A CIDADE
A descida até o vale levou mais ou menos vinte minutos. A pé, eu era muito mais lento. Mas a verdade era que eu me sentia disposto novamente, disposto a enfrentar o que quer que estivesse lá embaixo, e já conseguia até mesmo correr, apesar dos quase trinta quilos que carregava comigo.
Cheguei, finalmente, à entrada da cidade. Havia uma grande cerca de madeira e uma placa pequena de boas-vindas. O portão permanecia aberto, eu não fazia ideia desde quando. Atravessei-o com cuidado, com o fuzil em mãos e destravado. O ar naquele lugar era inacreditavelmente gelado, e um cheiro muito forte, quase primitivo, de relva e matéria orgânica erguia-se por todos os lados. Contudo, nada à primeira vista indicava o perigo que me aguardava do outro lado.
Mal dei o primeiro passo, porém, e uma lufada violenta e inesperada de vento deslizou pelo vale e me acertou em cheio. Era uma coincidência, eu tentei me convencer, mas não conseguia: o aspecto do vale, seu formato de cratera, a floresta densa que se estendia por milhas em todas as direções, tudo parecia afirmar que não havia coincidências naquele lugar.
A cidade, em si, era relativamente pequena, mas se revelou muito maior do que parecia vista de cima: havia ruas de asfalto, semáforos e até uma pequena avenida. Em volta do centro da cidade, as estradas asfaltadas davam lugar aos trechos lajotados e os prédios altos eram substituídos por construções mais baixas e simples que, aliás, pareciam bem mais antigas. Em trechos mais afastados do centro, casinhas padronizadas e muito bem construídas brotavam da terra e se estendiam, uma a uma, como pecinhas de dominó. Eram centenas delas. Tratava-se, enfim, de um vilarejo que fora construído e adaptado de forma bastante eficiente e confortável para três, talvez quatro mil habitantes. Eu levaria o dia todo para vasculhar tudo aquilo se não me apressasse.
Mal comecei minha busca e percebi a destruição. Não havia, naquela cidade, uma única flor viva, uma só janela que não estivesse com seus vidros esmigalhados, um único automóvel que não se encontrasse aniquilado. Mais do que isso, não havia uma só viva alma por ali, nem um mísero gato, nem mesmo um simples pássaro. Apesar da imensidão da floresta sufocantemente verde que cercava a cidade, tudo permanecia inacreditavelmente quieto, como se todos os animais, até mesmo os insetos, tivessem simplesmente fugido de medo.
A palavra que me veio à mente foi “Croatoan”. Não havia nada mais adequado, a não ser talvez “Abadoan”. E as duas palavras rimavam. Eu me benzi e segui em frente. Fazia já algumas décadas que não me benzia, ou me detinha em qualquer forma de prece. Achava que Deus, se existisse, não moveria um só dedo para ajudar um miserável como eu. Contudo, havia naquela cidade algo muito pior do que um ex-criminoso desprezível, violento e covarde, por isso resolvi arriscar. Eu precisava de toda ajuda que conseguisse, de qualquer modo, e não custava tentar uma reaproximação, por mais atrasada que fosse.
A partir daquele ponto, passei a me mover com muito cuidado. Nunca caminhava no meio das ruas ou ficava à vista por muito tempo. Vasculhei dois prédios grandes e umas vinte casas, até alcançar o centro. Tudo em vão. Nada além de móveis abandonados, muita sujeira e roupas espalhadas por todos os lados, como se todos os habitantes tivessem resolvido se mudar às pressas.
Vasculhei um terceiro prédio, também sem nenhum resultado. No prédio vizinho, o mesmo abandono. Aquele estava ainda mais destruído que os anteriores. Ao contrário dos outros, parecia ter sido um prédio residencial. A cada passo, eu esmagava cacos de vidro e restos de concreto. Abri cada uma das portas e arrombei, com o mínimo de barulho possível, as que estavam chaveadas. Nada. Nenhum vestígio de humanidade.
Ao abrir a porta de um dos apartamentos do último andar, porém, fui surpreendido por algo estranho, uma respiração ofegante, quase uma espécie de choro sufocado. Era uma voz fina. Parecia ecoar por todas as paredes e pelo teto. Quando vasculhei o lugar, porém, não encontrei nada. Não havia ninguém ali. Aquilo foi certamente estranho, mas não presenciei mais nada parecido e não tinha tempo a perder, então segui em frente. Ainda no mesmo prédio, subi todos os lances de escada, vasculhei todos os apartamentos, de todos os andares, e refiz o trajeto quando terminei. Nada. Foi quando resolvi checar o porão.
A porta estava apenas encostada. Mal a abri, e pude ouvir o ruído: respirações, sussurros e vozes desconexas. Havia outros sons ali, um verdadeiro caos de rugidos, rosnados e grunhidos ásperos, como se alguém tivesse aprisionado um bando de animais carnívoros naquele porão. E havia aquele outro ruído, muito mais assustador, o mesmo que eu ouvira na estrada, pouco antes de meu carro explodir, mais ou menos como o som de uma nuvem de insetos gigantes.
O lugar estava mergulhado em trevas, então optei pela lanterna. O que vi na escuridão não passava de sombras que lembravam vagamente formas humanas. As coisas estavam ali, todas de pé, amontoadas em alguma forma de transe. Eram dezenas delas. Os olhos brilhavam vermelhos na escuridão. Escondi a lanterna sob o casaco para enfraquecer o foco de luz e, contrariando qualquer decisão responsável, decide me aproximar. Aparentemente não havia mais ninguém ali, mas eu precisava ter certeza, então sussurrei o nome de minha filha. Minha voz soou mais alta do que eu havia esperado. Uma daquelas coisas resmungou, sacudiu a cabeça e fungou com violência, mas voltou a se acalmar em seguida. Eu prendi a respiração até a coisa voltar a dormir. Então resolvi abandonar o prédio.
Durante tudo aquilo, eu havia perdido completamente a noção do tempo, mas tinha uma vaga ideia de que gastara horas preciosas naquela pequena empreitada. Tudo em vão. O número de casas e prédios que ainda precisava explorar era dez vezes maior. Eu não podia continuar naquele ritmo. Precisava de uma direção. Mas qual?
Foi quando me deparei com um prédio branco-acinzentado de cinco andares. Os azulejos da fachada refletiam o sol de forma espantosa. Era certamente a maior construção da cidade. O letreiro na entrada piscava “hospital”. Havia eletricidade ali, de alguma forma, certamente algum tipo de gerador, embora eu, pessoalmente, não conseguisse distinguir nenhum. Se fora realmente um médico que levara minha filha, então nenhum lugar me parecia mais óbvio do que um hospital. Eu entrei.
O HOSPITAL
Se, visto da entrada, o prédio parecia inofensivo, do lado de dentro, o lugar se revelou um verdadeiro pandemônio. Macas, cadeiras de rodas e equipamentos médicos se espalhavam de forma caótica pelos corredores. Nem um furacão causaria tanta bagunça. As lâmpadas, na maioria, haviam estourado. O mesmo para as janelas. Cacos de vidro cobriam o chão. Uma quantidade absurda de sujeira e destroços se espalhavam por todos os cantos. E havia o sangue. Realmente muito sangue. Poças, manchas coaguladas e rastros que se estendiam por muitos metros. Em um dos corredores, encontrei a marca deixada por uma mão ensanguentada na parede: alguém que visivelmente tentara se segurar a uma das portas, mas fora arrastado com violência. O rastro daquela mão seguia, de forma surpreendentemente horizontal, por quase toda a parede, uns vinte metros ou mais, então desaparecia abruptamente. Senti pena da pessoa a quem pertencera aquela mão, fosse quem fosse.
O mais estranho era certamente as roupas: trajes e uniformes se espalhavam por todos os lados, o que me levava sempre à mesma pergunta: onde estariam os corpos? Eu só via sujeira e manchas de sangue. Nenhum paciente ou médico, vivo ou morto. Havia pelo menos duas dezenas de quartos em cada um dos três primeiros andares, e tudo parecia deserto. Como era possível, eu não sabia. Peguei a escada para o quarto andar, imaginando que já não encontraria nada naquele prédio. Quando cheguei ao topo, a surpresa: eu não estava sozinho...
O que era exatamente, na meia escuridão daquele lugar infernal, não consegui definir a princípio. O sol invadia sutilmente todo o andar, mas nenhuma lâmpada funcionava, por isso era difícil definir qualquer coisa. O que distingui, em um primeiro momento, foi apenas um vulto ajoelhado exatamente no meio do corredor. Levantei a pistola e segui lentamente, evitando fazer qualquer ruído. Meu dedo roçava sobre o gatilho. Dei alguns passos vacilantes, então parei, completamente atônito.
Analisei a cena mais atentamente. Meus olhos ainda se acostumavam à penumbra daquela parte do hospital, contudo eu agora conseguia discernir. Sim, era uma pessoa. Na verdade, eu agora percebia, era uma mulher. Uma mulher bastante jovem, o que supus pelo corpo esguio e firme e pelos cabelos longos e bastante negros. Estava ajoelhada, de costas para mim, virada para a janela, e seu corpo permanecia imóvel como uma estátua. Não se parecia nem um pouco com as coisas disformes que eu vira no porão do prédio vizinho. Mas isso foi tudo o que pude perceber a princípio.
Era uma paciente, ou ao menos se vestia como uma, com uma camisola azul suja cobrindo o corpo magro. Seus cabelos eram pura sujeira e pareciam bastante embaraçados. Meu primeiro pensamento foi que se tratava de uma sobrevivente, mas essa ideia desapareceu quando calculei tal probabilidade. Era mais provável que ela estivesse morta.
—Ei, moça! —chamei eu, num sussurro.
Silêncio! Eu agora estava perto o suficiente para perceber que a mulher parecia não respirar.
—Você está me ouvindo? —perguntei, entre dentes.
Nenhuma resposta. Então era isso: um cadáver. Suspirei desanimado e toquei a mulher com a ponta do fuzil, só para garantir que ela estava realmente morta.
Ela respondeu. A resposta foi um ruído grotesco, diferente de tudo que se poderia julgar humano. Novamente aquele mesmo som de inseto, que logo evoluiu para algo como o rosnado estalado de um crocodilo enorme à beira de um lago. O último ruído, excepcionalmente, soou acompanhado por um gemido grave e gutural, como se algum vestígio de consciência da mulher presa dentro daquela coisa gritasse por socorro. Eu congelei. Aquele som não apenas me apavorou, mas também fez meu estômago revirar. Havia algo de assustador nele, é verdade, mas também algo de muito nojento.
Precisei de um grande esforço para sair do transe no qual havia mergulhado. Levantei a arma e estava prestes a atirar, mas uma das lâmpadas do teto flamejou inesperadamente. No estado em que estava, aquilo foi o suficiente para me fazer saltar de medo. Eu perdi o foco, apenas por meio segundo, então a coisa que antes eu pensara ser uma mulher fugiu, desaparecendo na escuridão de um dos quartos.
Não, não foi a velocidade com que ela se movera que me apavorou, algo que, por si só, já era um absurdo. Foi o modo como aquela mulher correu que fez meus joelhos vacilarem. Quase caí de costas. Eu não descreveria aquilo como os movimentos de um inseto, pois nem mesmo insetos conseguiriam correr daquele jeito. Era algo grotesco, sujo, pegajoso como um bando de vermes. E não era só isso: os membros visivelmente se moveram para trás, mas o corpo disparou no sentido contrário, algo que não só impressionava, mas também desafiava as leis da física. E a coisa desapareceu em um piscar de olhos.
Agora, ali estava eu, no meio do corredor escuro, apontando minha pistola para o vento. Levei algum tempo para decidir qual seria a melhor arma para algo assim. Acabei optando pelo fuzil. Era um M-16 A2, resistente e poderoso, capaz de derrubar uma parede de concreto maciço com uma única rajada. Cresci acreditando que nada no mundo poderia resistir ao poder de uma arma como aquela, que ela me tornava imensamente poderoso, mas toda minha coragem havia derretido por completo no momento em que aquela coisa acordou. Mesmo antes de apertar o gatilho, eu já sabia que aquela arma não faria a menor diferença.
Prendendo o fôlego, examinei o quarto no qual a mulher entrara. Nada. Era o último do corredor. À frente, apenas a janela de vidro que me separava de uma queda de quatro andares. Alguns quartos tinham portas que os ligavam entre si, o que tornava ainda mais difícil acompanhar a mulher. Ainda pensei em seguir aquela coisa monstruosa, mas recobrei o juízo e percebi que acabaria morrendo se não desaparecesse dali.
Estava prestes a fugir daquele lugar infernal, mas outro ruído estranho ecoou pelo corredor. Aquele soava ainda mais potente. Uma imagem me veio à mente quase instintivamente: uma cigarra do tamanho de um cavalo. Seria a única coisa no mundo capaz de fazer um ruído como aquele. Até as paredes pareciam tremer. Aquela mulher estava bem atrás de mim. E estava perto. Perto demais!
Não era seguro permanecer de costas para uma coisa daquelas, então girei meu corpo lentamente. Meus pés se moveram quase em câmera lenta. Lá estava a mulher, magra como nunca, com seus cabelos negros despenteados e seu pijama de hospital que, visto de frente, não tinha qualquer sinal de azul, apenas um vermelho escuro, quase preto, de sangue coagulado. O mesmo sangue se espalhava pelo rosto e pelos cabelos, um sangue não de dias, e sim de anos. Seu rosto estava voltado para a luz do sol, que atravessava os vidros foscos da janela, de modo que eu agora podia vê-la por completo. Os olhos me fitavam com violência. Vistos sobre a claridade, não brilhavam como no escuro. Na verdade, não passavam de covas mortas inundadas de um vermelho escuro e sanguinolento. A cabeça da mulher, agora eu percebia, era desproporcionalmente maior que o corpo, e seus malares pareciam se recusar a caber em sua boca. A pele de seu rosto era escura e rugosa e se estendia sobre os ossos de forma estranha, como se alguém a tivesse arrancado e recolocado sobre a face sem muito cuidado.
Aquele ruído interminável de inseto finalmente chegou ao fim, então outro som ecoou pelo corredor quando a mulher simplesmente arreganhou a boca muito além do que um ser humano poderia fazer. Era um rugido múltiplo, o som de dezenas de animais, todos carnívoros. Eu não pude deixar de perceber os dentes pontiagudos. Gotas grossas e escuras de saliva explodiam contra o chão. Pareciam muito quentes. O som que veio a seguir foi um sibilar arrepiante, como o som de um réptil. Algo nele dizia “COMIDA!”. Eu prendi a respiração e levantei o fuzil. Caminhei para trás o máximo que pude. Acabei encurralado entre a coisa diabólica e a janela e, por razões óbvias, acabaria optando pela última.
Olhos vermelhos se estreitaram nas sombras, e a coisa disparou em minha direção. Era rápida demais. Tão rápida que seu movimento criava rastros no ar. Meu dedo indicador esmurrou o gatilho, e projéteis reluzentes cortaram o corredor a novecentos e setenta e cinco metros por segundo. De acordo com um velho manual de armas do qual me lembro muito bem, o “M-16 A2” têm um poder de parada capaz de frear um elefante em plena marcha com um único disparo. Mas a mulher parecia não conhecer o manual, ou pelo menos não se importava muito com ele. De qualquer maneira, os projéteis não surtiram nenhum efeito contra aquela coisa diabólica. Ela não se esquivou, não se feriu, não se intimidou, apenas continuou, invencível e veloz, em minha direção.
O velho instinto de sobrevivência soou acima do pavor que tomara meu corpo e, numa fração de segundo, lancei-me pesadamente contra a janela. Uma boca enorme se abriu e se fechou a poucos centímetros de meu rosto. Eu quase perdi minha cabeça.
Os vidros da janela se estilhaçaram. A claridade inesperada pareceu incomodar a mulher. Minhas costas explodiram contra o poste de metal do lado de fora. O toldo da sacada do segundo andar amenizou minha queda, o teto do caminhão destruído de sorvete amenizou minha queda e, por fim, o chão de concreto da calçada amenizou minha queda. Aquela manobra me havia custado umas cinco costelas, imaginei eu, assim que toquei o chão. Que alívio eu senti quando percebi que ainda estava inteiro. Só meu ombro direito estava realmente dolorido. Sempre fui um homem habituado a quedas, mas nada que tivesse feito até então se comparava com aquilo. Era sorte demais.
Recobrando a consciência do perigo, rolei instintivamente para baixo do caminhão de sorvete. Um segundo depois, pude ouvir um estrondo forte sobre o teto da cabine do caminhão. Era a coisa me seguindo. Se ela chegasse ao chão, eu certamente estaria morto. Mas ela permaneceu ali, em cima do caminhão abandonado, rosnando. Eu ainda tentava encontrar uma forma de escapar, quando uma voz baixa sussurrou em meu ouvido.
—Ei, você!... Por aqui!...
Por um momento, pensei que havia enlouquecido, mas a mesma voz voltou a soar em seguida.
—Por aqui!... Rápido!...
Não, eu não estava louco, pelo menos ainda não. De onde vinha aquela voz, era impossível dizer. Não vinha da minha esquerda, muito menos da minha direita e certamente não era a coisa sobre o caminhão. Então percebi: vinha do chão. Havia uma tampa de bueiro sob o caminhão. Eu estava bem em cima dela. Em uma manobra mais do que rápida, eu me virei e a ergui, então mergulhei, sem pensar duas vezes, nas sombras daquele duto. Fechei a tampa bem a tempo de ver os pés descalços da mulher diabólica tocarem o chão. Ela permaneceu ali, me procurando, por um bom tempo, então partiu.
Eu estava em segurança agora e pude respirar. Estava escuro ali, então resolvi acender a lanterna, mas a luz de uma tocha se acendeu antes disso.
—Olá! —sussurrou meu salvador.
Estava ali, encostado na parede, no canto daquele duto estreito. Era um homem bastante comum: magro, baixinho, com uma barriga saliente de cerveja. Seus óculos refletiam a luz avermelhada da chama. Suas roupas estavam sujas e rasgadas, mas ele não estava por ali há muito tempo, eu podia perceber.
—Como veio parar aqui? —perguntei.
—Estava me escondendo, e este lugar é um bom esconderijo.
—Estou atrás de minha filha. —afirmei.
—Estou atrás de minha esposa. —respondeu ele.
Eu o observei mais atentamente, ainda sem acreditar. Outro pobre coitado.
—Há quanto tempo ela desapareceu? —perguntei.
—Há uns três meses.
—Como? três meses?
—Minha esposa estava viajando a trabalho, de carro. Era agente de vendas de uma grande rede de supermercados. Numa noite muito chuvosa, ela acabou saindo da estrada. Não foi grave, só um pé quebrado e alguns arranhões. Ela mesma chamou a ambulância, pouco antes de me ligar. O paramédico disse que da rodovia até o hospital mais próximo levariam quase cinco horas a sul, mas tinham ouvido falar de uma cidade a oeste. Nós conversamos por cinco minutos ao telefone, estava tudo bem, então ela desligou. Suas últimas palavras foram: “Não se preocupe!”. Foi a última notícia que tive dela. Nos meses seguintes, eu pesquisei muito, averiguei folhetos, anúncios, reportagens... Acredite ou não, esta cidade nunca esteve no mapa, não é uma cidade oficial. Acabei descobrindo que os paramédicos também haviam desaparecido. Suas famílias também buscavam por informações. Eu vasculhei cada canto deste estado, durante meses, contratei dezenas de detetives, que também investigaram por meses, até que um deles desapareceu aqui. Eu enviei outro, que também desapareceu, então eu tive certeza. Reuni uma equipe de busca, e viemos todos para cá. Éramos doze quando chegamos aqui há quase uma semana. Agora sou apenas eu.
Meu queixo estava prestes a desabar.
—E como sobreviveu esse tempo todo?
—Não é muito difícil. —ele respondeu. Eu não podia acreditar. —Basta seguir algumas regras.
—Regras? —perguntei, deixando escapar um sorriso atônito.
—Graças a Deus, essas coisas são quase surdas e quase cegas durante o dia. Mas apenas durante o dia. Então não há a necessidade de sussurrar pelos cantos nem de ficar se escondendo. Mas elas sentem cheiro de gente a quilômetros. Temos de disfarçar nosso cheiro, mesmo durante o dia. Quando dormem, essas coisas são inofensivas, então nunca acorde uma delas como fez lá em cima. De dia, o sol machuca seus olhos, por isso elas não gostam de sair à rua. Também não gostam de qualquer forma de luz. Mas à noite tudo muda. Então, basta encharcar seu corpo com gasolina ou cloro ou qualquer outra coisa forte e se esconder muito bem à noite. Aconteça o que acontecer, não se mostre à noite. Nem mesmo se mova. Um único movimento, um único suspiro, e você está morto.
O sujeito caminhou até um canto escuro, apanhou um cantil e me estendeu.
—Tome! Use isso!
Era algum tipo de solvente. Eu me encharquei com aquilo, torcendo para que desse certo, também para que a tocha não me incendiasse.
—Você dormiu? —ele perguntou.
—O quê?
—Você dormiu na cidade?
—Não, eu dormi numa fazenda fora da cidade. Mas não tenho certeza se foi mesmo sono, acho que foi mais um desmaio. Por quê? Por que isso é relevante?
—Foi o sono que deixou aquelas pessoas daquele jeito.
Eu não acreditei. Soltei um suspiro sem querer.
—Não faz sentido.
—Não, realmente não faz. Mas é a verdade. Acredite. O sono deixa as pessoas daquele jeito. Eu vi acontecer com um dos membros da equipe que contratei. Vi o sujeito se transformar. Começa com pesadelos violentos, com ataques de pânico tão agudos que fazem os ossos do corpo estalar. Depois surge um sono profundo e catatônico. Então a pessoa entre em um tipo de transe, nem sono nem vigília, uma espécie de sonambulismo estranho. Quando despertam, já não são mais elas. A coisa toda dura apenas algumas horas. Mas tudo começa com o sono. Aconteça o que acontecer, nunca durma nesta cidade, nem sequer um cochilo, ou você está perdido.
—Está dizendo que está aqui há quase uma semana e não dormiu nenhuma vez?
—Eu aprendi a controlar. Mas... Sim, eu cochilei uma vez. Só uma vez.
Um vestígio daquele som de inseto surgiu no silêncio do esgoto. Por um momento, pensei que aquela mulher demoníaca tinha nos encontrado, mas percebi que o som vinha de dentro daquele homem estranho. Ele tirou os óculos, e seus olhos continuaram brilhando no escuro. Eu levantei o fuzil.
—Parado! —sussurrei.
—Não se preocupe comigo. Eu ainda sou eu. Por enquanto... Mas ele já está tentando entrar.
—Ele? —perguntei, e me afastei o quanto pude.
—É uma coisa perversa. E existem muitas delas, flutuando no escuro, em algum lugar.
—Não estou entendendo nada.
—Vai entender. Não se preocupe, vai entender.
O homem abriu a tampa do bueiro e apagou a tocha.
—Minha busca chegou ao fim. Eu procurei minha esposa por tanto tempo, mas foi você que a encontrou.
Demorei um pouco para perceber do que ele estava falando.
—Está dizendo que aquela coisa lá fora é a sua esposa?
Ele suspirou.
—E, dentro de algumas horas, vai acontecer o mesmo comigo. Não quero mais ficar aqui, agora que a encontrei. E não posso mais deixar esta cidade. Não assim. O homenzinho me encarou com seus olhos vermelhos brilhantes.
—Você têm duas pistolas. Haveria alguma chance de me emprestar uma?
Eu sabia exatamente para que ele precisava da arma. O pedido fez meus ossos estremecerem, mas não pude recusar.
—Está destravada. —eu afirmei, enquanto lhe estendia a arma. Nem me dei ao trabalho de perguntar se ele sabia usar uma daquelas. Era evidente que não. O sujeito devia ser um advogado, um comerciante, quem sabe um contador. Não estava habituado à violência de qualquer tipo, seu jeito indicava isso. —É só puxar o gatinho.
—Entendido. Obrigado!
—Dentro da boca. Nunca na testa, ou pode falhar.
Era difícil dizer aquilo. As palavras cortavam. O homenzinho apenas suspirou, aparentemente conformado.
—É bom você estar longe. Uma daquelas coisas pode aparecer por causa do barulho.
—Acho que você está certo. —respondi. Tentei dizer algo mais, algo consolador, mas as palavras se esvaíram por completo. Nunca fui muito bom com mentiras nem com enrolações. E não havia qualquer esperança para aquele sujeito, não naquela situação. Não havia nada a se dizer.
Nós trocamos um aperto de mãos sincero.
—Vi uma criança passar na noite passada, acompanhada por algo que eu não sei se era humano. —comentou ele. —Foram para oeste. Só há uma coisa relevante naquela direção, uma escola. Não sei se isso vai ajudar, mas lhe desejo sorte.
—Espero que ajude! Obrigado!
Deixei o bueiro e me escondi sob o caminhão até ter certeza de que não havia nada ali fora, então parti. O sujeito fechou a tampa do duto. Eu já havia caminhado uns duzentos metros quando ouvi o estouro da pistola. Fechei os olhos instintivamente. Aquele homem não merecia aquilo, eu sabia. Era uma boa pessoa, bem diferente de mim. Senti pena, mas estava terminado para ele. Para mim, estava apenas começando.