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Epílogo

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A pesada porta de aço se abriu, movida pelo motor barulhento, que se calou segundos depois. O garoto parou diante da porta recém-aberta. Depois de lançar um ligeiro aceno para o enfermeiro que guardava a passagem, mergulhou no corredor escuro e avançou lentamente. Vozes e sussurros o envolviam, surgiam de quase todos os quartos. O garoto caminhou mais alguns metros e parou. Porta número vinte e três: uma porta de aço grande, pesada, como todas as outras ali. Parecia uma cela. Vagarosamente, ele girou a maçaneta e, depois de um último momento de decisão, entrou.

 

Dentro do quarto, uma cama estreita, sobre a qual repousava um colchão mofado, sem lençol ou cobertor, uma cadeira de palha desfiada, uma pia pequena e um vaso sanitário encardido. A torneira gotejava. Uma barata fugiu da claridade repentina e desapareceu em um canto escuro. O quarto era mais alto que largo. Não chegava a ser pequeno, mas passar os dias ali não devia ser uma tarefa confortável. Havia uma pequena janela gradeada, a muitos metros do chão, mas, mesmo assim, o lugar permanecia escuro como uma sepultura.

 

O garoto levou alguns segundos para se acostumar com a escuridão. Com uma das mãos, arrastou a cadeira para perto da cama e se acomodou. Havia um homem sentado sobre o colchão, recostado contra a parede fria. Era um sujeito velho, não tão velho quanto aparentava ser, mas ainda assim bastante velho. A barba branca caía quase até o peito, os cabelos emaranhados não viam um pente há anos. Trajava apenas um par de chinelos e uma bermuda jeans gasta. O corpo flácido, forte em outros tempos, agora permanecia largado sem vontade sobre o colchão. O rosto marcado pelas rugas carregava a marca dos anos de autoflagelamento. A pele pálida se espalhava de forma assimétrica sobre os ossos, não havia muita carne ali. Enfim, era um homem destruído.

 

O garoto permaneceu imóvel, encarando, sem desviar os olhos, o rosto do homem sobre a cama.  O velho analisou atentamente o recém-chegado: jovem (dezenove anos, no máximo), cabelos loiros e curtos, olhos azuis, rosto fino e forte, maçãs salientes. A pele clara carregava algumas sardas e espinhas, mas nada que chamasse muita atenção. Vestia calças azuis, camisa vermelha e tênis de caminhada. Enfim, um típico adolescente. O homem se convenceu: não era alguém conhecido. Ainda assim, o rapaz lançava sobre ele um olhar que mesclava certa dose de rancor e algum desafio.

–Você entrou no quarto errado, garoto. –grunhiu o velho, sem muita vontade.

Não seria a primeira vez que algo parecido ocorria. O jovem não desviava o olhar.

–Não, eu não entrei.

O homem estava confuso agora.

–Nós nos conhecemos?

A resposta foi um ligeiro gesto com a cabeça.

–Quando?

–Dezoito anos, seis meses e dois dias. –respondeu o garoto, como quem havia repassado o número, em sua mente, por um longo tempo. –Da última vez em que nos vimos, minha mãe acabou morta.

O rosto do homem se encheu de surpresa. Ele se endireitou sobre a cama e apertou as costas contra a parede como que para se proteger.

–Não, não pode ser. Não pode ter passado tanto tempo.

–Dezoito anos, seis meses e dois dias. –o garoto repetiu. –Foi o tempo que você passou aqui, neste quarto, Sr. Hasse.

–O que você faz aqui? –perguntou Marcos, agitado. –O que você quer de mim?

–Quero que me faça um favor.

–Um favor, a você? Eu não tenho mais nada. Eu juro.

–Não quero dinheiro.

–Então o que você quer?

O rapaz se ajoelhou diante da cama. Estavam face a face agora. Marcos se espremeu ainda mais contra a parede, como um animal assustado. Estava à beira de um ataque de pânico. Aquilo tudo parecia um pesadelo. O garoto o olhava nos olhos, um olhar que quase o rasgava ao meio.

–Quero que olhe nos meus olhos e veja que eu não sou como ele.

–O quê? O que espera que eu...

–Apenas olhe nos meus olhos!

Marcos obedeceu. Olhou no fundo dos olhos do garoto. Viu sinceridade neles. Havia tristeza também, e um pouco de rancor, mas isso era compreensível.  Marcos abriu a boca para dizer algo, porém, àquela altura, o rapaz já havia se levantado. Sem dizer uma palavra, ele caminhou até a porta. Estava prestes a partir. Com todas as suas forças, Marcos tentou dizer algo, mas tudo que saiu de sua boca foi um gemido abafado quase inaudível.

O garoto parou diante da porta aberta. Sem se virar, ele ainda disse:

–Você tem meu perdão.

 

Perdão? Era isso. Fora exatamente isso que ele havia buscado naquele lugar durante tanto tempo sem, no entanto, dar-se conta. Havia muita culpa, mas ninguém para perdoá-lo. Agora o sentimento tomava forma, na imagem de um jovem surpreendentemente normal. Era estranha a sensação: a liberdade que surgia como uma luz no fim do túnel.

–Obrigado! –sussurrou Marcos, para o quarto vazio.

 

No lado de fora do manicômio, o agora ex-delegado Carlos Dias aguardava o rapaz. O delegado ainda era um sujeito grande, de presença, mas estava mais gordo e menos forte do que vinte anos antes e já não impressionava da mesma forma. Os cabelos ruivos embranqueceram-se, e a pela manchada de sardas ficara mais rugosa e menos firme. Enfim, era a idade, que fora um pouco menos cruel com ele que com Marcos, mas, ainda assim, deixara marcas.

O garoto vestiu sua jaqueta de couro marrom e colocou a mochila nas costas. Parou ao lado do ex-delegado para conversar.

–Como foi? –perguntou Carlos Dias.

–Tudo bem, eu acho. Acha que vai dar certo?

–A única coisa que o prende aqui é ele mesmo.

Carlos observou atentamente o rapaz. Era incrivelmente parecido com o pai, mas, por mais estranho que aquilo pudesse soar, era com o pai adotivo que ele se parecia: o mesmo jeito de caminhar, o mesmo jeito de gesticular, o mesmo jeito de falar, também os mesmos olhos penetrantes e até o mesmo timbre na voz. Até fisicamente eles se pareciam: a mesma altura, a mesma postura, os mesmos cabelos loiros acastanhados e até os rostos guardavam uma semelhança que seria notável até mesmo em parentes consanguíneos. E, o mais incrível de tudo, o caráter: eram pessoas muito boas, os dois. Só o azul acinzentado dos olhos do garoto vinha do pai biológico, mas era um detalhe pequeno.

–Então, vai mesmo embora? –perguntou Carlos Dias.

–Sim. Não me resta mais nada nesta cidade. Nada mais me prende aqui.

–E a casa de seu pai?

–Eu a deixei para uma família que precisava.

O rapaz dizia aquilo como se não fosse nada.

–Não seria melhor achar alguém para vender, ou talvez alugar? Você pode precisar do dinheiro mais tarde.

–Não, eu tenho bastante para mim. E aquela casa nunca me pertenceu de verdade. Eu prefiro assim.

–Está certo. Você pode ficar comigo até partir se precisar.

–Eu agradeço, mas não será necessário.

–E quando você vai partir?

–Bem, vejamos... –o garoto consultou o relógio. –Em algumas horas, eu acho.

–Você vai hoje?

–Só preciso passar em um lugar antes.

O delegado estendeu sua mão gigantesca.

–Nesse caso, garoto, quero dizer que foi um prazer imenso ser seu amigo.

O delegado e o rapaz trocaram um aperto longo e forte.Carlos Dias estava a ponto de chorar, mas se controlou. Nos anos que se seguiram a morte de Amanda, ele se transformara no melhor amigo de Eric e do filho. Depois da morte da esposa, cerca de cinco anos antes, Carlos Dias virou uma presença constante na vida do garoto e do pai, uma amizade forte que deixaria saudades. Sem a esposa e, antes disso, sem Marcos, o garoto era praticamente a única pessoa que lhe restava agora.

–Seu pai ficaria orgulhoso. –disse o delegado, por fim.

–Eu fico feliz por isso.

O delegado pensou em pedir para que o rapaz o visitasse algumas vezes, mas sabia que aquilo não iria acontecer. Aquela cidade, mesmo depois de tanto tempo, não era boa para ele, e o mundo era grande demais.

–Que tal eu adicionar você nesse negócio de Whatsapp? –o delegado ainda perguntou, erguendo, um tanto desajeitado, seu aparelho celular novo. –Eu ainda não tenho muitos amigos.

–Você vai ter muitos. –respondeu o garoto, detrás de um sorriso. –Tenho certeza disso.

Ele partiu. O delegado levantou sua mão gigante para saudar a figura que já seguia pela estrada vazia. O garoto caminhava firme, mas sem pressa, como alguém que tem o tempo a seu favor.

 

Marcos Hasse recebera alta do manicômio na semana seguinte. Morreria menos de seis meses depois, em um hotel barato no fim da cidade. Ele nunca mais seria o mesmo homem. No fim, uma mistura não recomendada de antidepressivos e álcool causara o infarto. Mas aqueles que o conheciam sabiam que a causa era outra: tristeza.

 

É verdade que Marcos Hasse estava ainda destinado a viver, no pouco tempo que lhe restava, alguns momentos felizes: a entrada com filha mais nova na igreja, no dia do casamento, por exemplo, seria um deles. Caroline casara grávida de sete meses, aos trinta e quatro anos de idade, por insistência da mãe, já que ela e o marido já viviam juntos há certo tempo. O noivo era um homem de bem, bonito e alto, lembrava um pouco um daqueles galãs de novelas. Caroline se transformara numa mulher linda, ainda mais parecida com a mãe. Houve outros momentos felizes para Marcos: o dia no qual descobrira que a ex-esposa se casara novamente e estava muito feliz fora especial para ele. Por mais que Margaret estivesse apreensiva, aquilo o alegrara imensamente. Mas o momento mais feliz de todos foi dia em que segurara seu netinho no colo pela primeira vez, uma felicidade que, ele achou, jamais experimentaria novamente. Momentos felizes, todos esses. Mas, no fim, a mesma imagem do rosto de Isabela ressurgira, e a velha ferida sangrara, mais dolorosa que nunca. No fim, a dor o venceu.

Minutos após deixar o hospital psiquiátrico da cidade, o rapaz depositava um buquê de flores diante das lápides do cemitério. As pedras cinzas se erguiam sobre o gramado extenso por quilômetros: era bonito, apesar da melancolia. Diante dos túmulos e do silêncio das árvores gigantescas, ele recordou a promessa que fizera ao pai adotivo, no hospital, alguns meses antes.

 

Estavam no quarto pré-operatório. Ele havia vestido a camisola de acompanhante, a toca e aqueles negócios que se vestem por cima dos sapatos. Eric estava estendido sobre a maca. O câncer chegara repentinamente dois anos antes. Três cirurgias e muitas sessões de quimioterapia depois, a doença transformara um policial forte e ainda jovem em um saco de pele. Não havia uma só parte do corpo onde os ossos não estivessem à mostra. Câncer de pulmão... Algo curioso para alguém que nunca fumara e que fazia mais exercícios que um atleta profissional.  Agora, o homem se preparava para a quarta cirurgia. Noventa por cento de chance de não sobreviver, segundo os médicos. Era uma passagem só de ida.

–Escute, filho! –disse o pai adotivo, na voz de alguém para quem cada palavra é uma pontada de dor.

–Em toda a nossa vida, em tudo o que vivemos, só há dúvidas. Nós nunca sabemos o tempo que ainda temos... O tempo que nos resta... Então, quero que me prometa algo... Algo importante...

–O que você quiser.

–Quero que me prometa que você vai ser feliz... Aconteça o que acontecer, você vai ser feliz.

Ele apertou a mão rígida do homem na maca, uma mão envelhecida.

–Eu sou feliz... Eu sempre fui...

Eric cobriu o rosto com a mão livre e chorou. Era um choro de alegria, mas também de tristeza, para o bem e para o mal. O garoto sempre fora feliz! Ele fizera alguém feliz, nesta vida miserável. Era bom saber disso. Sabia que aquelas seriam suas últimas palavras, mas já não se importava.

–Eu queria perguntar algo, pai. –afirmou o rapaz. Era a primeira vez, em todos aqueles anos, que ele o chamava assim. –Uma pergunta que eu estive adiando por muito tampo, mas talvez não tenhamos outra chance.

–Pode perguntar, meu filho.

–Como, depois de tudo o que aconteceu, o senhor conseguiu não me odiar?

Eric sorriu, remoendo algo em sua mente.

–Ah, eu odiei você! Demais!... Mas foram dias, talvez meses... Até que, pouco a pouco, eu percebi que havia muito de sua mãe em você. Então o ódio foi substituído por um tipo muito forte de alegria por saber que uma parte dela continuava viva, em você. E a alegria se transformou em amor.

 Uma lágrima escorreu dos olhos do rapaz.

–Obrigado por tudo!

–Não precisa me agradecer, meu filho. Eu faria tudo outra vez.          

 

Os enfermeiros se aproximavam.

–Eu ainda sinto saudades da sua mãe, sabia?

O garoto beijou a testa do pai.

–Bem, parece que em breve você não sentira mais.

–É verdade. –respondeu Eric, contente. –É verdade. Adeus, filho!

E os homens o levaram. Ele ainda acenou e sorriu, enquanto a maca se afastava.

Agora o pai estava ali, descansando. Sua lápide era visivelmente a mais recente das três. A lápide à esquerda era a de Amanda, vinte anos mais velha. A lápide do meio era pequenina, combinava com o ser que abrigava e protegia. Maicom: "muitas saudades, apesar do pouco tempo entre nós. E ali estavam os três: pai, mãe e filho. Se houvesse de fato um céu lá em cima, eles estariam juntos agora. Quanto a ele, sempre seria um intruso naquele família, sabia disso. Seu lugar não era ali, jamais seria. Mas havia algum lugar, tinha de haver. Em algum lugar, ele encontraria paz.

 

O garoto suspirou o ar gelado de fim de tarde, daquele dia ensolarado e fresco de outono, e partiu. A cidade, sempre fria, seguiria em frente. Ele também. Em minutos, deixava o cemitério e entrava na interminável estrada de terra que levava, certamente, a algum lugar. Onde, já não importava. Com o sol a sua frente, ele caminhou. E como era boa a sensação de não conhecer seu próprio destino. Eram seus pés que o guiavam, enquanto sua mente vagava solta. O passado ficava para trás. Só o que importava era o longo caminho que se abria a sua frente.

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