—Italiano? —perguntou.
—Não. Nasci no Brasil. Minha família é brasileira.
—Donde vem? —perguntou a mulher, analisando meu terno encharcado.
—Da guerra. —respondi, lutando contra as lembranças que aquela palavra provocava.
Repentinamente, percebi certa afeição surgir na face do homem.
—Então você lutou contra os italianos?
—Exatamente.
—Matou muitos deles?
Eu gelei com a pergunta. Os velhos sons ressurgiram em minha mente: tiros, explosões, gritos, sangue...
—Perdi a conta. —respondi.
—Excelente! —retrucou o homem. —Realmente excelente!
O calor do fogão secou minhas roupas em menos de cinco minutos. Vesti-as aliviado. O café quente esperava por mim sobre a mesa da cozinha. O cheiro forte provocou um calafrio.
—Sirva-se! —ordenou o velho.
Agradeci. A coisa estava realmente quente e tinha o gosto forte de café caseiro, feito à velha maneira. Um gosto que os simples moradores das cidades grandes, com seus grãos refinados e embalagens a vácuo, jamais conhecerão.
—Então, vai rever seus pais? —perguntou a mulher.
Ambos me observavam cara a cara, do outro lado da pequena mesa. Senti-me envolvido por uma cortina de sensações. Aquelas pessoas se comportavam de maneira estranha. E não era só o jeito meio desconfiado meio acolhedor da roça. Havia alguma coisa a mais, algum tipo de segredo que eu não conseguia identificar.
—O que estão fazendo acordados? —perguntou uma bela moça, de uns dezessete anos, ao entrar na cozinha.
Tive a sensação de estar coberto com o capuz da morte tamanha sua expressão de assombro ao me ver.
—Um visitante? Sabem que ele pode se assustar!
—Com o quê? —perguntei, intrigado.
—Tolices. —respondeu o velho. —Essa é minha filha Susana.
Por um momento, tive a sensação de que o homem me indicara a moça, como que a forçando a um aperto de mãos indesejado. Fazia anos que eu não tocava uma pele tão macia.
—Olá! —disse ela, meio sem jeito.
—Olá! —respondi.
Pensei em beijar-lhe a mão, e a vontade de fazê-lo era quase irresistível, mas lembrei da ameaça do velho quando passei pela porta e mudei de ideia no mesmo instante.
—Vitória! Venha aqui! —bradou o homem.
Outra jovem, pouco mais nova mas igualmente bonita, juntou-se a nós. Olhou-me com a mesma desconfiança do restante da família.
—Quem é ele? —perguntou ela, ainda esfregando os olhos de sono.
—Um visitante. —respondeu a senhora, arcando as sobrancelhas como que pedindo sigilo.
Senti-me, repentinamente, um estorvo. Pensei até mesmo em me retirar, mas a lembrança das gotas frias atingindo meu corpo como agulhas afiadas me chumbou à cadeira.
—Tenho mais um filho. —afirmou o homem.
—Pai! —censurou a mais velha das irmãs.
—O quê? —retrucou o velho, meio irritado. –Só estou falando sobre seu irmão.
—Ele está em casa? –perguntei, com certa curiosidade, percebendo que chegava, enfim, ao centro do mistério.
—Não! —respondeu rapidamente a mulher, em um quase grito.
Olhei-a um tanto assustado.
—Ele está caçando. —afirmou o homem.
—Naquele temporal? —perguntei.
—Desde que voltou da guerra, Marcos não mais se importa com a chuva ou com o frio. —respondeu o velho. —É um grande rapaz. Certa vez, quando ainda era um moleque, encontrou uma grande cadela morta na floresta e adotou os cachorrinhos. Mais de uma dúzia, ao todo. Agora, os bichos o veem com uma afeição fantástica. Estão sempre juntos, no campo, na floresta. Os cães ficaram muito tristes quando meu filho partiu para a guerra. Uivavam por horas todas as noites. Mas, agora que Marcos voltou, estão muito felizes.
—Quando ele voltou? —perguntei.
—Há uns seis meses.
—Ele lutou na Itália?
—Sim.
—Campo de batalha ou esquadrilha?
—Campo de batalha. —afirmou o homem, notavelmente orgulhoso.
—Foram poucos os que escaparam ilesos. —afirmei, sem me dar conta.
A reação das mulheres foi mais silenciosa do que o esperado.
—Venha comigo! –disse o velho. —Quero lhe mostrar algumas fotos.
Ele me conduziu a uma pequena sala. Na parede, porta-retratos exibiam os membros da família em um clima bastante alegre, com direito a sanfonas e chimarrão. O rosto de um rapaz saltou-me aos olhos. Era certamente alguns anos mais jovem do que eu na época e não me parecia estranho. Mencionei o fato ao homem.
—Talvez tenham lutado no mesmo batalhão. —arriscou ele.
—Dificilmente. —respondi.
Preferi não mencionar que quase todos os membros de meu velho pelotão estavam mortos. O velho me indicou um dos sofás e se afundou em uma poltrona macia.
—Sabe... —disse ele, dando lugar, em seguida, a um profundo suspiro. —Meu filho não queria participar da guerra. Disse que não era nossa. Pensou em escapar, em se retirar do país para fugir da convocação.
—Também pensei em fazê-lo. —afirmei.
—Mas não o fez. Tomou coragem e lutou!
—Na verdade... —foi a minha vez de suspirar. –Não consegui escapar.
Lembrei-me de como os grandes soldados treinados (o verdadeiro exército brasileiro) escaparam da convocação e abarrotaram os navios cargueiros com jovens camponeses que não tinham para onde fugir. Ainda não compreendo como consegui sobreviver. Depois de tudo aquilo, disseram que fizemos a diferença, que salvamos o país, que contribuímos para um futuro melhor, mas eu só conseguia pensar nos meses que passei naquele lugar sujo e gelado, escorregando pelo lodo das trincheiras como um animal, torcendo para não pisar em uma mina e para que um morteiro cego não me encontrasse em uma das covas onde eu me escondia, tremendo de frio e de fome, junto a alguns de meus companheiros. Quando retornamos, fomos saudados como heróis de guerra, recebemos medalhas e brados de euforia, mas não demorou muito para que tomassem nossas armas como se fôssemos criminosos e nos relegassem ao esquecimento, tudo para contingenciar qualquer potencial risco à democracia. Hipócritas...
—Era realmente uma decisão difícil. –continuou o velho. —Mas eu convenci meu filho. Olhei nos olhos dele e disse que um homem de verdade jamais foge de suas responsabilidades, que a guerra pertencia ao mundo, e que todos contavam com sua coragem. É difícil, mas é necessário.
homem fez uma pequena pausa e apontou para o corredor, onde as três mulheres nos observavam caladas.
—Elas me culparam. Durante dias intermináveis, tive de enfrentar o ódio em seus olhos, a incerteza. Depois de algum tempo, também comecei a imaginar que meu filho jamais retornaria. Senti-me culpado, quase a ponto de explodir uma bala contra minha própria cabeça. Então, em uma noite fria e chuvosa como esta, meu filho entrou por aquela porta.
Por que, então, tamanho mistério? Analisei as faces a minha volta, buscando algum sinal que me ajudasse a compreender a situação, mas só encontrei mais dúvidas.
Repentinamente, o som de uma matilha de cães tornou-se cada vez mais próximo. Os bichos corriam, trotavam, latiam uns para os outros em algum tipo estranho de comunicação. Passavam a impressão de seguir alguém. Percebi, no mesmo instante, que eram os cães que eu ouvira há pouco na estrada. Pareciam realmente gigantescos.
—Parece que nosso filho chegou. —afirmou o velho, levantando-se num salto.
O homem caminhou até o corredor e desapareceu na escuridão da casa. Pouco tempo depois, eu ouvi uma conversa animada. Vinha do cômodo ao lado, uma segunda sala, pouco maior que a primeira. As mulheres me observavam com um semblante extremamente apreensivo. Contudo, eu percebia algo estranho: apenas a voz do velho chegava aos meus ouvidos.
—Pegou o quê? —perguntou ele, e gargalhou em seguida. —É, esses coelhos são realmente muito rápidos. O quê?... Encontrou uma coruja vermelha? Elas estão meio sumidas nos últimos anos... É, é verdade, os cachorros espantam os pumas. Aquelas feras podem ser grandes, mas ainda são apenas gatos.
Outra gargalhada.
—O que está acontecendo lá? —perguntei, intrigado, enquanto caminhava em direção ao cômodo.
A filha mais velha bloqueou meu caminho.
—Por favor, não entre ali!
—Por quê?
—Você pode se assustar.
—Com o quê?
—Por favor, escute minha irmã. —pediu a outra garota. —É muito assustador da primeira vez.
—Do que vocês estão falando?
Repentinamente, uma ideia passou por minha mente. Era a resposta. Muitos soldados sofreram com os efeitos da guerra. Em geral, os que não deixavam a própria vida no campo de batalha deixavam a sanidade, ou pelo menos partes de seus corpos. Era o estigma da batalha, que sobrevivia desde os tempos primitivos. E que fique claro que minas e granadas dilaceram e arrancam partes de um corpo com muito mais facilidade que um porrete. Os milênios de civilização serviram, em grande parte, para que os homens aprendessem a ferir uns aos outros de forma mais eficiente. Como eram mesmo as palavras daquele famoso texto? "Uma geração que ainda ia à escola à cavalo se encontrou perdida em uma paisagem em que nada permanecia inalterado, exceto as nuvens do céu; debaixo delas, em meio as torrentes e explosões, o frágil corpo humano". Algo assim. As palavras nos fazem lembrar de como somos pequenos, de como nossos corpos são frágeis. Mas nenhuma palavra poderia substituir a experiência de presenciar aquelas coisas. Nenhuma...
Agora, contudo, eu finalmente compreendia a preocupação das mulheres. O rapaz devia estar gravemente ferido. Que espécie de criatura estaria do outro lado daquela parede? Em que haveria um jovem e belo camponês se transformado?
—Sei que estão preocupadas comigo. —afirmei. —Mas já vi muitas coisas desse tipo. Coisas piores, na verda
—Tem certeza? —perguntou a moça mais velha, pensativa.
—Venha até aqui, Bassani! —pediu o velho. —Queira nos acompanhar na conversa e na cachaça!
A ideia me pareceu acolhedora: repousar em um sofá macio, conversar sobre lebres, pumas e caçadas até o sol raiar. Bicar uma branquinha para aquecer o corpo...
—Por que não? —perguntei. E parti ao encontro dos dois homens.
A segunda sala era iluminada apenas pela chama de um lampião e por algumas velas. O calor era mais intenso ali, graças às brasas que ainda queimavam na lareira velha. Apesar disso, havia naquele lugar uma brisa estranha, que atravessava até mesmo as paredes grossas de madeira. Do lado de fora, a tempestade agonizante redobrava seu vigor em um último esforço. Acompanhando os urros do vendaval que golpeava as paredes da casa com violência, soava um sibilar sufocado, que bem poderia ser apenas o pestanejar da chama de alguma das velas, mas que lembrava de forma espantosa uma voz sussurrada.
De imediato, assim que meus olhos cansados se adaptaram à luz fraca do ambiente, dei de cara com o rosto alegre do velho. O homem estava muito bem acomodado sobre uma poltrona grande e confortável, de frente para a porta, e sorria alegremente, sempre interrompido pela tosse persistente. Ao seu lado, o sofá de dois lugares permanecia vazio; à frente, o encosto de uma segunda poltrona bloqueava minha visão da criatura chamada “filho”.
—Venha cá Bassani! —ordenou o dono da casa, apontando para o sofá vazio e erguendo uma garrafa pela metade. —É das boas.
E eu chegava, enfim, ao tão apreensivo momento. Estava ansioso, embora me recusasse a aceitar. Caminhei ao lado da poltrona, preparando meu espírito para o choque da visão horrenda que em breve estaria diante de meus olhos.
Fui tomado por uma sensação estranha, um emaranhado de pena, remorso e medo. O velho sorria.
—Esse é meu filho Marcos. –afirmou ele, indicando a poltrona a sua frente, sobre a qual apenas a escuridão repousava. Ninguém na sala além de nós dois.
Que tipo de culpa podia ferir assim uma mente? Que tipo de dor ou desespero podia levar um homem a conversar com suas próprias lembranças, reflexos de um tempo que não mais existia? Só então me dei conta da medalha que repousava na parede da sala, junto aos retratos. Passou-me despercebida quando a observei, mas tratava-se de uma medalha de honra aos mortos. Era um presente aos pais quando nem mesmo os corpos de seus filhos podiam retornar. O pior que um ser humano poderia suportar. O rosto daquele rapaz me era familiar, embora só o tivesse visto uma vez, deitado sobre a terra úmida das trincheiras, com os braços e as pernas a pelo menos quinze metros do restante do corpo. Sim, eu agora o reconhecia, era ele.
Uma mente velha e exausta não sobreviveria ao choque que a realidade provocava. O filho fora lançado à morte graças a ele. Era uma realidade difícil de suportar. A voz rouca e cansada conversava com o jovem corajoso que um dia estivera ali. Apenas isso. Aquilo, inexplicavelmente, assustou-me mais do que qualquer imagem monstruosa que pudesse presenciar. “E se fosse eu?”, foi apenas nisso que consegui pensar.
Durante longos minutos, conversei com os dois homens e, por um momento, senti a presença da criança que um dia correra por aquela sala. Respondi às perguntas do velho e às de seu filho, que eu fingia ouvir. O pai era nosso intérprete.
—... Meu filho está lhe perguntando há quanto tempo não vê seus pais...
—Sete meses...
—... Meu filho perguntou se acha a Itália mais fria do que o Brasil?...
—O frio do Brasil faz tremer; o frio da Itália machuca...
—... O que acha da pergunta que meu filho lhe fez...?
—Perdoe-me, por favor! Meus ouvidos estão ruins ultimamente...
Permaneci ali, sentado na meia-escuridão da sala, fazendo companhia aos homens e à lembrança do que um dia fora um lar.
Abandonei-os por um momento. O velho continuava seu monólogo-diálogo, tão distraído com a própria mente que mal deu por minha falta. Na cozinha, as mulheres me observaram apreensivas, mas visivelmente mais tranquilas. Enfim, o objeto de tamanho medo fora revelado.
—Sinto muito. —foi tudo que consegui dizer.
—Nós também. —afirmou a mais velha das irmãs.
Só então me dei conta: as vozes, os olhares, o medo reprimido. Temiam as lembranças e a presença que jamais se dissiparia, jamais as deixaria, jamais iria embora, já que aquele era, inevitavelmente, seu lar. Permaneci alguns minutos em silêncio, até finalmente encontrar forças para erguer a cabeça.
—Preciso partir. —afirmei, ao perceber que o temporal havia enfim se dissipado.
—Não prefere ficar até o amanhecer? —perguntou a mulher.
—Não, obrigado. Só preciso me despedir de seu marido, se me permite.
A ideia de passar mais uma hora naquele lugar agora me apavorava.
—Acho que agora não há mais qualquer problema. –respondeu a mulher, dando de ombros. -
Ele gostou de você.
—É, eu também gostei dele. —afirmei, com sinceridade.
Poucos minutos haviam se passado, mas a sala escura estava agora gelada como a morte. O velho permanecia sobre a mesma poltrona, ainda sorrindo como um garoto. A porta da sala estava escancarada, e o movimento dos cães do lado de fora era notável. Moviam-se em círculos, como verdadeiros cães selvagens, e os ruídos que proferiam eram de estremecer os ossos. Lembravam lobos gigantescos, ou leões prontos para a caçada. Eram grandes e violentos, como verdadeiras bestas, e eu agora podia vê-los face a face. Seus olhos reluziam na escuridão da noite como labaredas de fogo. Seus rosnados seriam capazes de fazer a mais corajosa das criaturas bater em retirada. Mas o velho não parecia preocupado. Sorria como alguém que passara a noite em uma conversa animada.
—Só queria me despedir, senhor. —afirmei, estendendo minha mão.
O velho a apertou e, por um momento, pude sentir seu sangue quente, a batida serena e tranquila de suas veias.
—Foi um prazer, Bassani. Volte mais vezes para nos visitar.
—Será um prazer, senhor. —menti.
—Não vai se despedir de meu filho, Bassani? —perguntou o velho, meio irritado. —Ele falou com você.
—Oh, desculpe. É que ando meio surdo. Adeus, Marcos! –disse eu, acenando para a poltrona vazia.
—Está cego também? Não vê que Marcos está na porta?
—É claro, senhor! Perdoem-me!
Virando-me para a porta, cumprimentei o nada como se fosse algo. Apenas a brisa fria da madrugada me respondeu. Ali dentro, a solidão e as lembranças amargas; do lado de fora, a noite escura e os cães selvagens. Estavam cada vez mais agitados, animados. Algo os atraía para porta. Talvez a presença do dono, do menino que os criara desde filhotes como se fosse parte do bando. Eles precisavam dele, esperavam por ele. Como explicar aos cães? Como explicar ao pai?
—Adeus, Marcos! —disse eu, acenando para as lembranças que sempre estariam ali.
—Adeus! –bradou uma voz desconhecida, grave, antes que a porta se fechasse, por si só, diante dos meus olhos.
Meu coração disparou. Depois daquilo, apenas os uivos dos cães selvagens...
Fim!