Primeira Parte
Capítulo 1
A primeira coisa que Amanda Greene viu, ao abrir os olhos, foi a face do homem que amava. Ele a observava, sentado ao lado da cama, no quarto frio e pouco acolhedor de hospital. Já não vestia o fardamento escuro surrado. Quanto tempo havia se passado: horas, dias? Já não importava. Ver seu rosto bonito, ali, sorrindo, era reconfortante.
—Oi! —disse ele.
—Oi! —ela tentou responder. Sua voz não foi além de um sussurro arranhado.
O noivo acariciou seu rosto com dedos delicados. Amanda sorriu. Um sorriso frágil, dolorido. Qualquer um que a visse sobre aquela cama, naquele momento, não saberia o quanto ela era bonita. Sua beleza ainda estava ali, além dos ferimentos e hematomas que lhe cobriam o rosto e se estendiam por todo o corpo.
–É bom falar com você. –disse o noivo.
Houve um ligeiro tremor em seus lábios, e então ele chorou. Um choro silencioso, curto. Amanda nunca o vira chorar. Era estranho, ela pensou, depois de tantos anos, ainda havia muito a aprender. Ele ficava ainda mais bonito quando chorava: os olhos castanhos se estreitavam, ganhavam um contorno avermelhado, o rosto ficava mais corado.
–Eu pensei que ia perder você. –disse ele, engolindo o choro a muito custo.
–Eu estou aqui agora. –ela respondeu. –Não vou a lugar algum.
Seus olhos se fecharam novamente. Era impossível mantê-los abertos por mais tempo.
Capítulo 2
Numa casa bonita, em um bairro de classe média da cidade, a aconchegante sala de estar permanecia mergulhada em sombras. No lado de fora, a escuridão da madrugada ganhava força. O relógio de parede tiquetaqueava. Seus ponteiros indicavam que um novo dia havia começado.
Um automóvel solitário atravessou a rua: seus faróis iluminaram, por um momento, uma série de retratos bem dispostos nas paredes e na estante da sala. No mais recente deles, via-se um casal de meia-idade, uma jovem de vinte e poucos anos e uma adolescente que mal chegara aos doze. Em outras imagens, a família toda aparecia em paisagens diversas: parques, um zoológico, uma praia de areias extremamente brancas, uma canoa em um lago azulado. No topo esquerdo da parede, via-se uma grande fotografia da jovem de vinte e poucos anos enfiada em um lindo vestido social vermelho e segurando um grande canudo de formatura ao lado de um rapaz bastante magro, visivelmente tímido e pouco mais baixo que ela. No topo da estante, uma fotografia da adolescente, pouco mais nova na época, enfiada em um elegante collant escuro, congelada em um impressionante movimento de dança: o pé direito firmemente apoiado no chão, a sapatilha esquerda golpeando o ar em um ângulo de cento e oitenta graus e as costas e o pescoço estendidos para trás em um espécie de S, numa clara demonstração de força e delicadeza. Antes que o brilho do farol se apagasse, mais daquelas cenas cotidianas se revelaram, cristalizadas em pequena infinidade de imagens alegres. Sempre a mesma família, sempre os mesmos sorrisos. Eram felizes, nos retratos. Então o carro solitário seguiu seu caminho, e só as sombras permaneceram na solidão pesada daquela casa.
O homem de meia-idade das fotografias permanecia sentado sobre uma das poltronas da sala. Estava ali há horas. Cumpria o mesmo ritual todas as noites: o silêncio, a solidão, as sombras. A alegria dos retratos havia desaparecido. Seus olhos fitavam um ponto qualquer no espaço, onde uma lembrança repousava. Envolvia um pequeno retrato com as duas mãos. Na imagem, a mesma jovem de vinte e poucos anos sorria. Tinha o rosto do pai: os mesmos olhos, o mesmo semblante penetrante. Os cabelos negros e encaracolados se esparramavam pelo pescoço e pelos ombros. A pele era de um branco translúcido. Um rosto de anjo, alguém lhe dissera uma vez, e ele teve de reconhecer. Era um rosto difícil de esquecer.
A porta do quarto se abriu. O homem ergueu os olhos: sua mulher o observava do último degrau da pequena escadaria de madeira que levava ao segundo andar. Não desceria mais para conversar. Nas primeiras noites sim, mas quase um ano se passara sem que a ferida se cicatrizasse, e ela tinha muita dor dentro de si para passar os dias suportando uma dor alheia. Estava cansada demais.
–Salvaram a garota. –ela se limitou a dizer, numa voz que estava em algum lugar entre um sussurro afetuoso e um grito de desabafo.
–Eu soube. –respondeu o marido.
–Isso é bom, não é? –perguntou ela, esperando, em vão, que uma fagulha se acendesse.
–Sim, isso é bom. –ele respondeu.
Ia dizer mais, mas alguma coisa o deteve, um sentimento estranho que esmagava seu peito. O que era aquilo? Dor? Não, era algo além, algo que anestesiava seu corpo, que desfigurava seus pensamentos, que lhe arrancava qualquer vontade.
Sua esposa, enfim, desistiu e partiu novamente para as sombras do quarto. Ela dormiria por uma ou duas horas. Não dormia mais que isso há quase um ano. Ele permaneceria ali, completamente desperto, em sua pseudoconsciência, enquanto, no andar de cima, enrolada em seu edredom, uma garotinha de doze anos e meio, de cabelos castanhos e encaracolados, agarrava-se a lembranças que não desejava perder. Quase um ano. Mais precisamente, dez meses e dezenove dias, e ela ainda não podia aceitar. Um corpo repousava em um caixão gelado, era verdade, mas onde estaria todo o resto? A menina fechou os olhos pesados. Queria que tudo voltasse a ser como antes, mas sabia que não havia retorno.
Capítulo 3
Era como ser tragada pelo oceano mais profundo, como se um abismo de águas turvas a cercasse por todos os lados. Não havia para onde fugir.
Mais uma vez, Amanda despertou sobre a cama gelada, no quarto frio e escuro de hospital. Novamente, encontrou Eric a seu lado. Pela expressão visivelmente mais tranquila do noivo, Amanda deduziu que as cosias deviam estar melhores. Então por que aquela falta de ar? Seus pulmões pareciam colados, e cada esforço para enchê-los fazia seu corpo estremecer de dor, uma dor aguda e intensa, que deslizava do topo da cabeça às unhas dos pés.
–Eles desligaram os aparelhos. –afirmou o noivo, visivelmente orgulhoso. –Você está respirando sozinha. Está melhorando.
A notícia de que só agora estava respirando sozinha a surpreendeu, mas explicava a falta de ar. Ainda assim, Amanda não se sentiu mais confortável.
–O médico disse que seria difícil no começo. –continuou o noivo. –Você precisa manter a calma.
E Amanda realmente tentou se acalmar, mas o ar insistia em fugir, e o desespero veio à tona com a força de uma erupção vulcânica. Ela começou a se sacudir violentamente. Foi um movimento involuntário, um sentimento de pânico difícil de controlar.
Eric desapareceu no corredor. Voltou segundos depois, acompanhado por uma mulher negra vestindo um avental branco. Uma mulher que ergueu uma seringa monstruosamente grande e espetou seu braço. O líquido transparente aliviou a falta de ar, mas fez o quarto inteiro girar.
–Já vai passar. –afirmou a mulher desconhecida, e começou a se desmanchar no ar.
–Apenas descanse. –disse o noivo. Ele também girava. Seu rosto era um borrão disforme. –Só mais um pouco.
Amanda obedeceu e fechou os olhos apenas por alguns segundos.
Não, não foram alguns segundos. Em sua mente, talvez, mas, fora dela, tudo estava diferente. Repentinamente, ela se percebeu em um quarto maior, mais claro e mais arejado. Uma brisa morna soprava através das janelas abertas. A sensação era agradável. O sol de fim de tarde morria no horizonte, por entre as copas de duas ou três árvores.
Amanda suspirou aliviada. A dor que se espalhava por todo seu corpo ainda era intensa, mas já parecia mais tolerável. Eric estava no sofá, cochilando de boca aberta. Amanda sentiu uma pontada no coração por vê-lo ali, jogá-lo daquele jeito. O sono do noivo era pesado (sempre fora), mas incrivelmente agitado. A preocupação não o abandonava nem do outro lado. Pouco depois, ele despertou, inquieto por algum sonho visivelmente ruim.
–Oi! –disse ele, esfregando os olhos cansados. –Você acordou.
–Sim... Você está ferido? –perguntou Amanda, apontando para o ombro enfaixado do noivo. –O que aconteceu?
–Ah, não foi nada de mais. Eu levei um tiro.
O noivo pronunciou a palavra como se ela significasse muito pouco.
–Tiro?... Você levou um tiro?...
Amanda recordava vagamente: os estrondos infernais, seguidos de um estrondo ainda mais alto e grave, enquanto a sua volta o mundo parecia desabar. Tábuas de madeira se esmigalhavam. O noivo gritou. Os gemidos de dor de um homem soavam alto na escuridão, enquanto ele se afastava. Tudo aquilo era bastante confuso. Ela só conseguia se recordar dos sons, pois as imagens eram fracas demais, desbotadas demais.
–Sim. –respondeu o noivo. –Mas eu estou bem agora. Não se preocupe. E você, como se sente?
–Melhor. Realmente melhor.
Alguns instantes depois, e a mente de Amanda já estava mais clara. Ela tentou erguer um pouco a cabeça, mas o corpo não obedecia da forma esperada. Estava presa à cama ou algo do tipo, imaginou, mas logo percebeu que era apenas fraqueza. Eric a ajudou a se erguer um pouco.
–Há quanto tempo eu estou aqui? –perguntou ela.
–Querida, você precisa se adaptar aos poucos. Absorver tudo de uma só vez pode ser complicado.
–Há quanto tempo, Eric?
Ele ainda relutou antes de responder.
–Dois meses e doze dias.
Era difícil de acreditar. Se a resposta viesse de outra pessoa, ela certamente não acreditaria.
–Dois meses? Eu estou neste hospital há dois meses?
–Você chegou aqui muito mal. Foram quase duas semanas em coma, até despertar. Depois disso, mais um mês na UTI, até que os médicos conseguiram desligar os aparelhos que a mantinham respirando. Você está neste quarto há pouco mais de uma semana. Na verdade, você está acordada há mais de uma semana.
Amanda se sentiu confusa novamente. Sua cabeça voltou a girar.
–Eu estou acordada há uma semana? Não, isso é impossível.
–Querida, nós conversamos umas três ou quatro vezes só esta semana. Consegue lembrar de alguma coisa?
Amanda fez um grande esforço para arrancar as lembranças do fundo de sua mente, mas tudo o que conseguiu foi uma ferroada de dor em sua fronte.
–Não consigo me lembrar... Não consigo... Parece que eu acabei de acordar.
–Tudo bem. Esses lapsos de memória, os médicos disseram que poderiam acontecer. Mas é passageiro. Você levou uma pancada muito forte, vai levar algum tempo para se recuperar.
Pancada forte? Não, houve muito mais do que isso: foram horas de angustia e pesadelo. Ela tinha certeza de que não sobreviveria. Em alguns momentos, desejou desesperadamente estar morta.
Instintivamente, Amanda tocou o próprio rosto com as pontas dos dedos e acabou recolhendo a mão em um movimento reflexo. Não, aquilo não parecia nada bom. Só então ela pareceu realmente se dar conta do próprio estado. Seus dedos e suas mãos estavam bastante feridos. Algumas unhas foram arrancadas durante tudo aquilo e ainda não haviam se recuperado de todo. Seus braços, estava repletos de hematomas, arranhões e mordidas. E como não estaria todo o resto?
–Pode me alcançar um espelho? –pediu ela, ao noivo.
–Querida, não sei se é uma boa ideia. Não tão cedo.
–Creio que seja inevitável, não é mesmo. –respondeu ela. –Não dá para fugir disso. Confie em mim: eu vou ficar bem.
Relutante, Eric caminhou até um dos cantos do quarto, arrancou um pequeno espelho da parede e o entregou à noiva. Amanda o apanhou com muita dificuldade, como se a coisa pesasse vinte quilos.
A visão de seu próprio rosto lhe arrancou um suspiro cheio de dor, mas foi apenas isso. Ela não se desesperou, não chorou, não sentiu pena de si mesma. Mas era duro olhar para tudo aquilo: seu nariz estava torto demais. Seu queixo estava pior. Seus lábios foram arrebentados. O olho esquerdo desaparecia debaixo da luxação, e o direito se mostrava coalhado de sangue. Isso sem falar no hematoma deixado pelo maldito martelo: era como um segundo rosto cobrindo o primeiro, algo bastante desagradável. Seu cabelo (Deus, como gostava de seu cabelo) havia desaparecido. No lugar dele, Amanda encontrou um grande curativo salpicado de sangue.
–O que aconteceu com minha cabeça? –perguntou ela.
–Você recebeu um golpe muito forte. Os médicos... Os médicos tiveram de fazer uma descompressão.
–Eles abriram minha cabeça?
–Foi preciso. –respondeu Eric, agarrando a mão da noiva. –Mas já passou. Você está muito melhor agora.
Amanda abaixou o espelho e permaneceu quieta por um longo tempo. O silêncio pesado preocupou o noivo.
–Querida, tudo bem?
–O homem que fez isso comigo...?
–Está morto.
Uma lágrima fina e fria escorreu pelo rosto de Amanda. As horas angustiante naquela casa maldita ressurgiam em sua mente de forma frenética: a mesa, os instrumentos cortantes, os ganchos, a marreta que por pouco não esmagou sua cabeça. Amanda parecia quase em transe, quase em choque. Repentinamente, porém, um sorriso de triunfo surgiu em seus lábios.
–Eu venci...
Capítulo 4
Carlos Dias serviu duas doses duplas de uísque, uma para si mesmo e outra para Marcos Hasse. Estavam sentados nos lados opostos de sua velha mesa de madeira, em sua sala na delegacia.
O delegado Carlos Dias era um homem muito alto e extremamente forte, quase uma montanha. Não chegava a ser gordo, embora definitivamente não fosse magro, mas os muitos quilos de músculos de sua juventude como pugilista profissional se somaram ao peso dos anos. Somava-se, a isso tudo, sua própria constituição biológica, e o resultado era de assustar. A melhor definição seria volumoso, realmente grande, uma qualidade ótima para apavorar criminosos. O formato redondo do rosto e os olhos estreitos de lince ajudavam a aumentar o efeito. Mas Carlos Dias estava mais para o tipo bondoso do que para o malvado, embora o trabalho arrancasse o pior dele de tempos em tempos. O cabelo ruivo cortado à máquina e a pele clara repleta de sardas eram as marcas da família Dias.
Sua sala era, de certo modo, aconchegante. Isso porque a esposa passava por ali de tempos em tempos. Havia pequenas pinturas nas paredes, porta-retratos e até um vaso de margaridas. Um casaco marrom pesado permanecia esticado sobre o porta-chapéus. Em um dos cantos, havia ainda uma pequena estante com algumas pastas e alguns livros. Do lado de fora, através da estreita janela, era possível avistar os montes verdes que cercavam a cidade.
O delegado encarou a face inerte de Marcos Hasse e suspirou. Parecia extremamente cansado. Virou seu copo em um só gole e perguntou:
–Há quanto tempo nos conhecemos, Marcos?
–Há muito tempo.
–Desde sempre, eu acho. Desde que éramos apenas meninos, escalando as árvores, roubando laranjas, atormentando os gatos da rua...
–Você mandou me chamar? –perguntou Marcos Hasse, cortando as digressões de Carlos Dias. Não parecia com muita vontade de conversar.
–Sim. –respondeu o delegado, antes de abrir uma gaveta e atirar uma pasta sobre a mesa.
–O que é isso? –perguntou Marcos. Não parecia curioso. Parecia, na verdade, já conhecer a resposta. Mas não parecia preocupado. Aquilo iria acabar acontecendo, mais cedo ou mais tarde. Uma arma fora disparada, e o autor do disparo precisaria responder pelo que fez.
–O relatório da autópsia do homem que matou sua filha. –respondeu Carlos Dias.
Marcos observou a pasta em silêncio, sem tocá-la. O delegado prosseguiu. –Segundo o relatório, o assassino de Isabela foi atingido duas vezes por uma pistola ponto quarenta, mas conseguiu fugir. Então foi atingido por outro disparo, cerca de cinco minutos depois. Um tiro no pescoço, de um trinta e oito. O terceiro disparo provocou hemorragia severa. Foi a causa da morte.
–E daí? –perguntou Marcos, visivelmente aborrecido.
–E daí que a pessoa que disparou a última bala não parou nisso. Essa pessoa arrancou os olhos, a língua e o pênis do desgraçado enquanto ele ainda estava vivo e, só para terminar, o fez engolir tudo.
Carlos Dias tamborilou na mesa com seus dedos gigantes enquanto escolhia as palavras.
–Então eu pensei: alguém deve estar muito zangado para fazer algo assim, ou muito maluco.
O delegado ergueu seu corpo pesado da cadeira, caminhou até a estante e apanhou uma folha branca de uma das pastas.
–Este é o relatório da balística. Os dois primeiros tiros foram disparados de uma pistola registrada em nome do Grupo de Resposta Tática da polícia. Era a arma do noivo da última vítima. Já o terceiro disparo partiu de um revólver de dono desconhecido, número de registro zero, zero, zero, vinte e quatro, dezessete, quarenta e seis. A perícia não conseguiu identificar o dono ainda, mas é claro que eu me lembro de seu velho revólver.
Carlos Dias fungou descontente, levantou-se de sua cadeira, apanhou o balde de metal que servia como lixeira e o colocou sobre a mesa. Por fim, estendeu a folha de papel, retirou seu isqueiro do bolso e queimou tudo. Os dois homens permaneceram em silêncio, enquanto a chama azulada dissolvia qualquer lembrança, até a prova do assassinato se transformar em um punhado de cinzas. Depois de tudo aquilo, Carlos Dias voltou a se sentar, encheu outra dose dupla e a sorveu como se fosse água.
–Isso acaba aqui! –disse ele, batendo com o indicador na madeira dura da mesa. Seus olhos lacrimejavam, e não era apenas efeito da bebida e da fumaça.
–E como poderia não acabar? –perguntou Marcos.
Carlos Dias percebeu que o amigo tinha razão. Estava acabado: o assassino estava morto. Mas não apenas isso: Isabela estava morta, e nada poderia trazê-la de volta.
Marcos se levantou e partiu. Não disse mais uma única palavra. Caminhava como um fantasma. Parecia quase deslizar. Era uma figura sem vida. O delegado virou o copo que sobrara sobre a mesa e observou um dos retratos na parede. Ele abraçava uma moça bonita de cabelos encaracolados. A afilhada deixara um vazio tremendo na vida de todos. Na vida do pai, principalmente. Carlos Dias suspirou. Um calafrio estranho percorreu sua espinha.
–É o fim! –exclamou ele.
Não fazia ideia de como estava errado.
Capítulo 5
Quase um mês se passara, e Amanda Greene reaprendia a caminhar. Naquele momento, vestia seu pijama branco, um casaco de moletom sobre os ombros e um par de chinelos de lã. Sua caminhada se resumia a alguns passos pelo quarto com a ajuda de um andador. Ainda assim, era um avanço.
Sua médica a acompanhava atentamente. Melina era uma mulher negra muito bonita, na casa dos quarenta anos. Tinha um rosto forte, com feições um tanto quadradas, cabelos curtos e encaracolados, lábios grossos e redondos e um nariz baixo e reto. Amanda analisou sua face por um momento. A mulher lhe lembrava alguém, ela podia jurar, alguém famoso. Oprah Winfrey, ela arriscou, especialmente a delicadeza do semblante e dos olhos. Havia um quê de Viola Davis também, talvez os lábios. Ah, sim, o queixo: o queixo era de Zoe Saldanha, definitivamente. O formato do rosto também era muito parecido, embora a atriz fosse ao menos quinze anos mais jovem e bem mais magra. Amanda não deixou de sorrir com aquele impressionante mosaico, que certamente só existia em sua mente de admiradora de celebridades talentosas. A médica percebeu o sorriso e perguntou:
–O que foi?
–Nada. Só minha mente viajando.
–Tudo bem. Deixe sua mente viajar, mas não esqueça de mover os pés e continue caminhando. Certo?
–Certo.
– Como estão os joelhos?
–Doem muito! Realmente muito!
–Você acabou de tirar o gesso, e a platina vai incomodar um pouco por uns tempos, mas isso é normal.
–Sabe, com todo esse aço dentro de mim, eu me sinto quase como um desses super-heróis de histórias em quadrinhos.
–Acredite em mim: o único superpoder que essa coisa vai lhe dar é a habilidade de sentir muita dor.
Amanda sorriu.
–Reconfortante!
–E a cabeça? –perguntou a médica.
–Dói um pouco às vezes, principalmente à noite, mas no geral está tudo bem.
–E as tonturas?
–Pararam há quase duas semanas.
–Isso é bom! Realmente muito bom!
E a recuperação de Amanda realmente impressionara a todos. Quando chegara ao hospital, pouco mais de três meses antes, a garota estava quase morta: joelhos estourados, duas costelas estilhaçadas, uma delas perfurara o pulmão esquerdo. O pulso estava basicamente parado. Isso tudo sem contar os cortes, arranhões, mordidas e queimaduras que se espalhavam por todo o corpo. O mais preocupante era o estado da cabeça. Um golpe muito forte no rosto quase a matara. Depois de horas de cirurgia, duas semanas em coma profundo, até acordar.
Melina estivera presente durante a cirurgia e não acreditava que a garota fosse sobreviver. Mas ali estava ela, caminhando pelo quarto. Agora, seus ossos se regeneravam com muita velocidade, os músculos recobravam a força e o corpo, pouco a pouco, vencia os hematomas. A beleza do rosto ressurgia, ainda tímida. Os lábios ainda estavam muito rachados, o olho esquerdo ainda era pouco visível debaixo da luxação e o direito era pura vermelhidão, mas a melhora era inegável. Sua mandíbula já recuperava o formato natural, assim como o nariz. Até o cabelo crescia rápido, formava tufos negros e ralos, que se distribuíam de forma estranha sobre a cabeça, mas logo engrossariam. A saúde ainda estava debilitada, mas o avanço era incrível.
Eric abriu a porta do quarto e entrou.
–Doutora... –cumprimentou ele, com um gesto, e olhou para a noiva. Um olhar cheio de afeto.
Formavam um casal bonito, diferente, pensou a médica: ele, um homem alto e forte, de cabelos loiros e pele de um dourado natural; ela, magra, olhos amendoados, pele clara e aquele rosto de dar inveja. E os dois realmente se amavam, era evidente, um amor antigo e muito forte.
–Pronta para voltar para casa? –perguntou o noivo.
Amanda suspirou.
–Mais que pronta.
–Bom, agora que você chegou, vou deixá-los um pouco sozinhos. –afirmou a médica. –Vejo vocês lá embaixo.
–Combinado. –respondeu Amanda. Antes de a médica deixar o quarto, ela ainda perguntou: –Quanto àquele outro problema?
–Já fizemos alguns exames. Mas, confie em mim, está tudo certo.
Melina partiu.
–Outro problema? –perguntou Eric.
–Você ouviu a doutora: Tudo certo!
Capítulo 6
A residência dos Hasses ficava ainda mais bonita pela manhã. Era uma daquelas construções simples, mas impecavelmente bem acabadas. Não seria muito diferente das outras casas da rua se não fosse pelo jardim de flores coloridas e bem cuidadas, ou pelo gramado verde, ou mesmo pelo pequeno pomar de folhas amarelas. Mas tudo aquilo, ao mesmo tempo, a tornava única, como uma pintura de Monet em um de seus dias mais alegres. Dizem que uma casa tem a personalidade de seu dono, e aquela era realmente a cara de Margaret Hasse. Mais que isso, era um de seus maiores sonhos realizados. Fora construída aos poucos, durante muitos anos, conforme a necessidade os forçava a isso, um fato que nem mesmo um observador muito atento seria capaz de perceber. As marcas da metamorfose estavam escondidas debaixo de uma grossa camada de gesso. Anos e anos de trabalho, tudo sob os olhos atentos da dona da casa. Os construtores sofreram muito em suas mãos, ao longo de muitos anos, mas o resultado recompensava.
A manhã parecia triste, apesar do céu azul e sem nuvens. Marcos Hasse permanecia em seu pequeno escritório, no segundo andar da casa, ouvindo o canto dos pequenos pássaros e sentindo a brisa fria que atravessava a janela estreita. O escritório da casa era um cômodo muito pequeno. Possuía apenas uma estante em uma das paredes, uma escrivaninha bem no centro e uma poltrona não muito aconchegante em um dos cantos.
Troféus prateados reluziam sobre a estante. Marcos vencera dez dos doze últimos campeonatos de pesca realizados na cidade. Os peixes grandes gostavam de suas iscas, e ele gostava dos peixes grandes. Era algo que não podia evitar. O porta-retratos na estante mostrava um policial forte, bonito, de cabelos negros e lisos, enfiado em seu fardamento escuro. Sorria para a garota linda de cabelos castanhos que batia o retrato. O policial era ele mesmo, vinte anos antes. Ainda seria o mesmo, não fosse por alguns pequenos detalhes: alguns fios de cabelo a menos, alguns quilos a mais, algumas rugas profundas no rosto forte. Apenas isso. Sua esposa continuava linda, ele sabia, mas sentira o efeito dos anos tanto quanto ele. Um retrato dos dois em um Cadilac vermelho decorava uma das paredes. O bebê de dois anos no colo do pai tentava encontrar o passarinho preso dentro da máquina fotográfica, os cachinhos negros escapulindo do chapeuzinho de algodão. Marcos ainda se lembrava daquele dia. O carro não era deles. Certamente não. Não conseguiriam comprar uma coisa cara daquelas naqueles tempos de aperto, quando ele ainda recebia apenas o soldo básico da polícia e a esposa trabalhava em um balcão de mercado. O retrato, na verdade, fora tirado em uma exposição de carros antigos, que eles haviam descoberto por acidente, em uma excursão de meio de ano para a serra. Fora um dos dias mais felizes de que se recordava. Tempos difíceis, era verdade, mas muito mais alegres. Como ele queria ter o poder de voltar no tempo, mesmo que por alguns instantes. Seria certamente uma grande alegria reencontrar a si mesmo no passado, observar-se naquele momento.
Marcos voltou a si. Batidas... Alguém à porta. Um jovem muito magro de cabelos castanhos entrou. Tinha vinte e cinco anos ou pouco mais que isso. Media um metro e sessenta no máximo e era dono de um rosto fino sem qualquer indício de barba. Olheiras profundas indicavam noites de sono mal dormidas, talvez algum choro. Era o ex-noivo de sua filha. Seria seu genro agora, se Isabela ainda estivesse viva.
–Denis...
–Marcos...
O rapaz se acomodou. Por um momento ficaram ali, sem dizer nada.
–Não quero me intrometer na sua vida. –afirmou o rapaz. –Na sua casa. Mas vocês são o mais próximo que eu tenho de uma família.
Marcos não respondeu. Parecia nem ter ouvido o rapaz.
–Eu amava sua filha. De um modo como nunca amei ninguém em minha vida. Você sabe disso.
E Marcos Sabia.
–Marcos, Margaret me pediu para conversar com você. Ela está preocupada, disse que você piorou depois que aquele homem morreu.
Sem dizer uma palavra, Marcos abriu a pequena caixa de madeira sobre a mesa e arrancou algo de dentro dela. Denis tomou um susto. Era um revólver. Estava agora nas mãos do sogro. O homem apontava a coisa para o nada, distraidamente.
–Marcos, nós precisamos seguir em frente. Ele está morto. Está tudo acabado.
–Esse é justamente o problema, Denis. –respondeu Marcos, e puxou o gatilho. O estalo seco da arma descarregada ecoou alto e fez o rapaz se sobressaltar. Nem tanto pelo barulho, é verdade, e sim pelo brilho de morte que surgiu nos olhos daquele homem que ele achava que conhecia tão bem. –Está acabado... E como eu queria que aquele homem estivesse vivo!
–E por que você desejaria algo assim? –perguntou o rapaz, surpreso.
–Para poder matá-lo novamente...
Denis ergueu o corpo magro da cadeira. Não tinha argumentos contra aquilo. Aliás, nem mesmo sabia o que era aquilo. Antes de deixar o pequeno cômodo, ele ainda concluiu:
–Vocês são tudo o que me resta...
Capítulo 7
Era a noite mais quente do ano. Amanda permanecia deitada em sua cama, ao lado do noivo. Eric dormia profundamente. Ela o observara por um longo tempo. Queria acompanhá-lo. Precisava dormir, mas não conseguia. Não pregava os olhos há pelo menos dois dias. Seu corpo formigava, e a dor no ventre, que durava semanas, ressurgia com mais força a todo o momento. Vinha em forma de ferroadas agudas que duravam poucos segundos, mas causavam muito estrago. Ela ainda tentou fechar os olhos, mas dormir era impossível, então resolveu se levantar.
Com joelhos doloridos, Amanda saltou da cama, atravessou o corredor e caminhou até o banheiro. Seu rosto fervia. Ela abriu a torneira da pia e se encharcou. A água gelada parecia queimar a pele, mas ajudava a espantar a náusea. Por um momento, Amanda contemplou o próprio rosto no espelho: ainda não parecia ela. Melhorara muito, precisava admitir, mas ainda assustava. Seu nariz começou a sangrar. Fazia isso às vezes. Ela limpou o sangue com um pedaço de algodão, antes de jogá-lo no lixo. Depois, com a ponta dos dedos, ergueu os próprios lábios: as gengivas ainda estavam feridas, mas pareciam bem melhor. O espaço vazio entre dois dentes indicava o lugar onde deveria estar um de seus malares: onde ele estaria agora, era um grande mistério, provavelmente no porão daquele casa imunda, quem sabe no chão pegajoso da floresta, onde ela recebeu o golpe de misericórdia. Ao menos o inchaço em seu rosto diminuíra bastante, embora o hematoma ainda assustasse. Só o cabelo estava realmente melhor, mais cheio e mais forte, ainda que continuasse mais curto que o do noivo. Enfim, eram machucados demais, que ainda permaneceriam em seu corpo por um bom tempo, como uma lembrança daquelas horas amaldiçoadas que ela desejava desesperadamente esquecer.
Outra fisgada no ventre. Aquilo incomodava. Amanda tentou ignorar a dor o quanto pode e caminhou para a sala. No sofá, ela ligou a televisão para passar o tempo. Nada de interessante prendia sua atenção, mas as imagens distraíam. Ela se recostou, fechou os olhos e quase conseguiu cochilar de verdade. Foi quando ouviu o barulho.
Pareciam passos, mas definitivamente não eram humanos. Vinham do corredor. Ela se virou. O que quer que fosse aquilo, já havia passado, mas deixou sua sombra na parede, uma sombra comprida. Era um quadrúpede. Amanda ouviu o grunhido, o rosnado baixo e grave de um cão muito grande. Soara abafado e distante como uma lembrança ruim, mas era bastante inteligível.
O animal estava no quarto do meio, o quarto que deveria ter sido ocupado dois anos antes, mas continuava vazio. Isso, obviamente, se o bicho fosse real, mas não era, Amanda sabia. Ainda assim, ela pulou do sofá e caminhou até o quarto, nas pontas dos pés. Estava escuro ali, mas ela podia jurar de pés juntos que havia um enorme cão negro bem no meio do cômodo vazio, encarando-a com olhos vermelhos. Quando acendeu a luz, porém, o bicho desapareceu. Nada no quarto, além do assoalho lustroso e do papel de parede azul.
Amanda voltou para a cama e deitou novamente ao lado do noivo. Eric roncava baixo. O dorso forte se movia com tranquilidade, para cima e para baixo. O noivo sempre tivera um sono pesado, desde adolescente, bem diferente dela. Amanda se ajeitou. Observava o teto do quarto agora, mas era em outro teto que ela pensava, no teto escuro e cheio de manchas daquele porão sujo. Era impossível esquecer aquele lugar, tudo pelo que havia passado: a sensação de sentir a própria vida se esvaindo, a dor da morte e o homem maldito dizendo palavras sem sentido.
E, novamente, outra pontada de dor. Aquela a rasgara por dentro. A médica dissera que era seu corpo reagindo aos ferimentos. Que fosse! Era desagradável do mesmo jeito. Amanda fechou os olhos. Sua cabeça latejava como um tambor. As mordidas em seus braços e em suas pernas ardiam. Em sua mente, na escuridão, ela ainda podia ouvir os rosnados graves. Em alguns momentos, seu corpo parecia se sacudir violentamente, movido pela força daquelas mandíbulas poderosas. E ela ainda podia sentir o hálito quente dos cães em seu rosto. Um hálito de sangue. Seu sangue. As mordidas estavam quase desaparecendo, ela sabia, mas a cicatrização dos ferimentos não ajudava a aliviar a angústia das lembranças. Seu corpo estava melhorando, mas sua mente estava levando uma surra. Ela precisava seguir em frente, precisava reagir, arranjar uma forma de enfrentar tudo aquilo, mas estava apavorada. Embora se recusasse a reconhecer, sempre que fechava os olhos, o medo a paralisava até os ossos.
Capítulo 8
A tarde trouxera consigo nuvens carregadas, que se dissiparam horas depois. Agora o céu era de um cinza esbranquiçado e fosco. Em pontos isolados, o azul surgia tímido. Uma brisa fria soprava do horizonte. As árvores da rua pareciam dançar. Se estivessem de fato dançando, seria uma música lenta, bastante melancólica, quase lúgubre.
Pela janela, Amanda observava as folhas esvoaçantes. Estava em seu quarto, sentada em sua cama, pronta para sair. Usava um vestido escuro discreto. Eric entrou, ainda ajeitando a gravata. Vestia seu terno negro. Era seu único traje social, já estava meio surrado e o noivo havia engordado uns quilinhos nos últimos meses, mas a coisa ainda vestia bem.
–Você está pronta? –perguntou ele.
–Acha que é mesmo uma boa ideia eu ir junto?
–Claro que sim. Por que não seria?
–Porque a filha deles está morta, e eu estou viva.
–Querida, eu conheço os Hasses há anos. Eles são boas pessoas. Não vão sentir raiva porque você está viva, se é essa a sua preocupação.
–Não pensei em raiva, pensei em tristeza.
–Não se preocupe com isso. No fundo, eu acho que sua presença lá fará bem a eles.
Houve um instante de silêncio. Eric ajeitava o cabelo úmido.
–Você a conheceu? –perguntou Amanda.
–Isabela?
–Sim.
–Eu a vi duas ou três vezes.
–Disseram que ela se parecia comigo. É verdade?
–Eu confesso que nunca reparei nisso antes de tudo o que aconteceu, mas sim. Ela tinha o seu rosto, os seus olhos, a sua boca, e até o cabelo era parecido. Algumas diferenças, é claro: Isabela era um pouco mais clara que você, bem mais alta e um pouco mais magra na época, eu acho. O nariz dela era mais fino que o seu, suas sobrancelhas são mais grossas que as dela, mas acho que é só isso. No geral, vocês realmente se pareciam muito, quase gêmeas.
–Como é possível alguém matar por causa disso?
–O investigador que resolveu o caso disse que tinha a ver com a primeira mulher morta, uma freira. Mas esqueça isso agora. Não vale a pena.
Amanda balançou a cabeça para espantar os pensamentos desagradáveis e se ergueu.
–Tem razão. Vamos logo!
O cemitério da cidade não passava de um tapete verde cravejado de lápides, milhares delas, todas muito parecidas: o cinza das pedras contrastando com o verde da grama, e tudo contrastando com o azul do céu. As árvores que se espalhavam pelo cemitério quebravam a simetria horizontal da paisagem e rasgavam o ar com suas copas largas e amareladas. Era bonito, apesar de tudo.
Uma pequena multidão se aglomerava diante de um dos túmulos. O bispo em pessoa viera celebrar a cerimônia, como que para se desculpar. Fazia exatamente um ano desde a morte de Isabela, pouco mais de cinco meses desde que Amanda fora salva. Havia tristeza nos rostos dos familiares da garota assassinada: a mãe chorara muito, o namorado também. A irmã, coitadinha, era um desalento só.
–Não estou vendo Marcos. –sussurrou Eric.
Falava baixo para não atrapalhar.
–Está lá. –disse Amanda, apontando discretamente.
Debaixo da sombra de uma árvore, a alguns metros de distância. Não parecia apenas triste, parecia em transe.
–Coitado! –exclamou Eric. –Marcos é muito respeitado na polícia. Era um bom policial, um bom chefe. É um bom homem. Não merecia isso tudo.
–E quem merece? –perguntou Amanda, concentrada na face da menina. Era um ser de uma delicadeza sem igual. Até o choro era delicado. Por um momento, Amanda pensou em como seria ter uma irmã mais nova.
A cerimônia se estendera por mais ou menos meia hora e já chegava ao fim. O bispo falava bem, mas as passagens eram sempre as mesmas: "o pó ao pó, e a alma a Deus... Amém!". Alguns minutos depois, e todos já se despediam da família, uns após os outros. Marcos realmente parecia não querer conversa com ninguém, estava distante de todos e de tudo, alheio ao mundo como um náufrago, mas se esforçava em respeito à memória da filha. Nunca fora católico, nunca fora nada, mas a filha era, e tinha muita fé. Não deixaria de ter fé, mesmo depois de tudo, todos sabiam. Ela certamente iria querer aquilo.
Eric e Amanda se aproximaram da família. Margaret os abraçou, mas abraçou Amanda com mais força. Foi de fato um abraço um tanto forte demais, mas foi afetuoso.
–Ah, querida: eu sinto muito pelo que aconteceu a você!
Era como a voz da mãe que ela nunca teve. Amanda percebeu que não se importaria nem um pouco em ser filha daquela mulher.
–Obrigada! –respondeu. –Eu já estou bem melhor agora.
Amanda se aproximou ainda mais do túmulo e estremeceu ao pensar que, debaixo daquela grama verde, estava a garota que morrera exatamente do jeito que ela deveria ter morrido, um corpo mutilado e esquartejado. A pontada em seu ventre ressurgiu com força, mas foi apenas meio segundo. Ela ignorou como pode.
Eric caminhou até Marcos. Amanda o seguiu por alguns metros, mas parou ao lado da menina. A garota ainda contemplava a lápide da irmã. Havia flores ao pé do túmulo, e uma foto de Isabela. Amanda, definitivamente, não encontrou tanta semelhança quanto todos diziam: a garota era mais bonita do que ela, parecia uma modelo. Ainda assim, havia uma ligeira semelhança.
–Ela era bonita! –disse ela, à menina. –Sua irmã.
–Era parecida com você. –respondeu a garota. –Só que era bem mais alta. E os cabelos dela eram cacheados.
–Os meus também eram. –retrucou Amanda, com um quê de decepção na voz.
–Sério? –perguntou a menina, curiosa.
–Sério. Tiveram de raspá-los por causa de uma cirurgia. Então eles cresceram assim lisos. Os médicos disseram que foi por causa dos medicamentos. Disseram que vai voltar ao normal em alguns meses. Eu não vejo a hora.
A menina a observou com hesitação.
–Você não está mentindo, está?
Amanda sorriu
–Não, eu juro. É verdade.
–Cada coisa neste mundo!
–Verdade!
Ao longe, Margaret Hasse terminava de se despedir de alguns amigos e já acenava para a filha.
–Bem, acho que tenho de ir. –disse a garota. –Foi um prazer te conhecer, Amanda. Fico feliz que você esteja viva. Você parece uma pessoa legal.
–Você também, Caroline.
A menina estava pronta para partir, mas estacou por alguns segundos. Algo a detivera, talvez a forma como seu nome fora pronunciado, Amanda supôs.
–Escuta, eu queria te pedir um favor, mas... estou com um pouco de vergonha.
–Não precisa. –respondeu Amanda. –É só pedir.
–Vai soar estranho! –advertiu a menina.
–Tudo bem. Pode pedir!
–Pode deslizar seu dedo no meu nariz? Só vai levar um segundo.
–Assim? –perguntou Amanda, e obedeceu.
O nariz da menina estava gelado. A garota fechou os olhos por um longo instante e, quando os abriu novamente, entrou em alguma forma de transe difícil de definir. Amanda chegou a ficar preocupada, mas então tudo voltou ao normal. A menina sorriu. Parecia, repentinamente, alegre. Uma lembrança, Amanda percebeu. Uma lágrima escapou dos olhos da menina.
–É, vocês são realmente muito parecidas. –disse ela, por fim, e se despediu.
Caminhava com leveza, com graça, como uma autêntica bailarina, e uma das boas. Amanda a observou se afastando e percebeu que realmente gostava dela.
Na imensidão do cemitério, Amanda se aproximou dos dois homens solitários. Eles ainda conversavam, embora fosse mais um monólogo. Marcos Hasse... Eric falava muito dele, mesmo antes de tudo aquilo. Era um homem alto, de presença, o rosto forte típico dos policias. Sua expressão inerte enganava. O observador menos cuidadoso diria que ele era o que menos sofria ali. Mas Amanda podia enxergar, no fundo dos olhos do homem, a dor roendo até os ossos.
Eric os apresentou. Os dois se cumprimentaram.
–E como você está? –perguntou Marcos, a Amanda.
–Melhorando.
–Isso é bom. Fico feliz por vocês. De verdade.
–Obrigada!
–Bem, eu preciso ir. Obrigado por virem!
Marcos estava prestes a partir, mas Amanda segurou seu braço. Foi um gesto automático, instintivo, ela quase nem se deu conta. O homem se virou, um tanto surpreso.
–Eu realmente sinto muito pelo que aconteceu a sua filha. –disse Amanda. Queria dizer mais alguma coisa, algo que amenizasse toda aquela dor, toda aquela revolta, mas as palavras lhe fugiam.
–Eu agradeço... –respondeu Marcos. Não sabia muito bem o que responder.
Amanda ainda prendeu o homem por alguns segundos antes de soltá-lo.
–Tudo bem, o que foi isso? –perguntou Eric, quando Marcos já se afastava.
–Ele não está bem. –respondeu Amanda. –A mãe e a menina estão sofrendo, mas estão reagindo. Ele não.
–Sério, você achou? Eu achei que ele parece bem, apesar de tudo.
–Não, ele não está bem. Ele está doente.
Capítulo 9
As semanas voavam. O verão se aproximava, e os dias chegavam cada vez mais quentes. Aquele, em especial, amanhecera agradável: uma brisa fresca soprava sobre a cidade, e o sol já brilhava dourado no horizonte. Às sete da manhã, a cidade já despertava do lado de fora da janela: crianças caminhando para a escola, um homem vendendo picolé, o caminhão barulhento da coleta de lixo e alguns motoristas apressados. Tudo indicava que seria um dia movimentado.
Amanda ajeitou a gola da farda do noivo. Estavam no quarto. Eric se preparava para retornar ao trabalho após quase seis meses de licença médica. O ferimento de tiro em seu ombro ainda sangrava às vezes, mas, no geral, já parecia bem melhor.
–Pronto! –disse Amanda
Eric suspirou. Estava tenso, Amanda percebeu, mas se sairia bem.
–Tudo bem, então... Hora de trabalhar. E você vai ficar bem mesmo? Não quer ficar em algum lugar conhecido, talvez sua escola. Pode visitar suas colegas.
–Não, eu estou ótima. Agora vá, ou vai se atrasar.
–Certo. Vejo você no almoço?
–Combinado.
Amanda acompanhou o noivo até o portão e viu o carro partir pela rua estreita de calçamento. Era sua primeira vez sozinha desde o rapto. A psicóloga dissera que seria difícil. E estava certa. Amanda não percebeu de imediato. Primeiro surgiu a sensação desagradável de mal-estar, quase um aperto no peito. Depois, veio a nítida impressão de que alguém a observava. Algo gelado se apegou a suas costas como limo, uma sensação estranha, desagradável. Amanda ignorou aquilo com relativo sucesso. As coisas começaram a piorar quando seu nariz sangrou. Aquilo estava associado à mudança de temperatura, ela já havia percebido. Ela limpou o sangue com um lenço, mas uma gota atingiu o assoalho. Amanda encarou aquele pingo e não conseguiu impedir que as imagens ressurgissem em sua mente: a marreta, os objetos cortantes, o sangue seco que se acumulara ao longo de muitos anos e que pertencera a muitas e muitas vítimas, a mesa podre de madeira sobre a qual ela seria retalhada e desmembrada, sobre a qual Isabela fora retalhada e desmembrada. Era algo imundo e profano, como se a própria morte não fosse o suficiente. Ninguém tinha aquele direito. Ela lembrou do rosto da garota na lápide e não pode deixar de imaginá-lo fora do corpo, suspenso sobre o nada.
A brisa fez com que uma das janelas batesse contra a parede de madeira da casa. Amanda não pode deixar de conter o pânico. Suas mãos tremiam. O homem estava morto, havia virado cinzas, sua razão argumentava, mas seu coração estava prestes a saltar do peito. E havia aquele enjoo agudo e as tonturas que só aumentavam. Amanda ouviu passos no assoalho, e novamente aquele rosnado grave. Lutando contra o pânico, com os joelhos tremendo, ela vasculhou todos os cômodos. Obviamente não havia nada. Era sua mente pregando peças. Foi então que ela o viu.
Ali estava ele: o vulto alto e corpulento, com seus óculos brilhantes e redondos que mais pareciam olhos. Amanda o encarou por um bom tempo. A coisa não desapareceu. Ficou ali, plantada, na meia escuridão do corredor, sem tirar os olhos dela. Amanda tentou se aproximar, para provar a si mesma que ele não estava ali, que tudo não passava de uma miragem, mas não conseguiu, então apenas partiu. No lado de fora, enquanto se afastava da casa, ela ainda olhou para trás, por um instante: a coisa ainda estava lá e tudo indicava que não iria embora.
Vencida, Amanda caminhou até a praça da cidade. Ali o movimento era maior, mas a algazarra a deixava tonta. Havia pessoas demais em toda parte, mas era melhor do que estar sozinha com aquele vulto que não deveria estar lá. Ela se sentou em um dos bancos de concreto, debaixo da sombra de uma de uma figueira velha. A brisa gelada trouxe algum consolo, mas o desconforto não passava.
Por um momento, Amanda se ateve aos carros que passavam pelo centro e às pessoas que se esmagavam nas filas dos caixas do supermercado do outro lado da rua, mas logo sua atenção se desviou. Debaixo de uma das árvores, um filhote de passarinho morto era estraçalhado por um bando de formigas, milhares delas, rasgando a carne tenra com voracidade. Em sua mente, Amanda podia ouvir o som. Então aconteceu: a carcaça do animal se moveu como se estivesse viva. Não, o bicho não se movera, era óbvio. Foram as formigas que moveram a carcaça sem vida com toda aquela voracidade assassina. Mesmo assim, o efeito fez Amanda saltar do banco.
—Estou ficando louca. –sussurrou ela, para si mesma.
Ela procurou algo novo para olhar. Um pai empurrava o filho em um dos balanços coloridos. Era algo melhor para se ver. Uma moça bonita de vestido curto chupava um sorvete cor-de-rosa gigante. Amanda respirou fundo.
—Está tudo bem! –sussurrou ela, para si mesma.
Mas seus olhos não paravam em um único ponto. Instintivamente, procuravam qualquer sinal de perigo. Finalmente encontraram algo. Amanda observou o açougue do outro lado da rua e atravessou a estrada sem muito cuidado, ainda sem acreditar no que via. Não podia ser verdade. O sujeito de avental e boné atrás do balcão exibia partes humanas femininas para meia dúzia de clientes sorridentes. Havia pernas, braços e até uma cabeça. A coisa na mão do homem parecia um pé. Amanda estava confusa demais e precisou se aproximar muito para perceber que seus olhos a traíam.
–Ei, moça! –chamou o balconista. –Você está bem?
As pessoas no açougue a observavam um tanto preocupadas.
–Sim. –respondeu Amanda, sem tirar os olhos das facas sobre a bancada. Eram afiadas.
Amanda partiu novamente. Havia perigo por toda a parte. Coisas inofensivas a apavoravam. O martelo na mão do homem no prédio em construção fez o hematoma em seu rosto latejar. A tontura voltou, acompanhada do enjoo. Ela se agachou quando sentiu a pontada no ventre.
–Moça, você está bem? –perguntou o homem que aparava os arbustos da calçada. Amanda só conseguiu distinguir as lâminas afiadas da tesoura de poda.
--Apenas se afaste! –grunhiu ela, quando o sujeito tentou se aproximar. O coitado deu dois passos para trás, bastante assustado. --Desculpe! –completou Amanda, depois de respirar fundo para retomar o fôlego. A atmosfera a sua volta parecia pesada, quase venenosa.
--Tudo bem? Quer que eu chame uma ambulância?
–Não. Eu estou bem.
Amanda respirou fundo outra vez e voltou para casa. Fora derrotada. Sair não fora uma boa ideia. Ainda no lado de fora, ela encarou o interior da casa por um longo tempo, antes de entrar. Nenhum sinal da coisa nas sombras. Dentro de casa, Amanda vasculhou novamente todos os cômodos, cada canto escuro. Obviamente, não encontrou nada. Por fim, ela desabou no sofá e recostou a cabeça.
–Esta tudo bem! –sussurrou ela, para si mesma. –Está tudo bem!
Amanda abriu os olhos. Seu corpo se pôs de pé num salto. Ele estava ali novamente, no meio da sala, o vulto escuro de olhos brilhantes. Era real demais, concreto demais. Seus contornos eram bastante discerníveis agora. Amanda o contemplava pelo espelho, mas não tinha coragem de se virar para conferir. Ela fechou os olhos com força e voltou a abri-los, esperando que a imagem desaparecesse. Não funcionou. Pelo contrário, a coisa estava ainda mais perto agora. Amanda podia sentir até mesmo a respiração em sua nuca. Então a sombra no espelho pousou a mão sobre seu ombro. Amanda sentiu o peso, a pressão dos dedos. Não, aquilo não podia estar acontecendo.
–Você não está aqui! –sussurrou ela, para o vulto. –Você está morto!
Pelo espelho, Amanda viu a sombra apontar o dedo para seu ventre. Seu coração palpitou. Ela sabia o que aquilo significava. De certa forma, sempre soubera. Os olhos brilhantes se apagaram na escuridão. A figura no espelho se desmanchou até desaparecer. Amanda mal se deu conta disso. Outra coisa a preocupava agora. Era uma preocupação aguda, profunda, que chegava a diluir parte do medo que ainda insistia em se emaranhar a seu corpo.
Amanda caminhou até o telefone e discou. Do outro lado da linha, Melina atendeu a ligação.
–Preciso ver você! –disse Amanda. –É urgente!
–Tudo bem. –respondeu a médica. –Eu tenho uma pausa daqui há uma hora e meia. Vou pedir para a secretária encaixar você.
–Obrigada!
Novamente, aquela dor aguda em seu ventre. Amanda o apertou com força e mal se deu conta do gesto. Tudo parecia diferente agora.
Capítulo 10
O consultório da médica podia ser resumido a uma palavra: branco. Não fosse o grande quadro com cores quentes pregado em uma das paredes, não haveria nada colorido ali. Também não havia muita mobília, nada além da mesa lisa de madeira, das três cadeiras, da maca encostada em um dos cantos e da estante pequena e discreta. Havia também uma escultura negra fina e cheia de curvas que parecia uma espécie de árvore queimada, mas que bem poderia servir como um porta-chapéus. Talvez fosse realmente um. Quem poderia saber?
Amanda observava a coisa negra e retorcida sem desviar os olhos. Aguardava a resposta para a pergunta que lhe devorara a carne nas últimas horas. Na verdade, já sabia a resposta.
–Eu sinto muito... –disse Melina, do outro lado da mesa. A médica estava visivelmente assustada. –Mas você estava certa. Eu não sei como isso aconteceu. Nada disso podia ter acontecido, mas é verdade.
Amanda parecia congelada. Seu rosto se enrijecera como o rosto de uma estátua. Melina ficou realmente preocupada. Já não sabia o que dizer, o que fazer.
–Há alguma chance...? –estava a perguntar.
–Não. –cortou Amanda, prevendo a pergunta. –Não há chance alguma.
–Nós precisamos nos acalmar. Eu vou mandar chamar seu noivo. Vou entrar em contato com uma amiga psiquiatra também. Ela pode ajudar.
Amanda já não ouvia a voz da médica.
–Eu preciso ir agora. –disse ela.
–Não, não posso deixar você sair nesse estado. Vamos...
Amanda partiu. Caminhava a passos rápidos, cortava os corredores com muita velocidade, passava por vultos lentos, vultos sem rosto, sem forma, sem corpo. Em sua mente, uma série de imagens, lembranças que lutava para esquecer. Sempre aquele homem, sempre aqueles olhos brancos na escuridão e a voz nojenta em seu ouvido, sussurrando coisas sem sentido. Como seria arrancar o próprio ventre com as próprias mãos, Amanda se perguntava, vê-lo sangrar por entre seus dedos. Ela sempre soube, desde que encarara o homem no chão pegajoso daquele porão nojento, desde que sentira seu peso sobre seu corpo, o perfume nojento que não apagava o cheiro de suor. Ela sempre soube: ele venceria...
A luz do dia surgia além do corredor. Amanda atravessou a porta do prédio e mergulhou naquela claridade quente. Queria desaparecer, desintegrar-se, se possível, naqueles bilhões de fótons, diluir-se naquele clarão amarelado até que nada mais restasse. Ali, naquele momento, ela se recordou de cada instante de sua vida, cada detalhe perdido. E lembrou, mesmo sem se dar conta, de como tudo aquilo havia começado.