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Sétima Parte

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Capítulo 43

 

Eric terminava de vasculhar mais uma fazenda velha. Vasculhara mais de vinte delas desde o rápido da noiva. Bernardo, seu parceiro de anos, estava a seu lado.  Era um rapaz de vinte e poucos anos, moreno, gordinho e pouco mais baixo que o companheiro de farda. Mais uma vez, os dois policiais não haviam encontrado nada. Eric olhou para a mata que cercava o sítio velho e para as árvores intermináveis da floresta. Estava abatido. 

–É tudo grande demais! Nós nunca vamos encontrá-la a tempo.

–Você precisa ter fé. –respondeu o parceiro. –Vamos achá-la. 

 

Os dois embarcaram e partiram. A próxima fazenda parecia um pouco mais conservada. A casa recebera uma camada de tinta na fachada há não muito tempo, dois anos no máximo. Eric bateu com força para chamar quem quer que morasse ali. Não demorou muito, e um sujeito estranho e mal cuidado abriu a porta.

 

–Precisamos fazer umas perguntas. –disse Bernardo. –Podemos entrar.

 

O sujeito tentou disfarçar o susto que os uniformes causaram. Foi bem sucedido, em parte, mesmo assim os policias pegaram algo forçado em seu jeito de sorrir, uma simpatia que não combinava com seu rosto. Mas o homem não parecia grande coisa. Se fosse um bandido, certamente não seria dos mais perigosos.

 

–Claro. –disse ele. –Entrem!

 

Os policiais entraram. Bernardo descreveu o motivo de estarem ali e começou a fazer perguntas. Eric andava de um lado a outro, agitado. Passou pela porta do porão algumas vezes. Percebeu que o sujeito o observava sempre que ele se aproximava dela. Havia algo lá embaixo.

 

–Tem certeza que não viu nada? –inquiriu Bernardo, pela uma última vez.

 

Eric parou propositalmente diante da porta do porão. O sujeito ficou mais tenso, ele percebeu.

 

–Não vi nada. –respondeu o homem.

 

–O que tem lá embaixo? –perguntou Eric.

 

–Nada. –respondeu o homem, exibindo os dentes amarelados em um sorriso sem graça. 

 

–Abra! –mandou Eric.

 

–Não! Não há nada ali. 

 

A porta era frágil. Com um golpe de corpo, ela cedeu. Eric tentou descer, mas o sujeito grudou nele. Parecia desesperado.

 

–Não! Não tem nada ali embaixo.

 

Todo o resto aconteceu muito rápido. Eric empurrou o homem e o golpeou com um soco muito forte. O sujeito tombou e ainda tentou levantar, mas um chute com a biqueira do coturno do policial rasgou sua boca e o mandou de volta ao chão. Foi sem pensar que Eric ergueu a pistola. O disparo só não acertou o homem caído em cheio porque o parceiro de farda puxou a arma. Bernardo ainda precisou acertar um soco forte no rosto do colega para que ele se acalmasse.

 

–Pare com isso. –ordenou ele.

 

–Tudo bem! –disse Eric, limpando o sangue da boca.   –Eu estou tranquilo.       

 

–Eu vou lá embaixo. Você espera aqui! E não mate esse homem!  

 

–Tudo bem! 

 

Eric observou o parceiro descendo as escadas e retornando segundos depois. Quando voltou, Bernardo passou por ele sem encarar seu rosto. Estava visivelmente irritado.

–Dê uma olhada! –disse ele .

Eric desceu e analisou o lugar. Levou as mãos à cabeça no mesmo instante. Tudo não passara de um mal-entendido. Só havia plantas ali. Por pouco, um inocente não fora ferido, ou pior. E não havia tempo para pedir perdão.

 

 

Capítulo 43

 

O carro já havia subido uma boa parte do caminho. A estrada de terra era apenas ligeiramente íngreme, mas era estreita e extremamente escorregadia, de forma que não raramente as rodas traseiras do veículo insistiam em não acompanhar o movimento das dianteiras, como se tivessem vida própria. Wasser tentava acelerar, mas era difícil andar rápido em um lugar como aquele. A seu lado, a legista abriu a boca por duas ou três vezes para perguntar algo, mas acabou desistindo. Era óbvio que o negócio com a caixa no celeiro do convento a havia deixado um tanto confusa, mas ela percebeu que o assunto não seria bem-vindo naquele veículo, então procurou outra coisa para falar.

 

–Então, William estudou naquele mosteiro?

 

–O ensino fundamental, ao que parece. –respondeu Wasser. –Era comum, na época, estudar em colégios religiosos. Alguns alunos se formavam e voltavam para casa, outros permaneciam nos mosteiros e se tornavam padres. Hoje isso já não é tão comum, mas ainda existe.

–William devia ter uns doze anos na época em que a família morreu e continuou estudando no mosteiro por mais quase quatro anos. O mosteiro não o mandaria para a casa de parentes ou algo assim?

 

–Não necessariamente. Geralmente, esses colégios são mantidos pela própria igreja. Na falta de um parente ou um tutor legal, o colégio pode acolher o aluno pelo tempo em que as aulas durarem.

 

Houve um instante de absoluto silêncio. Wasser aspirou o ar gelado com força. Gostava daquele lugar. A maioria dos lugares pelos quais ele passava estavam cheios de lembranças, memórias extremamente fugazes e emoções fervilhantes, mas aquele monte era uma gigantesca vastidão do mais absoluto nada. Fazia bem para sua mente. 

 

Ainda assim, apesar da solidão do lugar, eles se depararam com dois garotos que desciam o monte a pé, conversando distraídos. Usavam uma espécie de uniforme de colégio. Wasser achou aquilo curioso e os acompanhou com os olhos.

–O que foi? –perguntou a legista.

–O quê? –retrucou Wasser.

–O que você estava olhando? Não havia nada ali.

–Eu não estava olhando para nada.  –retrucou Wasser. –Apenas as árvores.

As imagens às vezes enganavam. Os garotos pareciam bastante reais.

–As árvores? –perguntou a médica, visivelmente sem acreditar muito. –Tudo bem! 

Ela estava começando a achar o policial bastante esquisito.

Não demorou muito e uma elevação íngreme surgiu na estrada. O motor do carro quase engasgou e o chassi sacudiu como uma lavadora de roupas velha.

–Vamos, garoto! –implorou Wasser, acariciando o painel. –Você já passou por coisas muito piores. 

A muito custo, o veículo venceu o morro, mas a estrada continuava mais íngreme a partir daquele ponto. Subir se tornou extremamente difícil, mas eles estavam quase na parte mais alta da serra.

A legista apontou para o Mosteiro, que surgia à direita, bem no topo do monte.

–Veja! –disse ela. Estavam chegando perto. Os dois gastaram um bom tempo observando a paisagem. Era de encher os olhos.

Assim que um declive acentuado surgiu no caminho, o carro freou bruscamente, aparentemente sem motivo algum. Os pneus desenharam um rastro na terra e uma nuvem de poeira se ergueu na trilha. Por muito pouco, eles não saíram da estrada. Se saíssem, seria morte certa. A legista observou o precipício que se insinuava além das árvores e sentiu um frio na barriga. Passados alguns segundos, o susto inicial foi substituído por uma fúria alucinada.

–Você está louco? –perguntou ela, aos berros.

Wasser não respondeu. Levara as duas mãos à cabeça pouco antes de frear e continuava do mesmo jeito, como se alguém tivesse acertado sua cabeça com uma pancada muito forte.

–Sua cabeça está doendo? –perguntou a médica, um pouco mais calma, assim que observou a face contorcida do policial.

–Não. –respondeu ele. –Não a minha.

–Como assim?

Wasser saltou e caminhou para a mata. A legista o acompanhou, relutante. O policial mergulhou entre as árvores que separavam a estrada do paredão. Parecia saber exatamente onde estava indo. Parou diante de uma grande pedra quase da altura de um homem com um formato um tanto ovalado. Quando a média o alcançou, ele parecia em uma espécie de transe: uma de suas mãos tocava a pedra, e seus lábios sussurravam algo sem parar. A legista se aproximou na ponta dos pés. Estava ficando realmente assustada. 

–Wasser, o que foi? –ela perguntou.

O policial não respondeu, então ela se aproximou um pouco mais. Conseguia ouvir o que ele dizia agora. Era uma única palavra: Escuro!... Escuro!... Escuro!... A médica tocou o ombro do policial e voltou a chamá-lo. Arrependeu-se imensamente depois, mas já era tarde. Wasser a encarou. Seu rosto estava diferente. E não era apenas o tremor nos lábios e a face contorcida pelo medo. Não, o nariz, os olhos, a boca, o formato do rosto, tudo estava diferente. Era outro rosto.

–Me ajude! –pediu ele. Sua voz também havia mudado. 

A coisa toda durara apenas meio segundo, mas foi o suficiente para arremessar a legista de costas contra o chão tamanho o susto.

–Mas que droga foi essa? –ela perguntou.

–Ele ainda estava vivo quando foi colocado aqui. –afirmou Wasser.

Era ele novamente.

–O quê? –perguntou a legista, com o coração a ponto de sair pela boa. –Quem?

O policial não respondeu. Com muita força e o peso do corpo, conseguiu empurrar a pedra alguns centímetros. A gravidade fez o resto, e a coisa rolou até atingir o paredão de rocha, algumas dezenas de metros à frente. Wasser começou a cavar o chão com as mãos, como um vira-lata procurando um osso. A médica o observou sem compreender. Levou um bom tempo até ela entender o que via. Um crânio acabava de se revelar, pouco mais de quarenta centímetros abaixo do nível do solo. A legista mergulhou de joelhos e ajudou Wasser a cavar. A terra era macia e úmida. Juntos, levaram poucos minutos para desenterrar o corpo. Depois de terminarem o trabalho, eles ainda gastaram algum tempo examinando o que haviam encontrado. Era, definitivamente, um ser humano. E fora visivelmente assassinado: uma morte violenta. Os ossos do rosto foram estilhaçados por golpes muito fortes. O corpo parecia estar ali há um bom tempo.

–Quem é ele? –perguntou Melissa.

–Eu não sei. –respondeu Wasser. –Mas sei que ele ainda estava vivo quando foi enterrado.

A média observou atentamente o rosto do policial. A dor que ele sentira na cabeça era condizente com o estado do rosto do cadáver sob a terra. Mas como?

–Há quanto tempo ele está aí? –perguntou Wasser. 

–Eu não sei muito bem. –respondeu a legista. Ainda estava ofegante pelo susto e pelo esforço. Suas mãos doíam muito e estavam empastadas de terra. –A lama pode impedir em parte a deterioração. Eu diria que dez anos, no mínimo. Mas pode ser bem mais que isso. –Houve um instante de silêncio, então ela perguntou: –Foi o mesmo assassino, não foi?

–Tenho quase certeza que sim. Mas ele só mata mulheres. Por que matar esse homem?

A média nem tinha certeza se era mesmo um homem, mas os fragmentos da roupa pareciam indicar que sim. E havia os restos de uma gola clerical.

–Era um padre? –afirmou ela.

–Sim. –respondeu Wasser. –Estava indo para o mosteiro, mas foi atacado por alguém, provavelmente nosso assassino. Mas para que?

 

Wasser ainda observou o cadáver por algum tempo, até recuperar o fôlego.

 

–Temos de ir. –disse ele.

 

–E deixá-lo aqui? –perguntou a médica. 

 

–Sei que isso é importante para você, mas temos de achar a garota. Ela ainda pode estar viva. 

 

–Eu não vou abandoná-lo. –retrucou a legista, apontando para o corpo. 

 

Wasser observou atentamente os olhos da médica. Ela realmente se importava com os mortos.

 

–Tudo bem! Eu vou até o mosteiro ver se encontro algo. Acha que consegue ficar aqui sozinha? Logo vai esfriar.

–Sim, eu consigo. Pode ir!

Antes de partir, Wasser ainda disse:

–Eu queria pedir para não contar a ninguém o que aconteceu aqui.

–Eu não sei se quero contar a alguém o que aconteceu aqui. –ela respondeu, e estava sendo sincera. Mais do que isso, Wasser percebeu, a mulher estava ansiosa para se livrar dele.

–Vai! –disse ela, por fim. –Eu vou ficar bem. 

Wasser correu. Eles não tinham tempo a perder. Amanda não tinha tempo a perder.

Capítulo 44

O carro alcançou o topo do monte minutos depois, mas o caminho até o mosteiro ainda era longo. Wasser não acreditou que os pneus sobreviveriam à estrada pedregosa, mas eles resistiram bravamente. O sedam sacudia mais do que antes, parecia uma batedeira. Mas ali estava o mosteiro. Era uma construção fantástica: alta larga e muito forte. Paredes todas construídas em granito negro davam ao lugar o brilho fosco característico. O prédio de contornos quadrados possuía três pavimentos, dois laterais e um central, ligados por uma série de pilastras curvas. Entre os blocos laterais, estava o pátio de pedras cinzas, cravejado de bancos e mesas de madeira. À frente de tudo, um espesso gramado. Nas extremidades do gramado, duas traves de futebol. Em pontos isolados, figueiras projetavam suas sombras sobre o pátio.

 

Era um lugar extremamente bonito, mas parecia bastante descuidado. E aparentava estar deserto. Wasser não distinguia movimento algum. No bloco mais à esquerda, no corredor do primeiro andar, três confessionários de madeira se estendiam, um após o outro. Wasser reconheceu a vista. Era o lugar certo.

 

Um homem de quase setenta anos, cabelos brancos e ralos e pele muito vermelha surgiu na porta segundos depois. Em seu rosto, Wasser via serenidade, paciência e honestidade, além do efeito enrubescidor do álcool.

 

–Boa tarde! –saudou Wasser, ao se aproximar. –O senhor é o Abade?

 

O velho sorriu.

 

–Há muito tempo não ouço essa palavra. Em que posso ajudá-lo, meu jovem?

 

Wasser ergueu a identificação.

 

–Tenho algumas perguntas.

 

O homem encarou o policial com mais curiosidade.

 

–Está bem. Pode me acompanhar.

 

A sala do Abade ficava no terceiro andar do bloco central, de frente para o pátio. Era uma sala elegante, repleta de móveis antigos e muitos livros raros, além de muitos retratos, uma infinidade deles. O lugar deixava entrever, em meio aos anos de abandono e desleixo, a riqueza de outras eras.

 

–Eu imaginei este lugar mais movimentado. –afirmou Wasser.

 

–E já foi. –respondeu o abade, enquanto acomodava seu corpo volumoso sobre a cadeira. –Antes da praga das ovelhas, isso aqui era um colégio. Os alunos se esparramavam por todos os lados. Os criadores eram pessoas muito religiosas. Para eles, era orgulho ter os filhos no sacerdócio, ou ao menos estudando em um colégio de padres. Mas, depois da praga, tudo se foi. As pessoas da região são menos religiosas agora. Manter um filho em um internato como este, tão isolado, parece não fazer mais sentido. Hoje somos apenas meia dúzia de velhos aqui. –O homem suspirou desanimado.

 

–E eu sou o mais velho de todos.

 

–Estou aqui para recolher informações sobre um ex-estudante seu. –afirmou Wasser. –Talvez o senhor se recorde dele.

 

–Vou fazer o possível, mas eu aviso que este lugar era muito cheio.

 

–William Glander.

 

–Ah, ele... Claro que eu me lembro daquele garoto. Ele era um rapaz bem problemático, na verdade.

 

–Que tipo de problema?

 

–William tinha problemas mentais. Eu mesmo o tratei durante um tempo.

 

–O senhor é psicólogo?

 

–Psiquiatra. Mas nunca cheguei a clinicar. Não tinha muita experiência na época. Fiz o que pude com aquele rapaz, mas os remédios não surtiam efeito nele.

 

–Qual era o diagnóstico?

 

–Esquizofrenia paranoide, apesar de ele ter apenas doze anos quando chegou aqui. Era grave: delírios, alucinações e explosões de fúria.

 

–Ele era agressivo?

 

–Em momentos raros, sim. Chegamos a separar algumas brigas. A doença piorou quando a família morreu em um incêndio. Eu já não sabia o que fazer, e ele não tinha mais ninguém. Foi então que uma freira apareceu. Elisa... Era formada em psicologia, e atendeu todos os garotos. Você não imagina como crescer em um seminário, longe da família, pode ser difícil para os mais jovens. Elisa era uma grande profissional. Passou quase dois anos com William e o ensinou a perceber a diferença entre o real e a alucinação. Fez bem ao garoto. Mas, certo dia, ela foi assassinada, uma morte horrível. Então William regrediu, ficou violento, chegou a espancar um garoto da idade dele. A coisa foi feia, o garoto ficou com sequelas e a família quase nos processou.

 

–É a respeito disso que eu gostaria de conversar. William foi preso e se matou na cadeia, na cidade natal.

 

–O quê? Por quê?

 

–Ele raptou e matou varias mulheres. As mortes foram muito parecidas com a morte da freira.

 

–William? Não, eu não posso acreditar.

–Eu sinto muito, mas é verdade. Agora, outra garota foi raptada. Precisamos encontrá-la, mas não temos nenhum indício do local onde ela possa estar.  O senhor tem algo de William aqui? Algo que possa nos ajudar?

 

–Temos um porão, onde algumas coisas velhas são guardadas. Não tenho certeza se há algo de William lá, mas posso conferir.

 

–Faça isso, por favor. Estamos realmente sem tempo.

 

O padre desceu e voltou algum tempo depois. Trazia uma caixa de sapato, que largou sobre a mesa.

 

–De modo geral, os pertences que nossos alunos deixaram foram doados. Nós só guardamos objetos pessoais. Isto aqui é uma caixa com cartas e algumas fotografias que William deixou. Foi a única coisa que ficou. William trocava algumas cartas com a irmã mais velha quando chegou aqui, disso eu me lembro.

 

–Preciso da sua ajuda para ser mais rápido.

 

–E o que eu procuro?

 

–Qualquer coisa que possa revelar algum endereço.

 

Havia umas vinte cartas ali, a maior parte da irmã mais velha de William Glander, mas também algumas da mãe. Wasser e o abade começaram a ler.

 

O conteúdo das cartas era revelador. A coisa na casa dos Glanders estava feia: a irmã de William reclamava muito da personalidade do pai nas cartas. Wasser ficou bastante impressionado com tudo aquilo. Era muito pior do que ele havia imaginado antes: não apenas violência física, mas também violência psicológica. Além de tudo, o convívio diário com o medo. Era difícil prestar atenção a qualquer informação debaixo de toda aquela violência, concentrar-se em qualquer outra coisa.

 

–Jesus! –exclamou o padre, ao terminar de ler uma das cartas. Seus olhos lacrimejavam. –Aquele sujeito era um monstro. Como eu não percebi algo assim? Pobre William! Pobre família!

 

–Nós nunca sabemos o que se passa na intimidade de uma casa. Não havia como o senhor saber, padre. Não há como qualquer um de nós saber. E a intimidação constante impede as vítimas de se perceberem como vítimas. É assim que esses monstros agem, pela intimidação.

 

Wasser apanhou duas cartas da mãe de William e as leu. A mulher era religiosa e mantinha um discurso forte de resistência, como se enxergasse sua vida como uma grande prova de Deus. O marido devia ser isso, para ela, uma provação. E uma das grandes. Ainda assim, Wasser podia perceber em suas palavras um medo ainda mais intenso do que o da filha. Os relatos das torturas cometidas naquela casa deixavam isso bem claro. O pai da família era completamente insano, um maníaco violento. Certo dia, quando a filha tentara desafiar uma ordem sua, algo a ver com o comprimento da roupa, o homem fez a garota dormir durante toda a noite com doze cães em seu quarto. Pelas palavras da mãe, os animais não teriam nenhum problema em devorar a garota até os ossos. O pai usou como desculpa a passagem bíblica de Daniel na cova dos leões. O mais impressionante: a esposa aparentemente concordava com ele, embora descrevesse na carta, o tempo todo, o medo que havia sentido. O fato de os animais não terem devorado a filha era, para ela, uma prova de que a garota tinha fé. Ao fim da carta, um grande desabafo. A mulher estava à beira da loucura.     

 

Aquilo tudo era de assustar. Wasser já não compreendia como William Glander havia conseguido passar por tudo aquilo. Quando jovem, o garoto deveria ter sido muito mais violento do que aparentemente era, ao menos pelo que era possível desprender dos relatos do padre.

 

–Como você conseguiu controlar William enquanto ele esteve aqui? –perguntou Wasser, ao abade, arrancando o homem da tortura que eram aquelas cartas. –Depois da morte da freira...

 

–Não controlei. –respondeu o homem. –Havia um padre aqui, na época. Ele era o único, além de Elisa, que conseguia lidar com o garoto.

 

–Ele ainda vive aqui?

 

–Não. Graças a Deus!

 

–Como assim?

 

–O sujeito era estranho. Saimon Becker, era seu nome. Os garotos tinham medo dele. Eu abri uma vaga para professor, na época. Tinha dois ou três candidatos, gente de perto, mas ninguém me agradou. Não de verdade. Então eu fui contatado pelo padre Becker, por carta. Ele morava fora do estado. Tinha um currículo exemplar, com mestrado e doutorado em letras e história e um grande conhecimento em literatura e filosofia. Nós trocamos algumas correspondências apenas para conversar, por alguns meses, até ele preparar tudo. Ele parecia um sujeito brilhante, aberto, caridoso. Foi a maior decepção da minha vida.

 

–Por quê?

 

–O sujeito, pessoalmente, era muito desagradável. Todas as boas impressões que eu tive pelas cartas desapareceram. Ele era arrogante, prepotente, machista e tinha um fanatismo difícil de encontrar em alguém já naquela época, ainda mais em alguém jovem.

 

–Acha que ele exercia algum tipo de influência sobre William?

 

–Ele exercia influência sobre todos os alunos. Era uma figura sinistra. Mas, agora que você mencionou, acho que ele realmente dedicava uma atenção especial a William.

 

–E onde ele está agora?

 

–Soube que ele foi transferido.

 

–Para onde?

 

–Não sei. Eu mesmo não o teria aceitado se soubesse como ele era, mas, com a formação e o histórico que ele tinha, não havia como negar um pedido de transferência. Ele poderia ir para onde quisesse.

 

–E quanto a William? –perguntou Wasser. –Acha que ele pode ter matado a freira?

 

–Eu não consigo acreditar nisso. Ele gostava dela, de verdade.

 

O abade encontrou algo importante em uma das cartas. Seus olhos se iluminaram.

–Veja isso!

 

Wasser leu o trecho que o homem lhe indicara. Talvez fosse o suficiente.

 

–Isso é importante. O senhor pode ter acabado de salvar a vida de uma jovem.

 

–Espero realmente que ajude.

 

–Vai ajudar. O senhor tem um telefone que eu possa usar?

 

–Não, não temos nenhum telefone por aqui ou qualquer forma de tecnologia. Mais há um lá embaixo, na beira da estrada, descendo uns dois quilômetros. É um telefone público, mas está funcionando perfeitamente. É tudo o que temos por aqui. Sinto muito.

 

–É suficiente. –disse o policial. Os dois trocaram um aperto de mãos.

 

–Agradeço a ajuda, padre. Obrigado por tudo!

 

–Adeus, meu jovem!

 

Wasser partiu muito rápido. Já estava no corredor, quando estacou repentinamente. Por pouco, não deixara aquilo passar. Lentamente, como se tivesse visto um fantasma, ele voltou para perto do abade. O velho o observou curioso.

 

–Algo errado?

 

O policial passou pelo padre como se ele não existisse. Seus olhos caíram sobre um dos retratos na parede. Era um retrato pequeno e pouco chamativo. Nele, via-se um grupo de garotos amontoados, fazendo pose, além de três ou quatro padres logo atrás. Os rapazes usavam o já conhecido uniforme cinza e marrom do colégio. Foi um dos padres que chamou a atenção de Wasser. A cabeça do homem quase desaparecia atrás dos garotos e dos outros padres, mas era a pessoa mais alta no retrato. Os óculos em seu rosto refletiam a luz do flash da máquina de forma espantosa.

 

–Essa foi tirada na formatura do penúltimo grupo de alunos, quase dezoito anos atrás, pouco antes da praga. –afirmou o Abade. –Quase todos tinham dezesseis anos, na época. Esse aqui é William.

 

O abade apontou para um dos garotos.

 

–Por favor, diga que esse não é o padre do qual você falou há pouco. –implorou Wasser, apontando para o homem de olhos brilhantes.

 

–Saimom Becker. –respondeu o abade. Até o nome o deixava irritado. –É ele mesmo. Por quê?

 

–Porque conheço esse homem. E o nome dele não é Saimon Becker.

 

Wasser partiu. Agora não estava só apressado, estava em pânico.

Capítulo 45

 

Marcos Hasse estava sentado em um dos bancos da praça de recreação da cidade, diante de uma mesa de concreto com um tabuleiro de xadrez pintado sobre ela. Aquele era um bom lugar para conversar àquela altura do dia. No fim da tarde, quando as crianças da cidade deixassem suas escolas, numerosas e saltitantes como uma nuvem de gafanhotos, aquilo tudo se transformaria em um verdadeiro pandemônio. No momento, só havia ele e o homem que se aproximava.

 

–Boa tarde, Marcos! –cumprimentou o recém-chegado, enquanto se acomodava. Mais uma vez, Alessandro Vargas, seu jovem ex-subordinado na da polícia, o mesmo que o ajudara a localizar os antigos desafetos dias antes. –Precisa de mais alguma coisa?

 

–Sim. Na verdade, preciso de mais um favor.

 

–Como eu disse antes, tudo o que você precisar. Mas precisamos ser rápidos: estou ajudando no resgate da garota.

 

–Sim, só vai levar cinco minutos.

 

Marcos suspirou antes de prosseguir. As ideias em sua mente eram claras, mas era difícil descrevê-las a alguém.

 

–Você já deve saber que o homem que matou minha filha foi preso.

 

–Sim, eu soube. Ele se matou na cadeia, ao que parece.

 

–Isso mesmo.

 

–Então?

 

–O sujeito dirigia uma caminhonete vermelha, uma F350.

 

–Eu soube disso também.

 

–É aí que você entra.

 

–Estou escutando.

 

–Eu dei uma boa olhada na caminhonete depois que a polícia a levou. Os pneus são importados. Eu particularmente nunca tinha ouvido falar da marca. –Marcos escreveu o nome em um pedaço de papel e o entregou ao outro. –Gooba. Aro vinte e seis.

 

–Caramba!

 

–Sim, é um carro bem grande. Um detalhe que, ao que parece, a polícia não percebeu: os pneus são novos. Um mês, no máximo. É a mesma marca de pneus do dia em que Isabela morreu, eu reconheci pelas ranhuras no asfalto, mas não são os mesmos pneus. Foram trocados.

 

–Espera aí! –interveio o recém-chegado. –Está difícil de acompanhar.

 

–Certo. Eu vou explicar. Eu me informei. Há apenas uma loja de pneus na cidade que trabalha com essa marca. Aquela loja... –Marcos apontou para um grande pavilhão comercial, a uns quinhentos metros da praça. –São pneus realmente caros e eles vendem muito pouco. Eu pedi para averiguarem os últimos compradores, mas eles se recusaram.

 

–Então, quer que eu dê um pulo lá e pergunte?

 

–Exato. Preciso da sua identificação da polícia mais uma vez.

 

–Tudo bem. –concordou o policial, ainda bastante curioso. –Eu vou averiguar. Mas, eu não entendo, por que tudo isso se o sujeito já foi pego?

 

–É algo difícil de explicar.

 

–Tente!

 

–Eu vi o cara, bem na minha frente. Ele definitivamente não faz o estilo de quem compra pneus importados, ainda mais tão caros. E eu vi o carro: faróis de milha, bancos de couro e outras coisas do tipo. E a pintura... Você precisava ver. Encerada e polida... Não parecia um carro de trabalho, parecia mais um carro de exposição. O cara não fazia esse estilo, era quase um sem-teto. Era quase como se o carro não fosse dele. É apenas um palpite.

 

–Entendi. –respondeu o jovem policial. –Faz sentido. Eu vou checar.

 

 

Carlos Dias terminava de vasculhar mais um sítio velho. Mais uma vez, não havia nada. Era o oitavo endereço em menos de duas horas. Ele recebera apoio de fora, dividira suas equipes, deixara os homens mais jovens sozinhos e, ainda assim, estavam atrasados. Havia ainda centenas daquelas fazendas abandonadas para vasculhar, todas iguais: intermináveis, densas, escuras e cercadas pelo mato e por plantações desertas que se estendiam por quilômetros. O tempo da garota estava se esgotando. Era um pesadelo.

 

Mal o delegado se acomodou na viatura, e alguém já o chamava pelo rádio.

 

–Na escuta!

 

–Senhor, precisamos de você.

 

Era um de seus investigadores.

 

–Onde vocês estão?

 

–Na delegacia, senhor.

 

–E o que vocês estão fazendo aí? –perguntou o delegado. Estava perdendo a paciência. –O combinado era uma só pessoa na delegacia, e todos os outros, incluindo vocês, vasculhando.

 

–É exatamente disso que se trata, senhor. Não devíamos tê-la deixado aqui sozinha.

 

Aquela frase soou estranha.

 

–O quê aconteceu? –perguntou Carlos Dias. Uma sensação gelada escalou suas costas e parou em sua nuca.

 

–É melhor ver por si próprio.

 

 

Marcos ainda estava na praça. Menos de cinco minutos depois, seu antigo subordinado retornava ao local de encontro. Carregava uma expressão apreensiva.

 

–Parece que você tinha razão. –disse ele, enquanto entregava a Marcos uma folha de papel impressa. Era a segunda via de uma nota fiscal. –E você não vai acreditar em quem comprou um jogo de pneus dessa marca a menos de dois meses.

 

Marcos foi praticamente sugado pelo pedaço papel. Seus olhos vibraram com violência sobre a assinatura na folha branca.

 

–Marcos, você precisa avisar a polícia.

 

–E vou. Quando eu acabar...

 

–Acabar o quê?

 

A pergunta ficou ali, suspensa no ar, densa como fumaça.

Capítulo 46

 

A viatura freou. Na estrada deserta, nenhum barulho além do ronco grave e estalado do motor. Em volta, apenas o mato alto e as árvores cobertas de trepadeiras. Os policias saltaram. Um deles era baixo e encorpado, tinha membros fortes, cabelos castanhos extremamente curtos e uma barriga saliente. Era jovem, principalmente se comparado ao companheiro de trabalho, e mal completara o primeiro ano na polícia. O segundo policial era alto e muito magro, passava muito dos setenta anos e tinha um rosto moreno cravejado de rugas, uma testa fina e alta e uma cabeça coberta por escassos fios brancos. Era visivelmente experiente

 

–Tem certeza que é aqui? –perguntou o mais velho, ao parceiro.

 

–Sim. –respondeu o mais jovem, conferindo uma prancheta. –A penúltima parada foi aqui.

 

–O lugar parece deserto.

 

–Ele pode ter parado para se aliviar.

 

O policial mais velho ponderou a ideia por um breve momento, enquanto analisava as árvores em volta da estrada. Estavam exatamente no limite da cidade.

 

–Quanto tempo de parada?

 

–Pouco mais de vinte minutos.

 

–Não. Ele estava aqui por alguma razão. Borges conhece a cidade como a palma da mão.

 

Os policias estavam atrás de um colega desaparecido. Seguiam o sinal do rastreador da viatura. O policial mais velho ainda observou atentamente tudo o que havia em volta, mas era muito pouco para perder tanto tempo. Precisavam continuar.

 

–Tudo bem. Vamos! –disse ele.

 

Estavam prestes a entrar no carro, quando algo os deteve: pequenas manchas vermelhas no acostamento, a alguns metros da viatura.

 

–Isso é sangue? –perguntou o policial mais jovem.

 

–Definitivamente. Veja as marcas na grama.

 

–Algo foi arrastado?

 

–Ou alguém.

 

–Vamos chamar reforços?

 

–Ainda não. Todos estão procurando pela garota. Não podemos tirá-los da função sem ter certeza de que se trata de algo importante. Vamos investigar!

 

As marcas desapareciam alguns metros à frente. Os policiais não desistiram. Seguiram por um declive acentuado e subiram um pequeno morro.

 

–Veja aquilo! –disse o jovem.

–Uma casa? Nunca vi essa casa antes. Nem sabia que havia alguém morando tão longe da cidade.

 

Os dois policiais caminharam na direção do casarão. Um charco cercava a construção, e os policiais precisaram mergulhar até os tornozelos na lama escura. O lugar parecia deserto há séculos. Não fosse pela tênue fumaça na chaminé, não haveria nenhum sinal de vida. Uma das paredes da casa estava fora de prumo e rachada. Aliás, o lugar todo parecia prestes a se dissolver em pó. Ao lado da casa, um verdadeiro cemitério de carros destruídos, quase todos enferrujados e desmontados. O policial mais velho examinou os veículos com muita atenção.

 

–Estranho! –exclamou ele.

 

–O quê?

 

–Há carros quase novos aqui. Alguns ainda devem estar funcionando.

 

–Isto aqui é um desmanche?

 

–Acho que não. Há peças aqui que um ladrão não deixaria apodrecendo.

 

–Então, o que vamos fazer?

 

–Vamos entrar!

Tudo permanecia silencioso. A porta de duas folhas do porão estava lacrada por dentro. Eles deram a volta. Ao chegarem à frente da casa, encontraram a porta de entrada semiaberta.

           –Vamos! –disse o mais velho.

 

Mal deram o primeiro passo, e a porta se abriu por completo. Das trevas, surgiu um cão negro alto e pesado. Seus dentes estavam à mostra. Seu rosnado era baixo e grave, lembrava um trovão distante.

 

–Tudo bem, podemos cuidar disso. –disse o policial mais jovem.

 

Então outro cão surgiu do interior da casa. Era mais baixo que o primeiro, mas parecia mais rápido. Da lateral, surgiram mais dois cães. O quarto veio da floresta. O quinto saiu de uma janela quebrada e se juntou aos demais. Todos se pareciam: focinhos compridos, pelagem escura, corpo forte e esguio. Formavam agora um aglomerado negro de dentes afiados e olhos faiscantes.

 

O velho levantou lentamente a escopeta. O rapaz se preparou para sacar a pistola, mas foi advertido pelo colega.

 

–Devagar! Não faça movimentos bruscos. Vamos caminhar lentamente para trás!

 

–E o que isso vai resolver? –perguntou o mais jovem, entre dentes.

 

–Vamos nos afastar do raio de ação o máximo possível. Quando eles vierem, vai ser muito rápido. E não olhe para os olhos deles.

 

O sexto cão, o último a deixar a casa, era um colosso, muito maior e mais forte que os outros. Parecia também mais zangado que seus irmãos menores. Além disso, algo em seus olhos dizia que era mais inteligente. Colocou-se à frente do grupo e analisou atentamente os policias antes de soltar um rosnado alto e curto. Era um grito de comando.  

 

Os outros cães partiram, todos ao mesmo tempo: vultos negros deslizando pela grama a uma velocidade absurda. O tiroteio começou: quatorze tiros disparados em menos de quatro segundos, e cinco cães feridos. Alguns já pareciam mortos, outros ainda se debatiam. O maior deles ainda estava lá, parado, esperando. Observou os irmãos mortos e encarou o policial mais velho nos olhos. Parecia ainda mais irritado agora, então avançou como um raio. Era mais rápido que seus irmãos, parecia quase voar. O mais velho dos policiais soltou a escopeta e puxou a pistola. Seu colega se afastou enquanto recarregava a arma. Dois tiros em cheio e o animal ainda corria alucinado. Um pente descarregado, e não era o suficiente. O velho tombou com a força do impacto e lutou para segurar o animal. O bicho não desistia, mesmo bastante ferido.

 

–Rápido! –berrou ele, ao companheiro mais jovem, que ainda precisou disparar um último tiro certeiro antes de tirar o animal de cima do parceiro.

 

Agora, o bicho estava imóvel. O policial mais velho ofegava. O impacto da queda contundira seu ombro esquerdo, mas não parecia nada grave. Ele se pôs de pé com a ajuda do colega.

 

–Céus, esses cães são muito estranhos. –esbravejou o policial mais jovem. –Pelo menos, eu nunca tinha visto cães assim. Os olhos deles são... vermelhos...

 

O policial mais velho se aproximou do cão maior e levantou a gengiva ensanguentada do animal.

 

–Veja o tamanho das presas!

 

–São enormes. Mas o que isso significa?

 

–São híbridos.

 

–Híbridos?

 

–O resultado do cruzamento entre cães e lobos.

 

–Por que alguém faria uma coisa dessas, colocar um lobo dentro de um cão?

 

–Boa pergunta. Acho que para eles ficarem maiores e mais ferozes.

 

–E como você sabe de uma coisa dessas?

 

–Conheci um homem que fazia esse tipo de cruzamento.

 

–Quem?

 

–O falecido pai do homem que prendemos. O pai do assassino.

 

O velho encheu o pulmão de ar para recuperar parte do fôlego e encarou o parceiro.

 

–Chegou a hora. Vá até a viatura e peça ajuda! –disse ele, enquanto recarregava a escopeta. –Eu vou entrar. A garota pode estar lá dentro.

 

–Entendido!

 

Antes de partir, o mais jovem dos policiais ainda perguntou:

 

–E se houver outros desses cães lá dentro?

 

–Vamos torcer para que não haja. Vá!

 

O policial mais jovem partiu. Era bem mais rápido que o parceiro. Em segundos, já desaparecia entre as árvores. O velho ainda tomou fôlego antes de entrar, chutou a porta e mirou em todas as direções. Nada aconteceu. Ele caminhou pelo corredor e examinou a sala. Quase não havia móveis. Tudo se resumia basicamente a um velho sofá roído por ratos e a uma estante podre de madeira. O policial ainda examinou um segundo cômodo, ao lado da sala. Era a cozinha. No fogão a lenha, ainda havia brasas.

           O policial voltou ao corredor. Tencionava examinar os quartos no andar de cima, mas o cheiro forte vindo do porão atraiu sua atenção. Aquele cheiro realmente não parecia bom sinal. O velho respirou fundo e se preparou para descer.

 

O outro policial chegava ao carro no mesmo instante. Em meio segundo, entrou na viatura e puxou o rádio.

 

–Central!... Aqui é 103!... Responda, central!...

 

–Prossiga!... –ordenou alguém do outro lado da linha.

 

O policial abriu a boca para responder, mas gelou com a imagem no retrovisor. Havia alguém no banco de trás. Olhos cruéis por trás de óculos espessos. Um homem muito grande. O policial não teve tempo de reagir. Algo afiado atravessou sua garganta.

 

–Central na escuta! –disse a voz do outro lado da linha, visivelmente preocupada com a ausência de resposta. –O que aconteceu?... Central na linha.

 

–103 na escuta. –respondeu outra voz, bem mais tranquila. –Desculpe pela demora. Alarme falso por aqui. Apenas alguns cães.

 

–Entendido! Me deixou preocupada... Tenha cuidado!

 

–Pode deixar.

 

O velho abriu a porta do porão e foi golpeado pelo cheiro, agora ainda mais forte. Era muito pior com a porta aberta. A náusea era inevitável. A escuridão também era mais intensa ali. O policial ligou a lanterna, apoiou o cano da espingarda no antebraço e desceu as escadas. As tábuas rangeram como se estivessem a ponto de quebrar, e talvez realmente estivessem. O foco da lanterna não trouxe nenhum conforto. Por todos os lados, fungos escuros, teias de aranha e muito sangue. A mesa ensanguentada e as coisas pontiagudas sobre ela fizeram o policial estremecer. Inconscientemente, ele calculou quantas pessoas seriam necessárias para conseguir tanto sangue.

 

–Minha nossa!... Minha nossa!...

 

O foco da lanterna ainda deslizou algum tempo pelo chão antes de encontrar a garota. Ela fora jogada ali como um trapo: o corpo esparramado, os braços soltos de forma assimétrica ao lado do corpo. As pernas permaneciam semiabertas. Alguém removera toda a sua roupa, com exceção da blusa fina de algodão, que agora não passava de um pedaço de pano encardido e desfiado. Pelo rádio, o policial pediu ajuda ao companheiro.

 

–Ela está aqui!... A garota está aqui!... Peça uma ambulância e venha rápido!...

O velho se curvou para examinar a garota. Estava gelada como a morte. De início, o policial duvidou que ela ainda estivesse viva, mas acabou pegando uma pulsação extremamente fraca. Ele abaixou o rosto e a examinou melhor. De perto, a situação parecia muito pior. A garota estava coberta de pó. Por baixo do pó, muita lama; por baixo da lama, muito sangue seco. Tudo indicava que ela havia tentado fugir, principalmente as mordidas de cães e os dois joelhos quebrados a golpes de martelo. Havia uma fratura exposta em um deles, e a farpa pontiaguda de um osso rasgava a pele. Mais o que mais preocupou o velho policial foi a cabeça da garota: o rosto estava inchado demais.

 

–Ah, criança, o que fizeram com você? –sussurrou ele.

 

O velho sentiu o toque gelado da mão da garota em seu braço. Ela havia aberto sutilmente um olho, não abriria o outro por um bom tempo. A pálpebra tremia de forma intensa.

 

–Você está salva. Pegamos o homem que fez isso com você. Ele está morto agora. Ninguém mais vai lhe fazer mal.

 

A garota sussurrou algo. Parecia desesperada. O velho não a compreendeu, então aproximou o ouvido de seus lábios.

 

–O que foi?

 

–Não é o mecânico. –disse ela.

 

Foi menos que um sussurro mas fez o sangue do policial gelar. Trabalharam todo aquele tempo com a ideia de que o assassino estava fora de combate. Pensavam estar livres do perigo. O velho se ergueu. Seus joelhos vacilavam. Ele se virou rapidamente quando sentiu a respiração quente em suas costas. Eram olhos brilhantes na escuridão. Ele ainda tentou atirar, mas a espingarda foi arrancada de suas mãos sem dificuldade enquanto dedos poderosos agarravam seu pescoço. O sujeito era incrivelmente forte. O velho gemeu quando algo doloroso rasgou seu ventre. Seus pés se ergueram do chão.

 

Amanda viu o velho policial tombar a seu lado. A face assustada do homem se contorcia de dor. Mais alguns segundos, e ele já estava morto. O pobre se fora. Com ele, sua última esperança.

Capítulo 47

 

Carlos Dias chegou à delegacia cinco minutos depois de ser chamado. Entrou no prédio com muita pressa. Havia sangue. Muito sangue. A secretária estava largada em sua cadeira giratória: o corpo torcido, a cabeça pendida de forma estranha, os óculos quadrados respingados de vermelho e o corte profundo em seu pescoço, de orelha a orelha.

 

O delegado teve de sentar para não desabar.

 

 –Ah, Sabrina! –sussurrou ele, apertando uma das mãos da mulher. –Estávamos preocupados com uma garota desaparecida, e deixamos outra sozinha aqui. Eu não deveria ter sido tão descuidado.

 

Um investigador se aproximou.

 

–Nós tentamos contato por rádio, e ela não retornou, então viemos averiguar. Faz apenas alguns minutos.

 

–Por que alguém faria algo assim? –perguntou Carlos Dias, confuso.

 

–O senhor ainda não entendeu.

 

–O quê?

 

–O corpo de William Glander desapareceu.

 

–O quê? Como?

 

Os olhos do delegado se encheram de pavor.

 

–Não estamos entendendo, senhor. Ele ainda estava vivo?

 

–Claro que não, homem. –respondeu o delegado. –Não seja idiota.

 

–E então?

 

–Parece que apanhamos a pessoa errada.

 

 

O som espalhafatoso da campainha do telefone assustou os homens. O delegado só encontrou coragem para atender depois do terceiro toque.

 

–Delegacia de polícia.

 

–Delegado? –perguntou David Wasser, do outro lado da linha.

 

–Wasser? Onde você está?

 

–Estou em um mosteiro. O mosteiro onde William Glander estudou quando adolescente. Delegado, nós cometemos um erro, pegamos o homem errado. O assassino ainda está à solta.

 

–Não me diga?

 

Wasser não compreendeu a ironia na voz de Carlos Dias.

 

–Diga que você sabe quem é o assassino!

 

–Jonatham Glander, o pai de William.

 

–Jonatham Glander está morto. Não há dúvidas sobre isso.

 

–Eu sei que parece impossível. Eu não sei como ele conseguiu, mas ele está vivo. Ele viveu como padre neste mosteiro por quase três anos. Chegou aqui dois anos depois do incêndio. Não sei de quem era o corpo naquela igreja, mas não era o dele. Jonathan Glander usou um nome falso quando chegou aqui, talvez ainda use: Saimon Becker.

 

–Saimon Becker? –perguntou o delegado. Uma pontada de desespero surgiu em sua voz. –O padre Saimon Becker.

 

–Você o conhece?

 

–Claro que sim. Todos o conhecem. É o padre de uma das paróquias da cidade.

 

O delegado estava atônito.

 

–E você faz alguma ideia de onde ele está?

 

–Em uma das cartas que William Glander recebeu da irmã mais nova, ela mencionou alguma coisa sobre o sítio de um tio avô falecido. O nome é Yuri Barbosa.

 

–O velho Barbosa. Ele tinha uma serraria. Fica quase fora da cidade.

 

O delegado desligou. Tomado de uma fúria intensa e repentina, ele se voltou, enérgico, para seus homens:

 

–Vamos partir agora! Avisem todos pelo rádio! Precisamos de todos no último sítio depois da saída norte da cidade. É um sítio difícil de localizar, mas está lá. Quero todos em movimento. Agora!

Capítulo 48

 

Era estranha a sensação de estar novamente naquela igreja. Ainda mais estranho era vê-la no escuro, vazia. Os poucos raios de sol que atravessavam os mosaicos das janelas desenhavam figuras amorfas na parede, figuras que vibravam e se moviam como se pedissem socorro. E havia a imagem que se destacava de todas as outras: cristo chorando uma lágrima de sangue, pregado na cruz, no meio do altar. O rosto de madeira polida da estátua parecia diferente naquela semiescuridão, perdia a expressão complacente e ganhava um tom mais sinistro, como se alguém tivesse trocado a cabeça da imagem.

 

Marcos caminhou até chegar ao fim do corredor. Seus passos ecoaram secos e distantes. A porta da sacristia permanecia semiaberta. Ele entrou. O lugar não era grande: havia uma mesa, duas cadeiras uma pequena poltrona e uma estante grande o suficiente para abrigar uma pequena coleção de livros. Mas só havia um livro ali, uma bíblia velha muito grande e muito pesada, aberta sobre um suporte de prata como algo muito valioso. Marcos a folheou e encontrou alguns versículos marcados, mas eram versículos pouco conhecidos, e todos nos primeiros livros: "Também o sacerdote fará a expiação do pecado, e fará expiação por aquele que tem de purificar-se da sua imundícia; e depois degolará o holocausto"... "E imolarás o carneiro, e tomarás o seu sangue, e o espalharás sobre o altar ao redor; e partirás o carneiro por suas partes, e lavarás as suas entranhas e as suas pernas, e as porás sobre as suas partes e sobre elas a sua cabeça"... "Então esfolará o holocausto, e o partirá nos seus pedaços"... "Chegando, pois, à sua casa, tomou um cutelo, e pegou na sua concubina, e a despedaçou com os seus ossos em doze partes; e enviou-as por todos os termos de Israel"...

 

Não havia outras passagens marcadas além dessas. Nada sobre amor, perdão, ou coisas do tipo. Nada mais no cômodo merecia atenção. Outra porta levava a um segundo quarto. Estava trancada. Com um pouco de força, Marcos a arrombou. O novo cômodo se assemelhava à sala de estar de uma casa: dois sofás de dois lugares, uma estante, uma pequena televisão antiga. Em um dos cantos, um conjunto de pesos e equipamentos para musculação. Realmente muitos pesos. Depois de atravessar mais uma porta, Marcos chegou a uma espécie de depósito de coisas velhas: tvs, rádios, telefones, muitos fios e também peças de carro. E alguém aparentemente havia perdido muito tempo aprendendo a desmontar câmeras de vídeo e alarmes de segurança, as peças largadas pelo quarto deixavam isso claro.

Apesar da bagunça, tudo ali pareceria normal se não fosse pela pedra. Era como olhar para uma mão gigante. A coisa devia pesar uns setecentos quilos, no mínimo. Algo que parecia um pulso suspendia algo que lembrava, e muito, uma grande palma voltada para cima e, saindo dela, quatro dedos grossos ligeiramente curvados, como se aquilo estivesse prestes a agarrar algo no ar. Marcos analisou a coisa atentamente: não parecia uma peça esculpida, parecia uma formação natural. Mas era detalhada demais.

 

Aquela pedra chamava muita atenção. Graças à ela, Marcos quase não percebera o retrato: um homem loiro magro e alto, diante de uma caminhonete vermelha, com um menino no colo. Os olhos de Marcos vibraram sobre o retrato. Seus punhos se fecharam com tanta força que ele acabou se ferindo. Ele conhecia aquela casa. E conhecia aquele homem. Era um fantasma.

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