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O VEREDITO

 

O testemunho de Jonathan Stein chegou ao fim. Todos o observavam perplexos, enquanto ele caminhava novamente para o banco dos réus. A história era incrível. Nenhum dos jurados cogitou considerá-la verdadeira, é claro. Mesmo assim, era uma fábula muito bem construída, bastante convincente. Ou o sujeito era um completo maluco, ou mentia muito bem.

O promotor Oliver Dias já sorria, prevendo a vitória. Já o velho juiz Maximiliam Dorta permanecia num silêncio fantasmagórico. Estava exausto e visivelmente zangado. O que o réu desejaria afinal com toda aquela história, ele se perguntava. Talvez apenas ganhar um pouco de tempo, mas isso seria inútil de qualquer forma, porque, se tudo não passasse de uma grande mentira, a coisa toda acabaria muito mal para os envolvidos. Uma advogada de renome e um delegado de carreira, mentindo daquele jeito, em um julgamento acompanhado por boa parte da imprensa. Seria o fim de suas reputações. Isso sem falar em suas carreiras. Não fazia sentido. A não ser que tudo aquilo tivesse outro propósito. Mas qual?

 

—Pois bem, mais alguma surpresa? —perguntou o Juiz, à advogada.

 

Izy suspirou fundo, engoliu algo que se enroscava a sua garganta e respondeu:

 

—Já que o senhor perguntou, temos sim. Mais uma testemunha, na verdade.

 

—O quê? —perguntou o promotor, furioso. —Vocês não desistem, não é mesmo? Querem transformar este tribunal num circo. Isso não vai acontecer!

 

—Quem decide isso sou eu. —interveio o juiz.

 

—Por favor, meritíssimo, isso não pode continuar.

 

—Cale-se, homem! Não tente fazer o meu trabalho, por favor!

 

—É uma testemunha importante. —afirmou Izy. —E é nossa última. Eu juro! Também precisamos de autorização para exibir algumas filmagens.

 

—Será seu último pedido atendido, advogada. Depois disso, resolveremos o que vamos fazer. Se não provar suas histórias, eu mesmo abrirei um processo contra você por perjúrio. Entendido?

 

—Sim, senhor.

 

O juiz suspirou fundo, massageou a própria fronte e perguntou:

 

—E quem é essa última testemunha?

 

A advogada olhou para o fundo da sala do tribunal.

 

—Doutor Edmund Schneider.

 

Um homem alto e magro de pele clara e cabelos grisalhos caminhou até o banco das testemunhas e se acomodou. Tinha um quê de gênio. Também um quê de louco, é verdade. Além disso, o homem parecia um tanto desconfortável no banco das testemunhas. Aquilo tudo era tão desagradável para ele quanto fora para o delegado, era visível.

 

—Doutor, Schneider, o senhor tem alguma ligação com o réu? —perguntou a advogada.

 

—Não. —respondeu o homem, com sua voz rouca e baixa.

 

—Nunca o conheceu?

 

—Não.

 

—Tem certeza? Isso é importante para o júri.

 

—Sim, eu tenho.

 

—O senhor é o médico responsável pelo único hospital psiquiátrico da região onde o réu foi preso, não é verdade?

 

—Sim, é verdade. É o maior hospital psiquiátrico de todo o estado, na verdade.

 

—E não é verdade que, poucos dias após a prisão do réu, seu hospital recebeu uma mulher transferida do mesmo hospital onde o réu foi internado?

 

—Sim, nós recebemos.

 

—Meritíssimo —interveio o promotor. —não entendo a ligação disso com o julgamento.

 

—Nem eu. —admitiu o juiz. —Sra. Elizabete, esclareça-nos, por favor!

 

—Pois não, meritíssimo. Denise Keller, a mulher que o doutor Schneider recebeu em seu hospital, era a policial mencionada pelo réu em seu depoimento.

 

Os olhos do juiz e dos jurados se iluminaram.

 

—Quer dizer que ela está viva?

 

—Sim, meritíssimo. —respondeu o médico no banco das testemunhas. –Ela está viva, onde quer que esteja agora.

 

—Como assim?

 

—Ela fugiu do hospital sob condições bastante estranhas.

 

—Perfeito! —interveio o promotor, mais uma vez. —Eles encontram uma testemunha que poderia corroborar a história fantasiosa do réu e a perdem. Parece bastante suspeito.

 

A advogada ignorou o promotor e, calmamente, ligou o projetor do tribunal e inseriu uma fita na máquina. A imagem de um quarto branco, todo acolchoado, surgiu na tela em seguida. A advogada deixou o vídeo correr por alguns segundos e o pausou. A data e a hora da gravação apareciam em letras vermelhas no canto superior da tela. Era um vídeo de segurança, certamente, e a câmera apanhava o cômodo apertado de cima, o que dava ao lugar uma aparência um pouco maior do que na verdade tinha. Havia uma cama ali e apenas isso.

 

—Doutor, pode esclarecer ao júri o que estamos vendo? —perguntou a advogada.

 

—Sim, é claro. Esse é um dos quartos de segurança máxima de nossa instituição. Nem todos são tão fechados, mas os internos violentos ou com tendências violentas precisam ser isolados às vezes.

 

—Pode esclarecer a razão da câmera?

 

—É uma câmera de vigilância. Todos os quartos de segurança máxima de nossa instituição têm uma dessas. Muitos de nossos internos tentam se ferir, por isso precisamos vigiá-los sem que eles percebam. A câmera fica no teto, oculta. Esse é o quarto no qual a policial ficou internada por dois dias.

 

A advogada avançou a gravação. No filme, dois enfermeiros altos e fortes arrastavam uma mulher loira de cabelo comprido presa em uma camisa de força para dentro do quarto. A garota estava evidentemente agitada, tremia, gritava e rangia os dentes.

 

—Tire-o de mim! —implorava ela. Sua voz era puro desespero. —Por favor, tire-o de mim!

 

No filme, os enfermeiros a prenderam à cama com muita dificuldade e partiram. A advogada voltou a pausar o vídeo e perguntou:

 

—Essa é a mulher, a policial?

 

—Sim, é ela. —respondeu o médico

 

—Ela estava em choque?

 

—No começo, achamos que sim. Ela estava bastante ferida, física e mentalmente. Apresentava cortes profundos pelo corpo. Pelo que nos consta, já chegou ao hospital com os ferimentos suturados, ela mesma deve ter se costurado. É algo doloroso e difícil de imaginar. Achávamos que ela havia enlouquecido pelo choque. Mas então coisas estranhas começaram a acontecer.

 

—Coisas estranhas? —perguntou o juiz. —Que tipo de coisas?

 

—Veja o senhor mesmo. —respondeu o médico.

 

A advogada voltou a avançar o filme. Durante mais de vinte minutos, os jurados assistiram a mulher gritando, rosnando e espumando. Era uma sessão de tortura. Até que algo realmente inusitado aconteceu. Em um dos espasmos de fúria da mulher, sua sombra pareceu mudar de direção e então se projetar para fora do corpo, até que assumiu visivelmente uma posição diferente, como se tivesse se descolado da dona de alguma forma. E a coisa ficou ali, de pé, na parede, apenas observando a mulher sobre a cama.

Os olhos do juiz se encheram de surpresa. Uma cascata de interjeições se espalhou pelo tribunal do júri.

 

—Saia de perto de mim! —gritou a mulher, para a própria sombra. —Sai de perto mim!

 

O que veio a seguir foi ainda mais perturbador: a sombra simplesmente se despregou da parede e caminhou até sua dona, com um corpo visivelmente sólido, embora ainda fosse apenas uma sombra.

 

A mulher gritou ainda mais, se contorceu ainda mais. A sombra parou ao seu lado e sussurrou palavras desconhecidas em seu ouvido, então a mulher se acalmou instantaneamente e adormeceu segundos depois. Sem dizer mais nada, a sombra retornou a seu lugar original e voltou a ser apenas uma sombra.

 

Minutos depois, um enfermeiro retornou ao quarto, aparentemente sem perceber o que havia acontecido, aplicou uma injeção na mulher, soltou seus braços e partiu.

 

A advogada acelerou o filme. Horas se passaram na filmagem sem que nada aparentemente acontecesse. Em determinado momento, a mulher se sentou na cama, mas ainda parecia adormecida, como um autêntico sonâmbulo, e ficou daquele jeito por horas a fio. Os dois enfermeiros voltaram a entrar no quarto, mas pareciam bastante assustados agora: examinaram atentamente a mulher, depois as paredes, depois a mulher novamente. Horas depois, o homem que estava sentado no banco das testemunhas apareceu na filmagem, examinou a paciente com uma série de instrumentos estranhos e também partiu. Quase vinte horas haviam se passado na filmagem agora, e a mulher não movera um só músculo desde que despertara.

 

Repentinamente, porém, ela se colocou de pé. Não fizera qualquer esforço para aquilo, como se uma mão invisível a alçasse no ar e então a soltasse delicadamente. Seus olhos ganharam um estranho brilho avermelhado. A mulher caminhou até a saída, e bastaram três socos para que a porta de aço do quarto se arrebentasse, literalmente. A mulher se agachou, como um animal, e partiu. Antes de partir, ela ainda olhou para cima, direto para a câmera, como se tivesse percebido que estava sendo espionada.

 

A advogada desligou o filme. Todos permaneceram em silêncio por algum tempo, até que o juiz saiu do transe no qual parecia ter mergulhado e observou atentamente a testemunha antes de perguntar.

 

—A garota está solta, em algum lugar, neste momento?

 

—Sim. Pelo que sei, ela pode estar aí fora.

 

A ideia obviamente não trazia muita tranquilidade. O médico continuou.

 

—E ela é perigosa. Quando fugiu, um de nossos seguranças tentou contê-la. O pobre coitado acabou bastante ferido.

 

Mais uma vez, um longo silêncio se estendeu pelo tribunal, até que o juiz Maximilan Dorta, mais por dever do que por vontade, fez a única coisa que poderia fazer num caso como aqueles:

 

—Muito bem, este julgamento está suspenso até segunda ordem, até que a história do réu seja averiguada.

 

—Isso é um absurdo, meritíssimo. —gritou o promotor. —É óbvio que esse homem está mentindo, que esse vídeo é uma fraude.

 

—E por que eu mentiria? —perguntou o médico. —Por um homem que eu nem conheço?

 

—Isso é um ultraje! —berrou o promotor, com mais força. —Uma ofensa ao direito, à vítima.

 

—Ninguém foi absolvido ainda. —afirmou o juiz, calmamente. Parecia realmente cansado agora. —O vídeo, obviamente, será periciado. E eu vou pedir ao exército um batalhão especial para averiguar essa dita cidade. Se quiser, pode acompanhá-los na busca e repetir tudo o que acabou de dizer quando o julgamento recomeçar.

 

O promotor se calou e voltou a se sentar. O juiz observou atentamente o réu. O rosto do homem, por si só, já gritava “culpado!”. Contudo, de alguma forma, sua história havia convencido. Seus olhos, o juiz percebeu, eram os olhos de um homem ferido e amedrontado. E uma coisa que conseguia assustar a tal ponto um homem daquele tamanho merecia ser averiguada.

 

—Julgamento adiado! —berrou o juiz, depois de bater o martelo. —Retornamos em duas semanas, no mesmo horário. E que Deus nos abençoe!...

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A Fuga

 

Algumas horas depois, e Jonathan Stein já se encontrava novamente em sua cela suja e escura. Sua cama não tinha espaço para metade de seu corpo, por isso ele permanecia sentado, usando a parede úmida da prisão como encosto. O pijama alaranjado e largo, em seu corpo, parecia uma bermuda. Os botões da camisa extragrande não fechavam. Ele ficava ridículo daquele jeito, como um adolescente gordo que herdara as roupas do primo bonitinho, mas já não se importava com nada daquilo. Nada mais importava, não depois de tudo pelo que havia passado.

 

A luz do sol morria no horizonte e aquilo ainda o amedrontava. Mesmo sabendo que o perigo estava distante, ele ainda suava frio sempre que mais um dia se apagava. E havia todos aqueles ferimentos ainda não cicatrizados que não o deixavam esquecer aquela cidade. O lugar era seu destino, e ele precisaria voltar para lá, mais cedo ou mais tarde. Na verdade, seria muito em breve, embora ele ainda não soubesse disso.

Jonathan Stein fechou os olhos cansados, suspirou e tentou dissipar as más lembranças. Foi quando um gemido abafado soou no corredor, acompanhado pelo som característico de uma pancada forte. Na meia-escuridão da cela, ele se pôs de pé e se preparou para o pior, fosse o que fosse. Uma pessoa que ele conhecia muito bem se materializou diante das grades, como uma miragem do passado.

—Mirian? —perguntou ele, surpreso. —O que você fez, espancou o guarda?

A ex-mulher não respondeu. Aliás, seu olhar sombrio já respondia tudo. Ela não disse nada, apenas abriu a porta da cela com uma das chaves e arremessou uma sacola plástica sobre a cama.

—Vista-se! —ordenou ela, em um tom de voz que não poderia ser contrariado. —Você vem comigo!

—Para onde?

—Resgatar nossa filha.

Não era um pedido.

Ele pensou em explicar: não tinha armado um julgamento pitoresco como aquele só para ser absolvido. Aquilo tudo era para arranjar ajuda. Não podia voltar até lá sozinho. Estava assustado demais, machucado demais. Mas aqueles olhos verdes cheios de fúria e mágoa aniquilavam qualquer argumento. Não queria decepcioná-la novamente. Nem podia cogitar tal possibilidade. No fim, ele apenas apanhou a sacola, e partiu.

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EM ALGUM LUGAR

 

A água do riacho ainda estava morna, mas já começava a esfriar. Fora um dia fabulosamente quente, é verdade, mas a noite já se aproximava, e a temperatura ali, no meio de toda aquela relva e de todas aquelas árvores, caía muito rápido. Uma brisa fresca soprava na floresta, agitando sutilmente as folhas e os arbustos.

O barulho da pequena cachoeira acariciava os ouvidos como uma declaração de amor, e o canto dos pássaros era ainda melhor. A garota ruiva suspirou, estendida sobre a toalha, o biquíni vermelho deixando à mostra a pele dourada e boa parte do corpo esguio e macio. A amiga loira, sentada a seu lado, era mais gordinha e escondia a barriguinha branca com uma camiseta de algodão larga, mas era tão bonita quanto a colega, talvez mais. Outra garota loira, de cabelos curtos, acabava de emergir da água. Era a mais velha ali, e a única no grupo de adolescentes que já passava dos dezoito anos. Sua camiseta encharcada se apegava ao corpo firme tornando visíveis os mínimos detalhes, até mesmo a cor dos mamilos, arrancando olhares gulosos do rapaz loiro sentado sobre uma pedra escorregadia. Mas era na menina ruiva que a garota molhada estava interessada.

—A água está uma delícia. —afirmou ela. —Você devia entrar, Helena.

—Não mesmo. —respondeu a outra. —Está muito bom aqui, no sol.

A garota na água sorriu e teria mastigado a colega se seus olhos tivessem dentes. O rapaz loiro não se importava com o fato de a amiga de colégio estar tarando sua namorada. Acreditava, ingenuamente, que estava mais perto de sexo a três do que já estivera na vida. Outro garoto, mais magro, mais sério e menos descolado que o colega rico e musculoso, deu alguns passos na direção da floresta e analisou atentamente a mata.

—As árvores estão definitivamente diferentes. —afirmou ele. —Eu estou dizendo, elas estão diferentes.

—É a terceira vez que você diz isso hoje. —retrucou a garota sobre a toalha. —Não faz sentido.

—Sim, eu sei. Mas é verdade.

—As árvores não iriam mudar de uma semana para a outra só para você, gato. —afirmou a garota na água, e quase devorou o garoto negro com os olhos, da mesma forma que fizera com a garota deitada sobre a toalha. Era difícil decidir qual deles era melhor.

O garoto loiro encarou o colega com certa inveja, também certo ódio, e começou a brincar com o revólver que escondia no bolso. O amigo negro era um ferrado, não tinha dinheiro nem carro e trabalhava como um cavalo em um restaurante no centro da cidade, mas tinha algo com as mulheres que ele mesmo nunca teria: charme. Aquilo era irritante. Ele era melhor do que o outro, muito melhor, sabia disso, embora ninguém percebesse.

O garoto negro voltou para junto do grupo e se sentou.

—Sabe que não pode andar com isso, não sabe? —perguntou ele, ao amigo loiro, apontando para o revólver.

—Meu pai é o capitão da cidade. –respondeu o outro. —O capitão… Sabe o que isso significa?

—Que você é filho do capitão.

As meninas riram. O rapaz loiro tentou esconder toda a raiva, que apenas crescia mais e mais durante todos aqueles anos de amizade. Aquela era outra habilidade do amigo menos abastado, fazer as mulheres sorrirem. Quanto a ele, aparentemente, sua única grande habilidade com as mulheres era entediá-las.

—Não... —respondeu ele, ao amigo. —Significa que eu posso fazer o que quiser. Até mesmo andar armado.

—Se você diz.

O rapaz loiro se levantou para ficar mais alto e apontou o revolver para a cabeça do colega. Queria encontrar medo nos olhos do outro garoto, apenas um vestígio seria suficiente, mas falhou. Ainda assim permaneceu ali, persistentemente. O garoto negro era seu amigo, seu melhor amigo na verdade, mas era inferior, uma criatura sem direitos, e precisava aprender. As garotas observavam a cena preocupadas.

—Cuidado com isso, Rambo. —disse o garoto negro, por trás de um sorriso de vitória. —Ou vai acabar atirando no próprio pé.

As garotas sorriram mais uma vez, agora com mais gosto. O rapaz loiro corou e abaixou a arma. Até sua própria namorada riu dele daquela vez.

—Você devia ser um comediante, Willian. —disse ele, ao colega.

—Eu cresci no meio de pessoas que não hesitariam em puxar o gatilho, Frank. Então, desculpe se você não me assusta.

Houve um instante de silêncio, então o garoto negro escorregou pelo chão liso e sentou ao lado da menina loira. A garota era tímida, mas gostava dele, ele sabia. Ele também gostava dela, mas tinha medo, um medo infantil e preconceituoso de feri-la de alguma forma, com sua origem, com sua cor. Não queria se importar com isso, realmente não queria, mas era seu carma. Já a garota tinha outro problema, achava-se inferior a todas as outras mulheres sobre a face da terra, uma bobagem ainda maior, alimentada por seus quilinhos a mais. De qualquer forma, o garoto era bonito demais, forte demais, seguro demais, e aquilo também dava medo.

—Você está quieta hoje. —afirmou o rapaz.

—Eu não sou de falar muito. —respondeu a garota. –Nunca fui. Você sabe disso.

—Sim, eu sei. E você é perfeita assim.

A garota corou. No horizonte, o dia morria lentamente.

—Escute… —disse ele, tentando imaginar o que uma garota incrível como aquela gostaria de fazer nos finais de semana. —Eu estava pensando se você não gostaria de… 

O rapaz gelou. O assunto morreu em seus lábios.

Que raio de barulho era aquele? Era um som de inseto, de um inseto definitivamente muito grande. Mas o que, sobre a face da terra, faria um barulho daqueles? Sem o menor aviso prévio, todos os pássaros da floresta dispararam para leste, uma verdadeira revoada, chegaram a escurecer o fim de tarde por alguns segundos. Outros animais também fugiam, mas eram mais lentos. Uma cobra passou ao lado das meninas, fazendo-as gritar, mas partiu sem fazer qualquer mal.

 

Todos se levantaram. A garota loira saiu da água e apanhou uma toalha. O mesmo barulho de inseto surgiu em outro lugar, depois em outro. Eles estavam cercados, fosse lá o que fosse aquilo.

—Mas que diabos é isso? —perguntou o rapaz loiro, a ninguém em especial.

—Não sei. —respondeu o garoto negro, observando a luz agonizante do sol no horizonte. Ouvira estórias naquelas redondezas, estórias que sempre acreditara serem pura invenção, no máximo lendas, mas começava a mudar de ideia. —Eu só sei que precisamos sair daqui agora.

—Não, eu não vou fugir desses idiotas. —respondeu o rapaz loiro, dando um tiro de alerta para o alto. —Isso é alguma pegadinha... De certeza...

—Pare com isso! —grunhiu sua namorada.

—Isso foi estupidez. —afirmou o rapaz negro.

—Está com medo também? Pode ir como as meninas.

Não era má ideia. O garoto negro apanhou o chaveiro do chão e correu para o carro. As garotas o acompanharam. Em segundos, já haviam embarcado e estavam prontos para partir, mas o rapaz loiro realmente não tinha nenhum senso de perigo e apenas permaneceu ali, com a arma em punho, no meio da clareira.

—Já chega, idiotas! Meu pai é o comandante da cidade! O comandante… Vão embora agora, ou eu vou atirar!

A luz do dia se apagava em seus últimos esforços. Um par de olhos vermelhos surgiu na escuridão da mata.

—Vamos agora! —berrou o garoto negro, na porta do carro. —Agora!...

—Não seja bobo. —respondeu o rapaz loiro, e apontou a arma para a coisa na floresta. —É só um idiota tentando nos assustar. Ele está morto, e ainda não sabe...

O sol finalmente se apagou. Mais olhos brilhantes surgiram na escuridão e se aproximaram. O som de insetos evoluiu para algo muito pior. O garoto loiro chegou a ver bem a silhueta de uma daquelas coisas antes que a escuridão reinasse absoluta, e seu corpo foi tomado por uma paralisia profunda. Seus joelhos chocalharam, e ele urinou na bermuda de banho. No carro, o garoto negro ligou o motor e fez uma manobra muito veloz de meia-volta.

—Vai!... Vai!... Vai!... —berravam as garotas.

Ele obedeceu e acelerou com vontade. Mas era tarde. O último raio de sol se apagou.

As coisas na floresta avançaram. O garoto loiro morreu antes mesmo de perceber o que o havia atingido. O camaro branco chegou a avançar algumas centenas de metros pela trilha, mas foi golpeado com força e rolou por uma encosta íngreme. As garotas gritaram, e gritaram mais. Até o garoto negro gritou. Estava realmente apavorado, pela primeira vez em toda a sua vida. Quando o carro parou de rolar, já estavam todos bastante feridos, mas o pior ainda estava por vir.

O rapaz negro saltou e tentou libertar as garotas, mas as coisas se aproximaram e ele precisou fugir como um covarde, abandonando as meninas apavoradas, incluindo sua grande futura paixão. As coisas se lançaram sobre o carro, e as três garotas morreram de forma violenta, sem a menor possibilidade de reação. O garoto correu às cegas, sem saber ao certo para onde ir. As coisas se espalharam pela mata e o seguiram.

Ele estava perdido, não havia dúvidas disso. Em segundos, as coisas o alcançaram e o cercaram. Não era possível enxergar mais que vultos disformes no meio de toda aquela escuridão, mas mesmo assim a aparência daquelas criaturas era aterradora. O garoto ainda pensou em escolher uma direção e correr como um louco, mas nem isso era possível agora. As coisas permaneciam a sua volta, ferozes e perigosas, mas passaram-se longos segundos e elas não atacaram, embora aparentemente desejassem muito fazê-lo.

—Venham, desgraçados! —berrou o garoto. —Venham me pegar!

Nada aconteceu, mas as coisas chegaram mais perto, e se aproximavam ainda mais. Na escuridão, o garoto viu unhas afiadas e muitos dentes, dentes tingidos de sangue. Uma morte horrível o aguardava. O medo deu lugar à angústia. Depois da angústia, veio o desespero. Ele desabou e começou a chorar.

—Por favor! —implorou, como um autêntico covarde. —Por favor, não me matem! Por favor, não!

 

—E o que você tem a nos oferecer? —perguntou uma voz áspera, grave, que soava como uma grande multidão: homens e mulheres, e a voz pálida de uma criança ao fundo. —O que pode nos ofertar, em lugar de sua alma?

Uma forma brilhante se ergueu na escuridão. O garoto não podia acreditar: era uma criatura poderosa, luminosa, ofuscante como o sol do meio-dia. Seus pés nem tocavam o chão. As coisas na escuridão se afastaram, como que amedrontadas.

—Tudo! —respondeu o garoto, de joelhos, triste por tanta humilhação, mas feliz por ver diante de si uma saída. —Eu lhe ofereço tudo!

De onde saíra aquela resposta, ele não fazia ideia, mas sabia que era a resposta certa.

—Então levante-se! —ordenou a voz, que eram muitas vozes. —E contemple seu novo deus!

O garoto se ergueu na escuridão, contemplou a coisa gigantesca e ofuscante e abriu os braços, como que suplicando por perdão. Seus olhos se iluminaram e se encheram de um fogo estranho, que agora o queimava por dentro, como um verdadeiro milagre. Depois daquilo, só a luz ofuscante reinou absoluta, dissolvendo por completo a escuridão perigosa da noite. Ele estava salvo!

 

Fim!

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