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Oitava Parte

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Capítulo 49

 

Por mais de uma vez tentou o padre Daniel Wolg se acomodar sobre o sofá desconfortável, na meia-escuridão da sala de estar da casa dos Glanders. Aliás, aquela era uma característica sempre presente naquela casa: a meia-escuridão. Fosse durante o dia, pois jamais abriam as janelas, ou à noite, graças ao efeito das lamparinas opacas, o lugar jamais era claro o suficiente. O fato, por si só, já fazia o padre Wolg se sentir desconfortável. A dificuldade para acomodar o corpo baixo porém volumoso sobre o sofá de formato irregular, construído pelo próprio anfitrião aparentemente sob medida para torturar os convidados, só piorava a situação. E naquela noite, em especial, havia os trovões. Incessantes e ruidosos, eles se aproximavam em um alvoroço infernal, como se os próprios céus estivessem reclamando e lançando pragas.

O padre ajeitou a gola da batina e suspirou. Uma cascata branca de vapor se ergueu no ar gelado da sala para desaparecer em seguida. A casa era fria. De fato, muito fria. Mesmo no verão, com o sol a pino, a atmosfera daquele lugar fazia tremerem os ossos. No inverno, a sensação era quase insuportável. As árvores titânicas que cercavam a propriedade pareciam as responsáveis, mas havia algo mais, um frio psicológico, espiritual, quase metafísico: algo bastante difícil de definir, é verdade, mas bastante palpável.

E havia o anfitrião. Deus, como aquele homem lhe causava calafrios! Fosse pelos olhos sem expressão, pelo meio sorriso que parecia petrificado na face pálida, ou pelo jeito estranho como montava suas frases, sempre colocando mais espaço que o necessário entre as palavras. Jonathan Glander sabia realmente como ser desagradável. Somava-se, a fala pesada, as frases que pareciam não ter um sentido completo. Era como conversar com um robô mal programado. De modo geral, um efeito sutil, que poucos perceberiam da primeira vez. Mas o padre Daniel Wolg estava habituado, já que ao menos uma vez por mês ele era convocado a aparecer para uma visita. Era algo que, como sacerdote, não podia recusar. Se bem que, nos últimos meses, Jonathan Glander andava sumido da igreja, o que dera ao padre uma singela esperança de que o sujeito tivesse resolvido se mudar para outra cidade, ou ao menos se convertido a uma daquelas religiões protestantes barulhentas. Era uma esperança vã, o padre sabia, pois o anfitrião era um católico fervoroso, daqueles que assustam até os religiosos mais dogmáticos. O sujeito teria se dado bem na idade média.

 

Mas Jonathan Glander era um bom homem. Ou ao menos era o que diziam dele na cidade, nas pouquíssimas vezes em que ele e a família apareciam por lá. A verdade era que o homem não era malsucedido, ao menos financeiramente: ganhara muito dinheiro negociando a lã de suas ovelhas e dirigindo um negócio de fabricação de móveis tocado basicamente por ele mesmo e um ajudante. Fora isso, mostrava-se quase sempre um homem gentil, bem articulado e gostava de ajudar os mais necessitados. Levava a típica vida de pai de família de cidade pequena, sempre consertando ou construindo coisas. Era um homem do campo, acima de tudo, embora gostasse de se vestir de forma mais elegante que a maioria deles. É verdade que a camisa marrom xadrez parecia não combinar com a calça social cinza, mas isso era uma questão de estilo. Além do mais, o cabelo loiro cuidadosamente penteado corrigia parte do problema das roupas, mas apenas parte.

 

Mas por que raios o sujeito o havia chamado até ali em uma noite de tempestade alegando extrema urgência, como se ele fosse um maldito médico e não um simples sacerdote. Daniel Wolg coçou a cabeça com as pontas dos dedos e ajeitou a gola da batina mais uma vez. Tentava chamar a atenção, esperando que o anfitrião começasse a conversa, o que não aconteceu. O padre ainda pigarreou uma ou duas vezes, mas o efeito foi o mesmo, e o gesto esbarrou na face inerte de Jonathan Glander. Era como estar diante de um daqueles gnomos de jardim. Daniel Wolg finalmente perdeu sua paciência e perguntou:

 

–Então, alguma novidade por aqui?

 

–Não, por quê? –perguntou o anfitrião.

 

“Porque você me chamou, idiota”. O padre sentiu vontade de esbofetear o sujeito, mas acabou se controlando e engoliu uma boa dose da cachaça sobre a mesa. A coisa o queimou por dentro, espantou o frio, ou ao menos os calafrios.

 

–Então... Soube que matriculou Willian em uma escola para padres.

 

–Sim. –respondeu Jonathan Glander. –A mesma na qual estudei quando garoto.

 

–Isso é bom! –exclamou o padre, sem muita certeza. –Ele está feliz?

 

–Feliz? –perguntou o anfitrião, como quem se depara com uma palavra desconhecida. –Não sei, mas ele precisa aprender.

 

–Aprender?

 

O padre estava de fato confuso.

 

–É. Você sabe: aprender...

 

–Sim, sim! Aprender... E sua esposa e filha? –ainda perguntou o padre, tentando um assunto mais agradável.

 

–Elas... Se foram.

 

Daniel Wolg gastou um tempo considerável tentando decifrar o real significado do verbo ir naquela frase ambígua, mas acabou desistindo. O casal tinha outra propriedade, ainda mais isolada do centro da cidade. Também tinha parentes em uma cidade próxima. Devia ser algo do tipo, e apenas isso. Mas o calafrio na espinha foi inevitável.

 

–Vi a igreja que você está construindo lá fora. –disse o padre, buscando novamente outro assunto. –Parece muito bonita!

 

–Obrigado!

 

–Deve ter dado muito trabalho.

 

–Seis dias. –respondeu o homem. –O sábado foi feito para o descanso.

 

–Seis dias? Certo! –exclamou o padre. Ninguém construiria uma igreja em seis dias. –E quais materiais você usou?

 

–Basicamente, madeira e carne.

 

–Carne? –perguntou o padre num sobressalto.

 

–Sim. Madeira é carne. Carne de árvore.

 

Daniel Wolg se deu por vencido. Manter uma conversa com Jonathan Glander era menos agradável que abraçar um ouriço. Naquele dia, em especial, o homem parecia ainda mais alucinado. Então o padre desistiu e foi direto ao ponto.

 

–Por que me chamou? Algo Importante? Algo que não pode ser resolvido durante o dia?

 

–Sim, algo muito importante. –respondeu o anfitrião. O princípio de um sorriso brotou nos cantos de sua boca e se petrificou ali. Seu olhar ficou ainda mais vidrado. –Quero que veja algo. Algo muito bonito.

 

–Certo. –respondeu o padre. –E onde está?

–Está na igreja.

 

O visitante se ergueu.

 

–Tudo bem! Vamos até lá!

 

Eles caminharam até a porta. Graças à claridade dos trovões, o caminho até a pequena igreja de madeira, ainda sem pintura, ficou mais fácil. Ter uma igreja no quintal de casa não era para qualquer um, o padre Wolg tinha de admitir. O caminho subia por uma pequena encosta. O terreno era um tanto íngreme, mas Jonathan Glander havia revestido a trilha com pedras antiderrapantes. Mesmo assim, o padre Wolg quase escorregou por duas ou três vezes, tamanha a força da chuva. Chegou a praguejar baixo da última vez, torcendo para o anfitrião não ouvi-lo. Com um sujeito fanático daqueles, era preciso evitar acidentes.

 

Era estranha, o padre refletiu, a forma como sempre chovia quando ele visitava Jonathan Glander. O homem parecia atrair o mal tempo como um ímã. E a chuva estava engrossando, ficando mais violenta, o que não pareceria possível dois minutos atrás. O padre apressou ainda mais os passos, cobrindo a cabeça com seu casaco, para não se encharcar ainda mais. O resfriado à noite seria quase inevitável, dada sua baixa tolerância ao frio. Já o dono da casa caminhou sem pressa e não fez qualquer esforço para se proteger das gotas extremamente frias, nem para acompanhar o ritmo do padre. De qualquer forma, chegaram à porta da capela quase ao mesmo tempo, dado o comprimento dos passos de cada um. Já na porta, o padre analisou o trajeto enquanto retomava o fôlego: duzentos, talvez trezentos metros entre a casa e a capela, mas parecia muito mais. Um trovão iluminou a face do anfitrião enquanto ele girava a maçaneta, e o padre não gostou do que viu. Jonathan Glander estava ainda mais absorto: sua face era apenas um vazio, uma mancha, algo que o padre Wolg não saberia descrever se alguém lhe perguntasse.

 

Se, do lado de fora, a igreja era simples, por dentro, era uma verdadeira obra de arte. Duas fileiras de bancos negros que acomodariam cinquenta pessoas tranquilamente. Paredes de madeira envelhecida, num estilo rústico mas impressionantemente clássico, erguiam-se do chão brilhoso. Os vitrais da janela exibiam cenas da trajetória de Cristo ao Calvário. Nas paredes, imagens realmente convincentes de anjos e santos. No altar, a Virgem Santíssima com o filho morto nos braços de um lado; do outro, uma escultura muito parecida da virgem, agora ninando o pequeno Cristo. Mais ao canto, anjos tocando as trombetas do apocalipse. Mas a imagem que mais chamava a atenção era a de Cristo crucificado. De seus olhos, escorria uma lágrima de sangue. Era convincente.

 

–Belas imagens. –elogiou o padre Wolg. –De onde Vieram?

 

–Foram esculpidas. –afirmou Jonathan Glander.

Obviamente não caíram do céu prontas, pensou o padre, sem muita paciência, mas deixou passar.

 

–E quem as esculpiu?

 

–Eu mesmo as esculpi. –respondeu o anfitrião, como se aquilo não fosse nada.

 

Quem diria, Jonathan Glander era um artista. E um dos bons! Quase um Michelangelo reencarnado. O padre havia estudado arte sacra no seminário: foram apenas dois semestres, era verdade, e ele não era nenhum Umberto Eco, mas sabia reconhecer um bom trabalho quando o via.

 

A iluminação no interior da igreja tornava tudo mais bonito, dezenas de lamparinas ardendo em um tremeluzir de chamas nervosas. E ainda havia os grandes espelhos que colaboravam com o resultado, seis ao todo, três de cada lado da igreja, no exato espaço entre os vitrais. Fora o aroma das flores e cravos. No fim, era como estar em outra dimensão, talvez um pouco mais perto do céu.

 

–Esta igreja parece maior do que a nossa. –afirmou o padre, visivelmente espantado.

 

–Na verdade, tem pouco mais de dois terços do tamanho. –respondeu o anfitrião. –A difração dos espelhos é que a faz parecer maior. Por isso os espelhos são côncavos e não convexos.

 

Foi certamente a coisa mais inteligente que o padre ouvira naquele dia. Daniel Wolg estava a ponto de mudar de ideia sobre o dono da casa, quando percebeu algo incomum. No canto oposto do altar, havia uma pedra bastante estranha. No primeiro momento, o padre relutara em aceitar que aquilo fosse de fato uma pedra. De longe, a coisa parecia muito uma mão gigante. Sobre ela, repousava algo vermelho. Um calafrio rasgou as costas do padre.

 

Daniel Wolg caminhou lentamente até o altar. Seus temores, os piores dele, foram lentamente se materializando. De início, ele se recusou a aceitar que havia algo morto sobre a pedra. Mas era lógico que havia, já que ele podia distinguir os pedaços e o sangue. O padre então se recusou a aceitar o que seu inconsciente já havia decifrado.

 

Uma ovelha... Era uma ovelha... Tinha de ser uma ovelha... Jonathan Glander criava ovelhas, há muito tempo. Talvez fosse louco o suficiente para sacrificar uma ovelha, apenas isso. Mas, quando o padre percebeu os cabelos e as mãos, tudo enfim se revelou diante de seus olhos. Ele ainda se aproximou mais alguns passos, relutante, até sentir o cheiro nauseante do sangue quente. Algo amargo revirou em seu estômago. Ele sentiu o início de uma tontura muito forte, mas a raiva o encheu de uma força sobrenatural. Sobre a pedra, estavam as duas mulheres da família. Seus pedaços dispostos simetricamente formavam duas pirâmides, ou algo parecido, uma ao lado da outra. No topo de cada uma, as cabeças.

O padre levou muito tempo para assimilar aquilo. Era loucura demais! Então a voz de Jonathan Glander o arrancou de seu transe.

 

–No início, eu pensei em queimar apenas a pele e o sangue. Mas a lei de Moisés diz: “do sacrifício pelo pecado, não comerás”, então eu as coloquei inteiras.

 

Daniel Wolg girou o corpo para observar Jonathan Glander. Não havia sentimento algum em seu rosto além de uma leve excitação.

 

–O que acha, padre? É isso que nos foi ordenado?

 

–Você as matou? –perguntou o padre, lutando para controlar a raiva.

 

–Sim.

 

–Por quê?

 

–Porque são puras.

 

–Puras?

 

–Sim. Elas não têm manchas. E têm os cascos fendidos.

 

–Elas não têm cascos, têm mãos! –explodiu o padre. –Elas são pessoas, não animais. São a sua família.

 

–Detalhes! –sussurrou Jonathan Glander, sacudindo suavemente a cabeça. Aparentemente, uma pontada de dor passou por sua fronte. Mas aquilo durou apenas meio segundo. Depois, ele voltou a exibir a mesma face inerte. –Detalhes demais...

 

–Eu sempre soube que havia algo de errado com você. Mas isso... Você é louco! Louco! Como se atreve a usar o nome de Deus para isso, sua aberração! Eu vou chamar a polícia! Você vai passar o restante de sua vida na cadeia!

 

Como um furacão, o padre caminhou até a saída. Tentou girar a maçaneta, mas ela não abriu. A porta estava trancada. Foi tarde demais que o padre Wolg se deu conta do real perigo. A raiva o havia cegado até então. Jonathan Glander era muito mais alto que ele, muito mais forte. E andava fazendo muitos exercícios recentemente, era perceptível. Ao encarar novamente o anfitrião, daquela vez com menos convicção, o padre encontrou um homem diferente: o olhar gélido dera lugar a um brilho sádico. Até sua postura mudara, ficara mais ereta, como uma serpente prestes a aplicar seu bote. Havia um martelo em sua mão direita, e parecia extremamente pesado.

 

–De todas as pessoas, achei que você seria o único a entender. –afirmou Jonathan Glander. Até sua voz soara diferente agora, mais firme e sem a pausa robótica entre as palavras, como se ele tivesse simplesmente parado de se conter. –Você é só um maldito infiel, como os outros! Não merece essa batina!

 

O padre ainda pensou em mudar seu discurso, mas era tarde.

 

A tempestade chegou a seu ápice cerca de duas horas depois. Uma explosão de vento, chuva e folhas golpeou a propriedade. Algumas árvores desabaram na floresta quando o vento assobiou com mais força. As que não caíram se agitavam pedindo socorro. Pareciam amedrontadas. Os animais se calaram e fugiram.

 

A batina, de fato, ficava melhor nele. O padre Wolg era baixo, era verdade, mas era muito mais gordo. No fim, alguns pontos com sua agulha concertaram tudo. Jonathan Glander decidira: daquele momento em diante, aumentaria, por conta própria, a dosagem de seus remédios e seria mais cuidadoso com as palavras. A luz de Deus era clara, não havia como negar, mas a escuridão havia cegado o mundo. Daquele momento em diante, ele decidiu, seria padre. Mais do que isso, ele seria Daniel Wolg. Merecia aquilo muito mais que o outro. É verdade que não poderia ser Daniel Wolg o tempo todo, em todo lugar. Teria de encontrar outra pessoa para ser, alguém que emanasse mais respeito. Mais que isso, alguém menos conhecido na cidade.

 

Do lado de fora da igreja, a chuva e o vento o envolveram em um redemoinho, mas ele não tinha medo. Sabia que alguém maior o protegia. Ele ergueu os olhos e esperou. Não demorou muito para que um raio atingisse a cruz no topo da igreja. Uma cascata de faíscas, lascas de madeira e poeira se ergueu metros acima do telhado, para desaparecer em seguida. Em minutos, uma enorme labareda de fogo engoliu tudo o que havia ali. Ele já havia retirado as coisas mais importantes, de qualquer jeito: as imagens, os candelabros, os espelhos e a Mão do Senhor.

 

Na noite escura, seus olhos brilharam vermelhos, enquanto as tábuas de madeira virgem estalavam e gritavam. Era incrível como tudo queimava rápido, apesar da chuva. Era a vontade de Deus! A querosene das lamparinas tinha certamente uma parcela em tudo aquilo, mas uma parcela muito pequena, tão pequena que poderia ser ignorada. Enfim, seu sacrifício fora aceito. A verdade se abriu diante de seus olhos. Agora, ele entendia tudo.

Capítulo 50

 

E lá estava o Mosteiro do Sagrado Coração de Jesus, cravado sobre a montanha, saindo dela como uma besta gigante emergindo do mar. De tão adaptada à paisagem, a construção parecia parte do monte. Na verdade, de fato era. Literalmente. Suas pedras de granito negro haviam sido arrancadas da parte mais baixa da serra, então, no sentido prático, o prédio e seu chão eram uma só coisa. Poucos sabiam disso. Poucos sabiam também que o lugar fora construído para ser um forte de batalha. A batalha, porém, nunca chegara até ali; parara na costa, a quilômetros de distância. O prédio então fora convertido em uma masmorra, mas a guerra não deixara muitos sobreviventes para serem presos, o que se mostrou um verdadeiro desperdício. No fim, só restara a um lugar tão bonito e tão isolado uma utilidade.

 

Mas os garotos que brincavam não pareciam muito preocupados com a história do lugar. O pátio de pedra dividia os lados opostos do prédio, que visto de cima formava uma espécie de U ou C, dependendo da direção observada. Os garotos mais velhos conversavam distraídos, sentados nos bancos de concreto. Os mais jovens se divertiam, correndo ou se escondendo. Eram senhores de doze anos, que já arrumavam suas próprias camas e lavavam e dobravam suas próprias roupas.

 

No terceiro e penúltimo andar do bloco central, o Abade Eduardo Back observava a algazarra dos garotos. Era divertido vê-los brincando daquele jeito. Se pudesse voltar no tempo, teria sido pai. Mas a tradição de sua terra mandava que o filho mais jovem de cada família seguisse o sacerdócio: ele nunca pensara muito a respeito até ser tarde demais. Enfim, já estava velho agora, mas gostava da função para a qual fora designado quase quinze anos antes. Comandar aquele colégio era um orgulho para ele.

 

Em uma das mesas do pátio, debaixo da sombra de uma grande figueira, a jovem freira atendia seus pacientes ainda mais jovens. Um por um, ela os ouvia e aconselhava. Era uma garota de vinte e dois anos de rosto bonito e sorriso simpático. Eduardo Back sempre supôs que o cabelo da moça era encaracolado, mas nunca o vira, por isso não podia ter certeza. Ela havia se formado em psicologia dois anos antes e estava concluindo seu mestrado. Era uma profissional excelente, uma das melhores que o padre conhecera, e uma pessoa muito decente. Fora da madre superiora do convento, uma antiga conhecida do abade, a ideia de deixar a freira atender os garotos. Contudo, fora da própria garota a ideia de fazer o atendimento debaixo das figueiras. Nem parecia uma consulta, parecia mais uma conversa. Ideias modernas que davam resultado. Os garotos pareciam gostar. Eles, coitados, longe dos cuidados da família e abandonados em meio a estranhos, precisavam de uma figura que lhes desse um pouco de paz. Elisa Maia era essa figura.

 

Chegou a vez do jovem William Glander. Ele se sentou à frente da moça. Parecia nervoso. Há quase dois anos, a jovem o tratava. Nos últimos seis meses, por alguma razão difícil de definir, William regredira em boa parte do progresso que havia feito nos meses anteriores. As alucinações, por exemplo, haviam voltado com força nos últimos tempos, algo envolvendo o pai, este morto em um incêndio quase três anos antes. Mas William era um garoto inteligente, apesar da doença, e já começava a melhorar.

 

 –O que acha? –perguntou o Abade, ao homem a seu lado, o homem que, nos últimos meses, funcionara como uma espécie de conselheiro autoproclamado e atendia pelo nome de Saimom Becker. –A garota faz bem a eles, não acha? Os garotos precisam de alguém para conversar.

–Eles têm a Deus para conversar.

 

–Vamos lá, não exagere! Qual foi a última vez que você ouviu a voz de Deus?

 

–Se não viesse de você, eu diria que foi uma blasfêmia. –retrucou o padre, irritado, antes de apontar para a garota um indicador surpreendentemente ameaçador. –Acha mesmo que isso é uma boa ideia? –perguntou ele, as lentes de seus óculos refletindo a imagem da figueira e das duas pessoas debaixo dela

 

–O quê? –perguntou o Abade, tentando entender melhor a pergunta vaga.

 

–Mulheres... Desfilando suas formas entre nós.

 

–Formas? Por Deus, homem, a roupa dela tem mais tecido que uma cortina.

 

–Não é essa a questão.

 

–Então qual é a questão?

 

–Pecado, padre. Bastou uma prostituta entre o povo para fazer Israel pecar.

 

–Não foi uma só prostituta, foram várias, centenas delas. E ela... –o Abade apontou para a garota um indicador bem menos ameaçador. –Ela não é uma prostituta...

 

Eduardo Back abandonou a janela contrafeito. As conversas com o padre Becker sempre o cansavam. O sujeito era um arrogante atrasado. Um arrogante atrasado com mais diplomas do que ele já vira na vida, mas, ainda assim, um arrogante atrasado. Seu conhecimento da bíblia era fantástico: o sujeito se lembrava de passagens que ele mesmo raramente se lembrava, incluindo a localização precisa dos capítulos e versículos, mas parecia ter certa dificuldade em relacionar informações e significados, como alguém que aprende mais decorando que estudando de fato, o que se tornava decepcionante vindo de alguém com um doutorado em teologia.

 

–Por Deus, homem, você é muito antiquado! –grunhiu o abade.

 

–Talvez eu realmente seja. –afirmou o padre, sem retirar os olhos da freira e do garoto. –Talvez seja apenas um homem bastante protetor.

 

No pátio, a conversa prosseguia

 

–Lembre-se, William, você precisa se concentrar. –afirmou a freira. –Os remédios que o padre Back lhe receita podem ajudar, mas você precisa se esforçar.

 

–Às vezes é difícil! –disse o garoto. –As vozes e as imagens... Elas não param.

 

–Lembra-se do que conversamos? As vozes, as que não são reais, estão na sua mente, não nos seus ouvidos.

 

–Eu sei... –afirmou o garoto, massageando a nuca com as mãos. –Mas tem sido difícil! Muito difícil! As coisas são confusas!

 

A freira observou todo aquele sofrimento com um aperto no coração e apertou as mãos trêmulas do garoto. No andar de cima, por trás de seus óculos espessos, os olhos do falso padre Becker se estreitaram.

 

Tudo começara numa tarde de verão, pouco mais de seis meses antes. Ele estava melhor. Os remédios, depois de tanto tempo, estavam fazendo efeito, e ele estava até mesmo jogando bola com alguns garotos de sua idade. Geralmente, tinha medo deles, mas não naquele dia. Dois pares de sapatos, nos cantos opostos do gramado, serviam como traves. As traves de verdade eram muito grandes, e o jogo ficava meio sem graça com elas.

 

Na primeira vez que a bola chegou a seus pés, William a chutou com força. Aliás, com tanta força que a coisa fugiu do gramado extenso e deslizou pelo morro íngreme. Em sua mente, aquilo era o máximo, apesar de ser a trave errada. Os garotos de seu time certamente teriam ficado muito bravos se ele tivesse marcado, mas ele errou feio, e agora a preocupação maior era recuperar a bola. Ele olhou para Roger, o garoto mais gordo e mais alto dali, que ocupava a função de macho alfa da matilha.

 

–Está olhando o quê, retardado? –perguntou o garoto.

 

Roger estava particularmente gentil naquela manhã. Por bem menos, já tinha obrigado os outros garotos a passar por humilhações que nem o Diabo seria capaz de pensar.

 

–Vai pegar a bola, ou eu te jogo lá embaixo!

 

William obedeceu. Nem as palavras ásperas dos colegas seriam capazes de assustá-lo naquele dia. Ele deslizou pela encosta, inclinando o corpo para trás para não rolar desfiladeiro a baixo. A bola ficara presa na copa de uma árvore, dez metros abaixo do topo do morro. Ele desceu um pouco mais e a alcançou. Era estranho como, naquele monte, as coisas que deveriam estar acima da gente estavam abaixo: as copas das árvores, por exemplo, mesmo aquelas que cresciam, altas e tortas, nas paredes do monte. Era um efeito interessante, quase como se o mundo estivesse de ponta-cabeça.

 

William apanhou a bola. Foi inicialmente de relance que viu o homem sentado em uma pedra, no meio de uma trilha, quase cinquenta metros abaixo. O sujeito esfregava as mãos na frente de uma fogueira e acenou para ele quando o viu. Exibia um sorriso alegre. Era seu pai, que estava morto há anos. Parecia muito mais forte, era visível, mas William não teve dificuldade em reconhecê-lo. O garoto não se importou a princípio. Vira o pai várias vezes, mesmo depois do incêndio, só que aquele parecia mais real. Elisa o havia ensinado a reconhecer as alucinações: a ausência de sombras, os rostos sem contornos claros, a face congelada como em uma fotografia. Aquela alucinação era das boas, ele teve de reconhecer. Os olhos até piscavam como os de uma pessoa de verdade. Então aconteceu: a imagem colocou o indicador na frente da boca, pedindo silêncio. Não, ele não esperava aquele gesto. Geralmente, era capaz de prever o que as alucinações fariam, já que, obviamente, elas estavam dentro de sua cabeça. Mas aquilo fora completamente inesperado.

 

Uma gota de suor escorreu em seu rosto enquanto um arrepio gelado percorria suas costas de cima a baixo, como um choque. Não era uma alucinação. Ele deixou a bola cair e correu. Acabou passando pelos outros garotos sem vê-los e mergulhou na proteção do mosteiro.

 

–Ei, retardado, onde está a bola? –inquiriu o macho alfa da gangue de futuros padres.

 

William correu para sua cama, no quarto enorme e cheio de beliches, e se atirou sobre o colchão. Estava assustado. Seu pai estava ali, de pé, com uma expressão de desaprovação, mas aquele não era de verdade. O garoto ergueu as mãos e apertou os olhos com força. Depois, em um acesso de fúria, estapeou sua própria cabeça até que o medo, pouco a pouco, foi se dissipando. Em minutos, adormecera. Os remédios ajudavam a dormir mais fácil. Era quase como desmaiar.

 

Algum tempo depois, ele não sabia exatamente quanto, não muito, mãos fortes o arrancaram da cama e o puxaram pela gola da camisa, machucando seu pescoço. Então ele foi atirado contra a parede e se machucou de verdade. Suas costas estalaram.

 

Era o garoto Roger Keller, com o rosto muito próximo do seu, olhando-o de cima. As mãos fortes apertavam sua gola. William gemeu.

 

–Para com isso, Roger! –disse outro garoto.

 

Aquele era moreno, quase tão alto quanto o outro, mas muito mais magro. Era Fred Ramirez, o macho beta do grupo, um garoto bem mais legal que o companheiro.

 

–Quer se juntar a ele? –perguntou Roger, e Fred abaixou o olhar.

 

–Me solta! –grunhiu Willian.

 

–Está vendo meu braço? –perguntou Roger. Havia um arranhão feio em seu cotovelo. –Isso foi culpa sua. Eu tive de buscar a bola e acabei escorregando.

 

–Me solta! –repetiu William, agora com mais força.

 

Roger ignorou os protestos e concluiu:

 

–Você vai lamber! Vai lamber até não restar nem um pouquinho de sangue. Depois vai lamber de novo.

 

–Não, eu não vou. –disse Willian, quase sem fôlego.

 

–Vai sim. –retrucou o macho alfa, apertando o braço catinguento contra sua cara. –Lambe, cachorrinho!

 

Repentinamente, Willian explodiu: um grito alto e furioso, que faria um leão bater em retirada, numa voz grave demais para alguém tão jovem. Ele agarrou o garoto maior e o empurrou. Roger, agora indefeso, viu-se correndo de costas até a parede oposta. Seus pés quase se ergueram do chão. Então uma mão menor que a dele mas incrivelmente forte o acertou. Um dente amoleceu na mesma hora, ele pode sentir, enquanto seu corpo grande e pesado desabava. William estava sobre ele agora, irreconhecível, a face contorcida em uma careta de diabo, os braços batendo e batendo numa fúria que parecia saída do inferno. O rosto de Roger foi se enchendo de marcas rochas, cada vez maiores e mais inchadas, até ficar irreconhecível. Ele já estava banguela de um dos dentes da frente e o outro estava prestes a cair.

 

A coisa toda durou um bom tempo. Fred e os outros garotos precisaram de muita coragem, mas saltaram sobre William e o seguraram para evitar um assassinato. Mesmo em doze, era difícil segurar o garoto. Roger havia encharcado as calças e agora erguia os braços molengas pedindo socorro e choramingando. No dia seguinte, desistiria do mosteiro e voltaria chorando para casa.

 

Os padres chegaram minutos depois. Willian precisou de um sedativo para se acalmar. Fazia muito tempo que não espancava ninguém, desde a morte do pai pelo menos. O abade não sabia o que fazer. Chamou Elisa. Ela, nas semanas seguintes, conseguira convencer o garoto de que aquilo era outra miragem, por mais real que parecesse. William acabou aceitando a ideia. Aquilo seria realmente loucura demais, mesmo para alguém tão maluco quanto o pai. Porém, seis meses depois, o fatídico dia chegou: o dia em que seu pai entrou pela porta da sala dizendo ser outra pessoa. O pior de tudo, todos o estavam enxergando.

 

Agora, diante da garota, debaixo da figueira, ele estava prestes a chorar.

–Eu estou com medo. Eu estou com muito medo.

 

Ela segurou sua mão. Na mente do garoto, naquele instante, a freira pareceu gigante. Gigante como Deus, quem sabe como Jesus. Melhor, gigante como aquele desenho da Virgem Maria no corredor. Tinha, talvez, o tamanho do pai. Talvez pudesse enfrentá-lo.

 

–Eu estou aqui. Nada vai acontecer a você.

 

A garota havia concluído seu trabalho. Apenas palavras não resolveriam daquela vez. O garoto precisava de um sedativo forte. Seu corpo tremia dos pés à cabeça. Elisa estava prestes a se levantar para pedir ajuda ao abade quando William, em um movimento quase reflexo, como que para não deixá-la partir, agarrou seu braço com força, quase a ponto de machucá-la. O garoto estava realmente com muito medo, mas precisava desabafar com alguém. Sua própria mente não ajudava muito, e os remédios deixavam o raciocínio um tanto lento, uma verdadeira tortura para alguém que precisa realmente pensar. No fundo, William sabia que deveria ficar de bico fechado, que tudo aquilo era perigoso demais, mas realmente precisava de ajuda.

 

–Não são as alucinações. –disse ele. –Eu preciso contar uma coisa...

 

 

Segundos depois, William partiu, de cabeça baixa, derrotado. Através dos vidros da janela, o falso padre o observou. A jovem freira se ergueu e caminhou, cambaleante, por alguns passos. Olhou para cima, como se percebesse que alguém a vigiava, e reconheceu a figura na janela. A garota encarou aquela presença diabólica, completamente assustada: a boca semi-aberta e os olhos vibrantes não escondiam o pavor. O padre a encarava com sua face inerte, seus olhos brilhando como os de um animal noturno. A freira detestava aquelas lentes fantasmagóricas, mesmo antes de saber a verdade sobre o homem. Então aconteceu: o sujeito tirou os óculos, em um movimento lento e cadenciado, quase em câmera lenta. Era a primeira vez que ela via o homem sem aquelas lentes. Por mais assustador que fosse o brilho espelhado, os olhos naturais eram piores: cruéis, frios e violentos. Se ela ainda tinha dúvidas, abandonara todas naquele exato momento.

 

A garota se desprendeu do padre e partiu, em um trote muito rápido. Se não chamasse muita atenção, correria.

 

–Tem razão, padre. –disse o homem na janela. –A garota não é uma prostituta.

 

–Enfim concordamos em alguma coisa. –respondeu o Abade, sem dar muita atenção.

 

–Se ela fosse uma prostituta, não serviria.

 

–Mas de que raios você está falando agora? –perguntou o abade, irritado mas sem muita vontade de começar outra conversa.

 

–Nada importante.

 

O padre deixou a sala.

 

Elisa maia chegou ao convento em menos de uma hora. O motor de seu carrinho velho estalava. Ela nunca o forçara tanto. Pouco antes do anoitecer, a madre e uma companheira de quarto a interrogaram sobre o que a preocupava tanto. Ela sentiu vontade de contar tudo, mas não teve coragem. Não queria colocar outras pessoas em perigo. Na manhã seguinte, procuraria a polícia. Quando a noite chegou, ela trancou bem a porta do quarto só por garantia. Mal sabia que o homem de quem tentava se esconder já conhecia muito bem o convento, incluindo o interior de seu quarto.

 

Elisa se deitou e tentou dormir, ao menos por algumas horas. Foi em vão. Ela não conseguiria fechar os olhos tão cedo. Não com o que sabia agora. O que mais a assustava: o padre Saimon Becker era uma pessoa real, tinha diplomas, carta de recomendação e trocara cartas com o abade por quase seis meses. E, se o homem no mosteiro não era quem dizia ser, só Deus poderia saber onde estava o verdadeiro padre Becker.

 

William despertou no meio da madrugada. Estava em sua cama. Não, ele não deveria estar ali. Passara boa parte da noite em um dos bancos do pátio. Queria vigiar o pai para não permitir que fizesse qualquer mal à freira, a seu grande amor, mas os remédios, sempre eles, deixavam seus olhos pesados demais, de modo que agora ele se descobrira em sua cama, ouvindo a respiração e o ronco dos outros garotos. Alguém o carregara até ali certamente.

 

Em um salto, William deixou sua cama, silencioso como um gato, e correu até o quarto que fora reservado ao padre Becker. A porta estava apenas encostada. Ele a abriu lentamente, lutando contra o medo. No interior do cômodo, tudo espantosamente organizado: a escrivaninha lustrosa, a estande bem arrumada, a cama com os lençóis impecáveis. Não havia ninguém ali. O coração do garoto disparou ainda mais. Se o pai não estava no quarto, só havia um lugar onde poderia estar.

 

William correu, desceu as escadas como se elas nem existissem e disparou pela porta dos fundos. Morro abaixo, era mais fácil correr. Ele desceu a serra a uma velocidade absurda, cortando caminho pelas trilhas que conhecia já tão bem e saltando os morros, mesmo os muito altos. Chegou ao pé do monte menos de uma hora depois, mais rápido que um carro. Estava encharcado de suor. Suas roupas se apegavam ao corpo. Sua pele molhada ardia no frio da madrugada, mas ele não se importou. Queria salvar a garota. Apanhou uma pedrinha, que atiraria com cuidado na janela da freira, para acordá-la. Os dois ficariam ali, juntos, a salvo do perigo.

Quando William esticou o braço para lançar a pedra, percebeu o vulto escuro. Estava na estrada, próximo ao celeiro. Naquele momento, o garoto soube que era tarde demais. Lentamente, com suas pernas quase paralisadas pelo medo, ele caminhou em direção à figura sombria, que em seguida desapareceu na escuridão do celeiro. William o seguiu.

A coisa estava em um dos cantos: uma pilha de partes femininas amontoadas. Sobre o corpo estilhaçado, os intestinos; sobre os intestinos, as mãos e os pés. Sobre tudo isso, a cabeça. O rosto preservara a dor que o corpo sentira. A expressão era de apavorar. William passou pelos animais sonolentos e se ajoelhou em frente a pilha de membros. O cheiro de sangue e excremento era nauseante. Havia velas em volta do corpo, muitas delas. O pai as colocara ali, como se fosse um maldito sacerdote. As chamas dissipavam parte da escuridão, mas esculpiam formas diabólicas nas paredes e no teto, formas cheias de cascos e chifres, que bem poderiam ser apenas as sombras dos animais sob a distorção do fogo, mas que também poderiam ser outra coisa, algo muito mais sombrio, algo maldito.

 

O garoto ergueu a face e encarou a figura de olhos brilhantes, antes de gritar:

 

–Por quê?!

 

–Porque todo pecado precisa ser cortado pela raiz.

 

–Pecado? –perguntou o garoto entre dentes. Espumava de raiva. –Como ousa?

 

Os animais se alvoroçaram, como que pressentindo a fúria iminente. Em um acesso de ira, William atacou: socos, chutes, cabeçadas, arranhões, mordidas... Tudo em vão. Nada atingia aquela figura malévola, que parecia feita de sombras e de rocha. Ele foi jogado ao chão sem o menor esforço. Seu rosto foi enterrado em uma pilha de fezes de boi. Não bastasse a humilhação, havia o gosto nojento. Seu braço foi torcido. A dor o fez gritar.

 

–Me deixe em paz! –gritou o garoto, enquanto se debatia.

 

–Sem mim, você é fraco! –afirmou o pai.

 

Depois de uma última explosão de raiva, o garoto foi solto. Estava exausto e completamente entristecido agora. Com muito esforço, conseguiu se erguer do chão. Chegou a caminhar alguns passos, mas não teve forças para fugir e acabou caindo de joelhos. Ali, agachado, ele implorou:

 

–Vá embora! Por favor, apenas vá embora!

 

Uma mão carinhosa e muito forte pousou sobre seu ombro. Então a voz do pai surgiu novamente, desta vez macia e compreensível como a de uma babá.

 

–Ah, meu filho, quando você vai perceber? Eu nunca o deixarei sozinho!

 

Ali mesmo, o garoto chorou. O choro desesperado de quem percebe que está amaldiçoado para sempre.

Capítulo 51

 

Eric guiava a viatura por mais uma estrada deserta de chão.

 

–Cara, o capitão estava certo, você não devia estar aqui! –disse o companheiro de ronda.

 

Bernardo era um bom sujeito. Estava realmente preocupado com o colega.

 

–E o que eu deveria fazer?... Ficar em casa e esperar pelo corpo da minha noiva.

 

O pé de Eric pesava cada vez no acelerador. Ele nem se dava conta. A velocidade era absurda para uma estrada de terra tão estreita.

 

–Você quase matou aquele homem lá atrás. Ele estava colaborando.

 

–Ele se recusou a abrir a porta.

 

–E você quase atirou nele. Ele cultiva maconha no porão. Você quase atirou no cara por causa de alguns vasos maconha. Você tem que se afastar. Eu não posso obrigar você, não posso colocar uma arma na sua cabeça, mas você precisa parar.

 

–Eu preciso encontrá-la! Depois que eu encontrá-la, sigo seu conselho, eu juro.

 

–Tudo bem, tudo bem! Apenas tente se acalmar. E diminua isso!  Não vamos a lugar algum se o carro bater.

 

Eric diminuiu, mas muito pouco, o suficiente para manter o controle. O carro chegou a um trevo e cortou para outra estrada.

 

O rádio soou acima do ruído do motor.

 

–Atenção! Atenção!... Todas as viaturas devem se dirigir para o último sítio na saída norte da cidade.

 

–Tem alguma coisa na saída norte da cidade? –perguntou Bernardo.

 

Eric ouvia com atenção.

–Eles descobriram algo.  –disse ele. –Estamos perto.

 

Uma ponta de esperança ressurgiu em seu rosto apesar da preocupação. A viatura guinou com violência. Os pneus cantaram. Eric retornou pelo caminho oposto, atingiu o trevo pelo qual haviam acabado de passar e tomou uma estrada de asfalto.

 

O rádio soou novamente. Era o delegado agora.

 

–Atenção, isso é importante. Andem em dupla e tenham cuidado! O assassino ainda está vivo.

–O quê? –perguntou Eric, e sua face foi da apreensão ao pavor em um segundo.  –Não é possível!... Não é possível!...

 

A viatura acelerou ainda mais. Faltava pouco para eles saírem voando. Bernardo se segurou como pode e soltou uma praga.  Outra curva, ainda mais violenta que a primeira, e eles entraram em uma estrada comprida de chão.

 

–Estamos perto! –grunhiu Bernardo. –Vá devagar!

 

A voz do delegado voltou a surgir no rádio.

 

–Atenção, todos! O assassino é o padre Saimon Becker. Repetindo, o assassino é o padre Becker.

 

–O padre, Becker? –perguntou Bernardo. –Deus do céu! Eu sempre achei aquele cara muito maluco.

 

A última frase saíra de forma inconsciente. Um maluco, pensou Eric. Amanda estava sozinha com um maluco que matava e esquartejava mulheres. A viatura fez outra curva. Era a última. O carro acelerou até uma velocidade simplesmente impossível.

 

–A entrada deveria estar aqui! –berrou Eric. –Onde está?

 

–Precisamos voltar e tentar outro caminho.

 

–Não! Não há tempo!

 

Com um movimento brusco do volante, a viatura se atirou acostamento abaixo. O chão era irregular, e os dois homens foram de um lado a outro no interior do veículo. Eric estava vidrado, ainda assim conseguiu controlar o volante e passou entre algumas dezenas de árvores.

 

–Você enlouqueceu? –berrou Bernardo. –Vai nos matar! Devagar!

 

A viatura desceu um morro e subiu outro. Agora eles podiam ver a casa cravada no meio do mato. Eric pisou ainda mais fundo. O veículo reclamou e soltou uma baforada escura, mas eles aceleraram. A viatura ainda passou pelo estreito espaço entre duas árvores antes de cravar suas rodas no lodo do banhado. O motor fervia, e o carro ficou preso na lama escura. Era impossível prosseguir de carro a partir daquele ponto

Capítulo 52

 

Algo arranhava o chão de terra batida do porão. Algo de metal. O padre encostou a marreta gigantesca em sua testa. Segurava-a com apenas uma das mãos, sem o menor esforço, como se a coisa fosse feita de papel. Amanda sentiu o toque gelado do metal e fez um último esforço para manter os olhos abertos. O homem a observou com seus olhos brilhantes e ensaiou o movimento que a mataria.

 

–Você! –disse ele, e soava ameaçador. Sua voz tremia de raiva. –Você o matou! Meu filho. Meu único filho. Como se atreve? Você deveria ser a primeira, sua primeira oferta. Ele seria salvo. Agora, ele está morto. Morto! E você vai pagar! Eu vou esmagar sua cabeça. Vou cortá-la em pedaços. Mas você não será um sacrifício. Não. Você não merece. Vou jogar você aos porcos, como costumávamos fazer. Não restará nada de você para alguém lembrar, só um monte de excremento.

 

Fora da casa, Eric saltou do carro e correu. Havia ainda uns quinhentos metros entre ele e o casarão. O colega de ronda não conseguiu mais acompanhar o ritmo e ficou para trás. Eric corria como um alucinado. Passava sobre o lodo como se ele não existisse. A primeira coisa que distinguiu quando se aproximou da casa foram os cães mortos, estendidos sobre o gramado. Eram bestas gigantes. Foram baleados pouco tempo antes já que o sangue ainda não havia coagulado. Ele tomou fôlego e correu ainda mais rápido. Pensou em usar a porta da frente, mas algo o atraía para o porão.

 

O homem ergueu a marreta. Amanda fechou os olhos. Sabia que o golpe seria doloroso. Estava cansada daquilo, cansada de ser espancada e ferida. Se ele queria matá-la, que fosse em frente.  Não havia mais força para manter os olhos abertos.

 

As duas folhas da porta do porão estavam lacradas por dentro. Eric observou o interior da casa pela fresta que dividia as tábuas. Estava escuro, mas ele conseguiu visualizar o vulto de pé. Os olhos do homem pareciam brilhar. O sujeito erguia algo muito pesado. Havia alguém jogado a seus pés, alguém que seria capaz de reconhecer mesmo naquela escuridão.

 

Num movimento muito rápido, Eric sacou a pistola e estourou a trava da porta antes de arrombá-la. Uma golfada de ar fétido o golpeou, quase a ponto de jogá-lo para trás. A luz do sol invadiu o porão e embaralhou a visão do assassino, que precisou cobrir os olhos para bloquear a luz e localizar o invasor. Tudo aquilo havia levado apenas alguns poucos segundos. 

Eric tentou ignorar o cenário, mas não conseguiu. Havia sangue demais, por todos os lados. O padre lançou os óculos longe, como se enxergasse melhor sem eles, e tateou algo no chão. Era uma espingarda. Eric a percebeu e fez três disparos muito rápidos. Os projéteis cavaram buracos nas paredes, levantaram muito pó e arrancaram lascas de madeira, mas não atingiram o miserável. O padre disparou. O chumbo da escopeta acertou o colete de Eric em cheio e o arremessou para trás com a força de um coice. Um dos estilhaços resvalou o colete e penetrou a carne de seu ombro, fazendo-o gritar de dor. Do chão, num ato quase reflexo, o policial conseguiu dois bons disparos, que acertaram o padre em cheio, enquanto outro disparo da escopeta passava muito próximo a sua cabeça, a ponto de fazer seus ouvidos zunirem. Mais três disparos do policial estouraram as tábuas da parede do porão, mas foi em vão. O padre já havia disparado escada acima, tropeçando nas próprias pernas. O sujeito se fora. Estava ferido, mas não o suficiente. Agora, o único sinal do tiroteio era a fumaça da pólvora e a fuligem da madeira que pairavam pesadas dentro do porão.

 

Eric largou a arma e se ergueu. A dor era imensa, mas ele seguiu em frente. Amanda fora jogada no chão como uma coisa sem valor. Estava incrivelmente ferida. O único sinal de vida era a leve vibração dos pulmões, que já nem podia ser chamada de respiração. Havia um cadáver próximo a ela. Era o corpo de um velho policial.  Eric ergueu a noiva com muita dificuldade e partiu. Amanda estava gelada demais. Seu corpo pendia, sem reação. Bernardo chegou à porta do casarão no  momento seguinte.

–Ele fugiu! –gritou Eric. –Está ferido! Vai!

 

Bernardo obedeceu.

 

Muitas sirenes se aproximavam. Pelo som, Eric reconheceu ao menos uma ambulância. O desespero fez com que ele corresse ainda mais rápido que antes, apesar da ferida em seu ombro, que o fazia literalmente espumar de dor. Ele atravessou o lodo com muita dificuldade, mas não parou nem diminuiu o ritmo. O cansaço era terrível. Seu peito queimava. Suas pernas vacilavam e, em determinado momento, ele parou de senti-las. Não importava. Nada importava. No instante seguinte, ele chegou ao asfalto e quase foi atropelado por uma viatura da polícia. Outras frearam logo atrás, dezenas delas. A ambulância já estava ali. Chegara antes das viaturas. Os paramédicos o viram. Já estavam com a maca a postos e se adiantaram.

 

–O assassino fugiu! –berrou Eric, aos policiais, sem reduzir o ritmo. –Há um policial sozinho lá!

Eric fez um último esforço e apressou ainda mais os passos. Mais do que achou que seria possível. Amanda foi arrancada de seus braços e presa a geringonça de metal em meio minuto. Os homens eram rápidos. A maca mergulhou na ambulância. Os paramédicos embarcaram. Eric os seguiu.

–Rápido! –gritou o líder do grupo, ao motorista, antes mesmo de a porta se fechar.

Os policiais se espalharam pelo sítio. Carlos Dias desembarcou no momento seguinte. Três viaturas chegaram com ele. O delegado correu até a casa velha. Os cães gigantes mortos sobre o gramado impressionavam. O furgão do grupo de resposta tática já estava ali. Foi o único veículo a conseguir passar pelo banhado que cercava a propriedade. O capitão do grupo dividiu seus homens e entrou. O delegado espalhou os outros policiais pelo lado de fora.

–Procurem na mata! Três em três! E olhos abertos!

 

O grupo tático deixou a casa no momento seguinte.

 

–Nada ali. –disse o líder.

 

–A floresta é grande demais. –afirmou o delegado. –Ele não pode fugir.

 

Alguns policias soltaram um cão, que já latia alucinado. O animal partiu com fúria e sumiu no bosque. Segundos depois, soltou um grito de dor. Era mais uma vítima.

 

–Ele está perto. –afirmou um dos policiais.

 

–Vão! –berrou o líder do grupo tático.

 

Os policiais mergulharam na mata. Por um momento, ouviu-se uma verdadeira confusão de vozes e o som de galhos e folhas sendo esmagados. No momento seguinte, tudo ficou silencioso. E passaram-se minutos preciosos até que, finalmente, os policiais retornaram, uns após os outros. Pelas expressões insatisfeitas, não haviam encontrado nada.

 

–Ele desapareceu. –disse um deles.

 

–Ele não pode ter desaparecido. –grunhiu o delegado. –Ele está ferido e sozinho, não pode escapar.

 

Foi então que o som abafado de um tiro ecoou pela floresta. Parecia vir de todas as direções. Todos os homens estavam ali, então o atirador não era um policial. Aquilo não era bom sinal.

 

–Foi um trinta e oito. –disse o líder do grupo tático.

 

–Sim. –respondeu o delegado, observando a floresta a sua volta  –Mas de onde veio o som.

 

 

No interior da ambulância, Eric se afastou o máximo possível para não atrapalhar os homens. Eram três deles. O chefe da equipe de paramédicos era um velho conhecido. Todos naquela cidade se conheciam de alguma forma. Era uma das poucas vantagens de se viver em uma cidade pequena.

 

Um dos homens tomou a pulsação de Amanda.

 

–Sem sinal. –disse ele.

 

O chefe da equipe começou a massagem.

 

Eric viu um dos homens enfiar dois dedos pela boca de Amanda.

 

–Fechado demais!

 

–Intubar! –respondeu o chefe da equipe.

 

Uma mangueira muito grande foi enfiada pela garganta de Amanda. Ela nem piscou. O respirador foi adaptado.

 

–Sopra! –ordenou o líder da equipe, e massageou o peito de Amanda.  –Novamente!

 

–Sem sinal ainda! –repetiu o paramédico que tomava o pulso.

 

Eric acompanhava tudo, estático. As cenas pareciam muito próximas e, ao mesmo tempo, muito distantes.

 

–Mais uma vez! –disse o líder da equipe.

 

–Sem sinal!

 

Os homens prosseguiram com aquilo durante boa parte da viagem. Eric nem sabia quanto tempo havia se passado.

 

–De novo! –gritou o líder da equipe.

 

O sujeito com o balão soprou. Amanda foi massageada. E mais uma vez... E outra... Nada parecia fazer efeito, até que o sujeito segurando o pulso de Amanda suspirou aliviado. A tensão em seu rosto diminuiu.

 

–Peguei! Está fraco, mas está aumentando.

 

–Deu certo! –disse o líder da equipe. –Continua ventilando!

Só então o homem percebeu o sangue jorrando do ombro de Eric. O policial estava branco.

 

–Deixa eu ver isso aí!

 

Eric o segurou.

 

–Ela!

 

–Mas você está sangrando.

 

–Ela! –berrou o policial. Conteve-se no momento seguinte. –Por favor, ela primeiro!

 

–Está bem. Mas pressione esse ombro. Você não está bem.

 

Eric obedeceu e pressionou o ombro ferido com uma das mãos. Com a outra, segurou a mão fria de Amanda. A noiva estava ainda mais gelada. Parecia um cubo de gelo. O rosto... O que acontecera com o rosto? Parecia duas vezes maior que o normal: o hematoma passava do roxo ao azul. O nariz estava quebrado, os lábios rachados. O corpo não estava melhor que o rosto: mordidas, arranhões e escoriações. O joelho esquerdo estava muito inchado. O osso do fêmur rasgava a pele. O ferimento sangrava de forma absurda. Amanda estava nua, com exceção da blusa rasgada, e, por todo o corpo, Eric podia ver as marcas da violência. Por quê, ele se perguntou. Por que com ela?

 

Eric sentiu uma tontura repentina e teve de se recostar para não cair. Estava ali, incapaz de ajudar.

 

–Diego... –disse ele, ao chefe dos paramédicos.

 

–Sim? –perguntou o rapaz, ainda meio irritado pelo grito.

 

–Por favor, não a deixe morrer!

 

O paramédico encarou o rosto desesperado do policial. A irritação passou na mesma hora.

 

–Ela não vai morrer! –respondeu ele, enquanto pressionava uma bolsa de gelo contra o rosto de Amanda. –Eu prometo!

Na casa, os policiais continuavam confusos. Não muito longe dali, na trilha estreita no meio da mata, alguém desabara, alguém que sangrava muito. Outra pessoa se aproximou, passos lentos e decididos.

 

Marcos Hasse observou o assassino de cima. O tiro atingira o padre em cheio. O pescoço do sujeito vertia sangue como um chamariz, e o ar em breve se esvairia de seus pulmões.

 

–Então, é você mesmo? –perguntou Marcos. –Jonathan Glander... Eu estive naquela casa, no dia do incêndio. Eu ajudei a carregar os corpos, ou o que sobrou deles. Nós sentimos... Todos nós. Sabíamos que havia algo errado, só não sabíamos o quê.

 

Marcos se agachou ao lado do padre. Houve um instante de silêncio, no qual apenas o som do sujeito se afogando com o próprio sangue podia ser ouvido.

 

–Você está diferente. Cortou o cabelo bem curto, engordou um pouco, ficou realmente muito forte. Os óculos ajudaram. Eu passei por você dezenas de vezes em todos esses anos, estivemos face a face pelo menos duas vezes, e não o reconheci. Agora você está aqui, e minha filha está morta.

O ferimento no pescoço do sujeito não parava de verter sangue, mesmo assim ele conseguiu esboçar um sorriso. Mas que isso, mesmo com muito esforço, conseguiu dizer suas últimas palavras.

 

–Ela teve o que merecia. Todas tiveram. Queriam corromper meu filho, meu menino. Eu as cortei em pedaços. Elas tinham de sofrer...

 

Havia certamente mais a dizer, mas o homem já não conseguia conter a falta de ar. Falar era impossível daquele jeito.

–Sofrer? –perguntou Marcos, enquanto sacava sua faca de caça do bolso do casaco. A visão da lâmina afiada quase fez o sujeito caído chorar. –Você não sabe o que essa palavra significa. Ainda não...

 

Na casa, os policiais ainda estavam confusos. Os gritos de desespero que pareciam vir de todos os lados só aumentaram a confusão. Lembrava um porco no abate. Os policiais trocaram olhares assustados.

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