top of page

Décima Parte

Slide1.JPG

Capítulo 60

 

Por um momento, tudo se apagou. O vento morno do início do outono entrava pela janela aberta. Havia tensão no ar. O silêncio era angustiante. Melina estava em seu consultório, diante de Amanda e do noivo, esperando que eles reagissem à notícia de alguma forma, mas os dois pareciam congelados. Suas mãos, que até então permaneciam entrelaçadas, haviam se separado quase que instantaneamente, como se os dois precisassem de muito espaço para pensar sobre aquilo tudo. E realmente precisavam. A média quase se desesperou, não sabia mais o que dizer, ou o que fazer, mas Eric, enfim quebrou o silêncio.

–Eu não entendo. –afirmou ele. Parecia mais estarrecido que zangado, mas havia boa dose de ira em sua voz. –Como é possível?

–Quando Amanda chegou ao hospital, tudo o que importava era mantê-la viva. –respondeu a médica. –Era tudo o que importava, tudo em que pensávamos. Não imaginamos, em nenhum momento, que isso poderia ocorrer, não com o histórico de Amanda, não depois do que houve da última vez. E com os ferimentos e os antibióticos, não havia como isso acontecer. É quase um...

Melina se conteve antes de terminar a frase. Não, aquilo não tinha nada de milagroso. Parecia mais uma maldição. Apesar de sempre ter se considerado uma cética, a médica não duvidava que houvesse algo de sobrenatural em tudo aquilo, não com aquele homem horrível envolvido.

–Eu sinto muito! –concluiu ela.

–E o que vamos fazer a respeito? –perguntou Eric.

–Em que sentido?

–Precisamos acabar com isso. Agora!

–Pode ser uma opção. –ponderou Melina. –Mas precisamos fazer mais exames, confirmar a situação.

–Não temos mais tempo a perder! –retrucou Eric. Estava quase gritando agora. –Você precisa dar um jeito! Agora!

Amanda ouvia tudo em silêncio, mas cada palavra a rasgava por dentro. Fisicamente ela estava muito melhor, quase retornara ao normal: as pernas já não doíam quando ela caminhava, as frequentes fisgadas no pulmão quando respirava fundo haviam desaparecido há quase um mês, seu rosto já era novamente o da velha Amanda, apesar dos ferimentos persistentes, e até o cabelo começava a formar novamente seus cachos característicos. Mas, por dentro, a dor a roía como se seu corpo estivesse sendo mastigado por insetos.

–Eric, sua noiva ainda está se recuperando de todos os ferimentos. Não podemos executar nenhum procedimento cirúrgico, por menor que seja, sem termos certeza de que ela vai ficar bem. Além de tudo, é uma gravidez de seis meses.

–E o que isso significa?

–Acho que o que Melina está tentando dizer é que ele já está crescendo dentro de mim há seis meses. –respondeu Amanda. –Já está desenvolvido.

–Ele é frágil. –concluiu a média. –Pelos primeiros exames, não tem nem metade do tamanho adequado para a idade. Provavelmente, não vai sobreviver. Mas tem seis meses. Não é mais um embrião, é uma criança.

–Não, essa coisa não é uma criança. –respondeu Eric. –É um monstro. Como o pai.

As duas mulheres ficaram em silêncio. Eric ainda suspirou descontente antes de se levantar e caminhar até a porta.

–Pense nisso, doutora. –disse ele, antes de sair. –Antes de pensar em colocar essa coisa no mundo.

Melina observou Amanda atentamente: era uma mulher forte, provavelmente a pessoa mais forte que ela já conhecera na vida, física e mentalmente, mas aquilo era demais até para ela.

–No momento, eu preciso internar você para fazermos alguns exames. –disse a médica. –A situação é delicada.

–Eu sei. –respondeu Amanda.

Não estava preocupada com o hospital. Havia se acostumado à dor. O que a preocupava era algo muito mais intenso. O futuro passou diante de seus olhos em um vislumbre.

–Acha que Eric tem razão? –perguntou ela.

–Sobre o quê? –questionou a médica.

–Sobre esta criança. Acha que ela é má?

–Eu não sei, querida. Não dá para adivinhar uma coisa dessas. Não posso responder algo assim. Mas a genética... Há uma boa chance.

Amanda respirou fundo. Um monstro crescendo dentro de sua barriga era a última coisa da qual precisava, mas ela não o via assim, não sentia o bebê como uma ameaça. Aliás, ainda não o havia sentido de nenhum jeito. Talvez nem estivesse mais vivo.

Capítulo 61

 

E lá estavam elas, leves, firmes, quase mágicas. Os corpos deslizavam, fortes e ágeis, pelo assoalho de madeira do palco. Lembravam pássaros travando uma batalha em pleno ar, aos olhos de um admirador distante que, apesar de apaixonado pelo céu, não é capaz de voar.

 

Uma lágrima escorreu pela face de Marcos Hasse. A filha caçula fazia aulas de balé desde os oito anos de idade, mas era a primeira vez que ele a via dançar. Vira-a uma vez antes, é verdade, quando a menina completara seu primeiro mês na companhia, mas fora um daqueles espetáculos destinados exclusivamente aos pais, feito por crianças que não conseguiam acertar um só passo e pareciam pinguinzinhos tentando subir uma escada, um espetáculo que agradara apenas aos pais porque, afinal, eram pais. Não, naquela noite era diferente, o teatro estava lotado, apesar do preço salgado dos ingressos, e eles haviam recebido acentos marcados. O espetáculo mesclava dança, truques de ilusionismo e teatro de sombras, e Marcos não se lembrava de alguma vez ter visto algo tão bonito na vida. Seus dedos chegaram a entrelaçar os dedos da esposa, na cadeira ao lado, quando a filha surgiu no palco. Os olhos de Margaret encontraram o rosto do marido. Havia afeto neles. Um afeto machucado, na verdade, mas, ainda assim, afeto.

 

Se houvesse um papel principal em meio a todo aquele caos de figuras que apareciam, flutuavam, deslizavam e se dissolviam como se nunca tivessem nascido, certamente seria o papel de sua filha. A menina, com quase catorze anos, magrinha como só ela, era uma verdadeira dançarina. Seu corpo às vezes parecia congelar de forma sobrenatura lno ar, como se tivesse o peso de uma pluma. Era uma figura angelical.

 

A lágrima nos olhos de Marcos Hasse deu lugar a mais uma, e logo elas se multiplicaram. Fazia dezessete meses desde a morte da filha mais velha. Em alguns momentos, mesmo com as sombras que cercavam seu corpo, Marcos chegara a enxergar uma luz no fim do túnel, um retorno. Naquele momento, em especial, ele chegou a acreditar que ainda podia ser feliz. Mas as sombras, sempre elas, venceriam no fim.

 

 

Capítulo 62

 

Amanda estava na maca, deslizando pelo corredor do hospital, quando apagou, completamente exausta. Havia acabado de concluir mais uma bateria de exames. As noites pesadas e sem sono se somaram e ela realmente conseguiu dormir na hora mais inapropriada possível, durante a sessão do ultrassom. Acabou despertando no quarto minúsculo do plano de saúde, feio de mais, mas, ainda assim, muito melhor que os outros. Não se lembrava de como havia chegado ali. Na pequena TV, o telejornal indicava que ela havia dormido por duas horas, no mínimo. O sol de fim de tarde atravessava as persianas de plástico da janela.

 

Aquela anestesia era de derrubar. Ela ainda se sentia um tanto zonza, mas, enfim, não havia mais nem um exame a fazer, e ela poderia voltar para casa em algumas horas, no máximo. Um homem baixinho e muito magro trajando o uniforme cinza do hospital limpava o chão com um esfregão. Amanda estava com sede, a jarra de água estava longe e ela ainda estava um tanto zonza, então pediu ajuda ao sujeito, que lhe passou a água, tentando, o máximo possível, esconder o rosto. Fora algo sutil, mas perceptível.

 

Amanda achou aquilo estranho. Tinha uma vaga lembrança de uma mulher limpando o quarto antes de ela ser levada para o exame. O quarto, aliás, já parecia bastante limpo. Aquilo não fazia muito sentido. O homem guardou o esfregão e o balde no carrinho e partiu. Amanda o deteve.

Espere!

Ele obedeceu e estacou, a face voltada para a porta. Parecia realmente não querer que ela visse seu rosto. Mais que isso, tudo indicava que aquele homem a estivera observando enquanto ela dormia, o que, por si só, era muito estranho.

Vire-se! –ordenou Amanda

.

Mais uma vez, o homem obedeceu. Seu corpo girou sobre seus pés, até que seus olhos encontraram os olhos da mulher sobre a cama.

Você? –perguntou Amanda.

–Oi, filha. –disse o homem, sem graça.

 

Aquilo era estranho. No fundo, Amanda sempre tivera a consciência de que o pai era um homem muito pequeno. Contudo, em sua mente, ele sempre aparecia enorme, talvez porque, da última vez em que o vira, anos antes, ela ainda era pouco mais que uma criança. O que via a sua frente, agora, era um homem de um metro e sessenta que fora reduzido a pele e ossos. Um simples sopro parecia mais do que o suficiente para mandá-lo longe. Como era possível que ele a houvesse ferido e amedrontado tanto, por tanto tempo?

–O que você está fazendo aqui? –Amanda perguntou.

–Poucos meses depois que eu fui embora da casa onde morávamos, eu acabei preso.

–Eu soube.

–Peguei quinze anos, por tráfico. Eu consumia mais do que vendia, na verdade, mesmo assim peguei quinze anos. Um juiz me ajudou por bom comportamento, alguns anos atrás, e me soltou, desde que eu participasse de um programa de tratamento para as drogas e o álcool. Enfim, há uns dois anos, um amigo do programa ajudou a arrumar este emprego. Não é grande coisa, mas...

–É um emprego. –concluiu Amanda.

–Exatamente. –disse o homem, tentando escapar daquilo tudo. –Bem, eu vou deixar você sozinha. Eu...

–Você já tinha o emprego quando eu estive aqui da primeira vez.

–Eu visitei você, muitas vezes, sempre que seu noivo precisava sair. Ele não saía muito, mas... Eu a visitei muitas vezes, Amanda. Eu a observei por trás daquele vidro nos primeiros dias e...

O homem começou a chorar. Seus lábios tremiam. Era uma criatura frágil, destruída.

–Eu sei que eu a machuquei. Sei que eu não mereço seu perdão.

Havia sinceridade em sua voz, Amanda percebeu. Ele se aproximou da cama e tocou um de seus pés sobre o cobertor. Hesitou muito em fazer aquilo, como se não se achasse digno nem mesmo de tocá-la. Suas mãos tremiam. Ele tinha mais a dizer, mas as palavras travaram. Seus lábios ficaram ali, abertos, por algum tempo, revelando a boca quase sem dentes, então ele esmurrou o próprio peito com um punho fechado e prosseguiu.

–Mas quando eu vi você, naquele quarto. Quando eu vi você daquele jeito. Eu sangrei. Eu juro, eu sangrei. Por que eu fiz aquelas coisas com você? Deus, por que eu fiz aquelas coisas?  

Amanda encarou aquela criatura destruída nos olhos e não pode evitar um tremor. Não, aquele não era seu pai, não era o homem que a havia jogado em uma poça de lama, vinte anos antes. Era velho demais, fraco demais.

–Eu perdoo você. –disse Amanda. O homem a observou, embasbacado. Parecia em transe. –Eu passei os últimos vinte anos da minha vida achando que você era um homem perverso, mal. Mas eu vi o mal, eu o olhei nos olhos e eu percebi que você não é grande coisa, você nunca foi. Você me magoou, eu tenho de admitir, mas eu perdoo você.

Amanda suspirou. Havia algum sentimento em seu coração, mas era algo novo, algo que ela não conseguia discernir. Havia ensaiado aquele momento muitas vezes, seu confronto com o pai. Mas era um confronto com o velho pai, o pai que a amedrontava, não com aquele ser corroído e apagado. O homem a abraçou. Estava amedrontado, mesmo assim a abraçou. Amanda permitiu, mas não retribuiu o gesto. Era o máximo que podia fazer naquele momento. O pai a soltou e se afastou. O choro ainda fazia seu corpo tremer.

–Eu não vou mentir. –continuou Amanda. –Eu nunca vou amar você. Não como uma filha deve amar um pai. Mas eu o perdoo. É o máximo que terá de mim.

–É o suficiente. –afirmou o homem. Hesitante, ele ainda perguntou: –Eu posso visitar você, qualquer dia desses?

Amanda não respondeu, apenas o olhou nos olhos por um longo tempo. O homem entendeu o recado.

–Tudo bem. –disse ele, abrindo a porta. –Eu estou indo.

–Apenas me dê um tempo. –pediu Amanda, quando o homem já estava do lado de fora. –Um bom tempo.

O homem sorriu, um sorriso apagado e feliz, e partiu. Amanda ficou ali, mais uma vez sozinha. Não fazia ideia de onde estava o noivo. Não o via desde a manhã. E agora havia mais alguém em sua vida, a última pessoa que ela poderia imaginar.      

Capítulo 63

 

Nos meses seguintes, Marcos Hasse mergulhou em uma verdadeira espiral de tristeza, desalento e certa dose de loucura. Saber que o homem que havia assassinado a filha estava morto, vê-lo sangrar até a morte, tudo isso fora reconfortante no início e dera-lhe até mesmo certa dose de prazer. Mas o consolo durara pouco. Então ele passou a se agarrar a tudo o que havia a sua volta, como um náufrago tentando sobreviver no meio do mar, mas, no fim, tudo foi em vão. E, se em alguns momentos as trevas se dissipavam e uma tênue esperança brilhava, tímida como uma vela no meio de um nevoeiro, no fim a escuridão sempre o tragava novamente. Era como tentar sobreviver em um oceano escuro e tempestuoso sem nenhum sinal de terra e sem um mísero pedaço de madeira no qual se agarrar. Marcos retornava, às vezes, em raros momentos, mas houve o dia em que ele foi vencido definitivamente.

Era impossível precisar quando aquilo havia acontecido, mas todos ao seu redor, todos que o amavam, perceberam que não havia volta. Ele passou da falta de esperança e da depressão a um estado quase cataléptico, sem reação, sem emoção, apenas tristezae ódio, um ódio intenso e muito denso, sem que houvesse agora alguém para odiar. Então aquele sentimento destrutivo o sugou e se alimentou de sua carne como uma aranha se alimenta de uma mosca, até que não havia mais nada do antigo Marcos Hasse, apenas sua pele e seus ossos.

 

Daquele momento em diante, uma série de pequenos incidentes mostraram que ele realmente não estava bem. Houve, por exemplo, o dia no qual ele parou seu carro em frente a sua casa, quando a noite já avançava, e simplesmente não entrou. Ficou ali, ao relento. A filha caçula tentou, em vão, fazê-lo entrar. Era impossível dissuadir alguém que simplesmente não ouvia. Houve um dia ainda pior, no qual ele adormecera em plena madrugada, em um dos bancos da praça da cidade. Alguns moleques o acordaram no dia seguinte. Pensaram que o homem havia morrido de frio com a geada que o cobrira durante a noite. Mas Marcos ainda estava vivo, ou ao menos meio vivo. E, o pior de tudo, houve o dia no qual ele simplesmente desaparecera. Permanecera quase uma semana sem dar notícias. Até o delegado havia se envolvido nas buscas, temendo o pior. Todos temeram. Até que, sem dar explicações, sem dizer uma só palavra, Marcos simplesmente retornou em um fim de noite e se acomodou sobre sua poltrona como se nada tivesse acontecido. Não parecia bem, nem mesmo fisicamente, e havia perdido realmente muito peso naqueles poucos dias.

 

Margaret suspirou aliviada, mas teve de assistir a filha caçula chorar por horas: quando a garota perguntara ao pai como ele estava, ouvira como respostas apenas as palavras "eu preciso ficar sozinho", como se os dias de solidão não fossem o suficiente. A menina foi acometida por uma dor difícil de conter. Estava inconsolável.

 

Naquele momento, Margaret Hasse percebeu que precisava fazer o que vinha adiando desde a morte da filha mais velha, precisava confrontar o marido. Ela se sentou no sofá, em frente a Marcos, e o observou por um longo tempo. Ele não estava ali, não de verdade. Seu corpo sim, mas sua mente só Deus poderia saber onde estava.

 

Margaret apanhou um dos muitos retratos que espalhara pela casa com tanto carinho ao longo de todos aqueles anos, memórias que ela protegera com afinco, guardando-as no fundo de sua mente e nas redomas de vidro dos porta-retratos. Aquela era uma fotografia deMarcos e da pequena Isabela em uma canoa, no meio de um lago azul. A menina, muito pequena na época, segurava uma varinha de pescar pequena, imitando o pai.

Eu lembro desse dia, como se fosse ontem. –disse Margaret, com certa melancolia. –Eu sempre tentei fazer Isabela brincar com bonecas, panelinhas de plástico, ou com qualquer coisa do tipo. Mas ela sempre dizia: eu quero ser como o papai. Ela amava você, eu sei, e sei que você a amava. Mas no que a sua dor é maior do que a nossa? Eu não a amava o suficiente, eu não sou digna?

Não é uma disputa. –Marcos se limitou a dizer. –Nunca foi.

Então o que é? –retrucou a esposa.

Ele apontou para tudo o que havia em volta.

Esta casa, tudo aquilo pelo que passamos, todos os nossos sonhos, são falsos. Essas paredes, o gramado, o jardim, o céu, tudo ilusão.

Nós estamos aqui. –disse Margaret.

Estamos? –perguntou Marcos, e se calou.

Acha que Isabela iria querer isso, esse tipo de pensamento?

Essa é justamente a questão, Margaret: Isabela não iria querer isso, não iria querer nada. Ela está morta. Não existe o futuro.

Margaret ficou ali, analisando a face do marido por um longo tempo. Entendia o que aquelas palavras significavam, mas apenas na superfície.

Eu vi Isabela morta depois do que aquele homem fez com ela. –afirmou Marcos, como se aquilo, por si só, concluísse seu pensamento.

Eu sei. –respondeu a esposa, aparentemente sem entender o sentido exato das palavras. –No enterro. Todos nós vimos.

Não, não no enterro. Antes disso, no necrotério. Eu invadi o prédio à noite e a vi.

O quê? –perguntou Margaret, chocada. –Por que você faria algo assim?

Porque eu precisava da verdade. E a verdade é que aquilo que vimos no caixão, aquela complacência, aquela paz, eram falsas, uma ilusão. Eu vi nossa filha, eu vi seu rosto, e tudo o que havia nele era medo e dor. Ah, eu vi muito medo e muita dor em todos os anos na polícia, mas nada como aquilo. Nunca nada como aquilo. Ela soube que ia morrer, soube que estava morrendo. Eu pude ver em seu rosto, ela soube que estava acabado. E percebeu que estava sozinha.

As palavras de Marcos rasgaram a ferida. Não apenas isso, abriram uma ferida ainda pior, muito mais profunda. Margaret correu para longe do marido e chorou. Era um choro desesperado, cheio de interjeições, diferente do primeiro, mais de um ano e meio antes. Seu estomago se contorceu e se revirou como se fosse uma criatura viva, uma criatura cheia de tentáculos e dentes. Ali mesmo, no canto da sala, ela vomitou a pouca comida de muitos e muitos dias. A casa toda girava. Era o corpo reagindo à dor de uma forma que não parecia possível. No fim, quando se acalmou um pouco, sem se aproximar novamente do marido (aliás, nunca mais se aproximaria dele), ela apenas disse:

Eu juro que nenhuma mulher na face da terra amou um homem como eu amei você, Marcos Hasse. Eu juro. Mas isso precisa acabar. Eu não vou passar o resto da minha vida desse jeito.

Eu sei. –respondeu Marcos.

Margaret esperava mais, mas não houve, então partiu. Foi a vez de ela desaparecer por um longo tempo. Se não fosse pela filha, certamente não retornaria para aquela casa.

Capítulo 64

 

A gravidez era incômoda. Ela tentava seguir sua vida, ignorando, tantoquanto possível, a criança que crescia rápido, mas era uma tarefa árdua. Em alguns momentos, Amanda se apanhavaimaginando se seria um menino ou uma menina, mas afastava rapidamente os pensamentos. O que lhe importava o sexo, o rosto, ou qualquer outro detalhe daquela criança? Era um ser destinado ao matadouro, uma maldição. Não que ela própria pensasse assim, apenas raras vezes, mas era a trágica realidade. Aquela criança, fosse como fosse, fosse o que fosse, estava destinada a solidão.

Amanda acabou por decidir que não interferiria no crescimento daquele ser já tão frágil, mas que também não moveria um só dedo para tentar preservá-lo, então tentava viver sua vida da forma mais normal possível. Ainda assim, não raras vezes, apanhava-se censurando a si mesma por comer um prato muito gorduroso ou por ingerir algo pouco saudável e se corrigia. Jurava sempre que fazia tais coisas apenas em nome de sua própria saúde, mas não era fácil enganar a própria consciência.

 

Se alguns dias corriam normais, outros eram um verdadeiro pesadelo. A barriga crescia rapidamente agora, arrebentando boa parte das velhas feridas em seu corpo. Ou, ao menos, era o que parecia. Se não tivesse se habituado tão bem à dor, passaria os dias gritando. Em alguns momentos, era difícil até levantar da cama, mas ela seguia em frente, tanto quanto possível.

 

No exato dia em que a gravidez completara sete meses e duas semanas, o problema não era a barriga, e sim a cabeça, que latejava sem parar.  Amanda fez um grande esforço e levantou da cama. Pensou em iniciar uma bateria de exercícios leves, que a própria médica havia indicado, mas um dos obstetras que a haviam atendido no hospital mencionara que poderia não fazer bem ao bebê. E lá estava ela, mais uma vez pensando na criança, ainda que sem querer.  Amanda acabou abandonando os exercícios, mas decidiu que faria outra coisa. Muitas possibilidades passaram por sua mente, mas ela não teve tempo de colocar nenhuma delas em prática. Estava prestes a sair para um passeio, quando a pontada no ventre emergiu mais uma vez, acompanhada por uma tontura forte. Não era grande coisa. Ela havia passado por coisa muito pior e havia sobrevivido. Tentou convencer a si mesma que lidaria com aquilo sozinha. Foi então que percebeu que suas coxas estavam escorrendo. Sangue, mais uma vez. Quando a tontura piorou, Amanda partiu em busca de ajuda. Não queria envolver o noivo naquilo. Eric estava no trabalho e a coisa toda só lhe fazia mal.

Ela caminhou até a rua, apoiando-se no que havia pelo caminho. No lado de fora, avistou a boa e velha Lúcia, sua vizinha de meia-idade de cabelo engraçado sempre tão prestativa. A mulher regava as plantas, no lado de fora da casa. Amanda tentou chamá-la, mas sua voz saiu fraca. Então tentou caminhar até o portão, mas a tontura se tornou mais forte e suas pernas amoleceram. Mais dois passos trêmulos, e tudo o que havia diante de seus olhos agora era um grande borrão branco.

 

Duas horas depois, Amanda despertava novamente sobre a cama do hospital. Soube, no mesmo momento, que estava tudo bem. Sentia-se forte e descansada. Já estava enojada daquele cenário: sempre as mesmas paredes brancas, sempre o mesmo chão lustroso, sempre os mesmos quartos vazios e sem imaginação, mas, fora isso, tudo parecia bem.

 

Melina estava ao lado da cama, conferindo a prancheta, acompanhada por um médico de meia idade, um homem calvo muito bem apessoado. Seu pai também estava ali. Não vestia mais o uniforme do hospital, mas seria melhor se ainda o estivesse usando. Seu traje de passeio era a imagem da desolação, quase o fundo do poço. Amanda sentiu uma pontada de pena. E, o mais importante, ela tinha de admitir: ele estava ali afinal, aparentemente tentando ajudar.

O que aconteceu? –perguntou ela, aos médicos.

Só uma queda de pressão normal em uma gravidez. –respondeu Melina. –Ainda mais na sua. Não precisa se preocupar.

Como está o bebê?

 

A pergunta escorregou de seus lábios. Amanda não conseguiu deter as palavras.

 

Bem! –afirmou o homem de jaleco. –Na verdade, está melhorando, ganhando peso rápido. Fizemos um ultrassom enquanto você dormia só para nos certificarmos. Pode ficar tranquila: é um menino bastante forte.

Então, pensou Amanda, era um menino. Mais que isso, um verdadeiro guerreiro.

Amanda, esse é o Dr. Alexander Dutra. –disse Melina, apresentando o homem. –Ele é um especialista em casos de gestações de risco. É o melhor médico deste hospital, o melhor que eu conheço.

Amanda cumprimentou o homem, que respondeu com um aceno.

E você? –perguntou Amanda, ao pai. –O hospital chamou você?

Não. Fui eu que a trouxe, quando você desmaiou. Eu só estava de passagem por lá, então...

Obrigada! –disse Amanda, sincera.

Tudo bem! –respondeu o pai, por trás de um sorriso meio sem graça, sentindo-se útil pela primeira vez em muito tempo.

 

Eric entrou no quarto alucinadamente. Fez uma pausa para recuperar o fôlego quando percebeu que a noiva estava bem.

O que aconteceu? –perguntou ele.

Ela teve uma queda de pressão. –respondeu a médica. –Está bem agora.

Mas os vizinhos disseram que ela estava sangrando.

Foi um sangramento normal.

Normal?

Eric, sua noiva está grávida.

Eu sei. –respondeu ele, irritado. –Como eu poderia esquecer?

Todos se calaram por um momento. Eric fungou e respirou fundo para afastar a apreensão e o nervosismo e completou:

Isso tem que acabar.

O médico interveio.

É sobre isso mesmo que estávamos conversando antes de Amanda acordar.

Como assim?

É uma possibilidade. Amanda já está quase completamente recuperada. Não fará muita diferença para ela esperar ou não. Uma cesariana não seria o mais indicado, mas realmente não faria muita diferença.

Mas o bebê ainda é muito pequeno. –afirmou Amanda.

Ele certamente será o maior prejudicado em tudo isso. –respondeu o médico.

Não tem importância. –retrucou Eric. –Temos de fazer isso. O mais rápido possível.

Amanda percebeu que o pai meneava a cabeça, contrafeito.

Não. –disse ele. Fora sua primeira palavra até aquele momento. –Não, isso está errado.

O que disse? –perguntou Eric. Sua irritação aumentava.

Só acho que isso é o que você quer. –respondeu o pai. –Não é o que ela quer. Não é isso que ela quer, e só você não percebe.

Amanda viu o noivo agarrar o pai pela gola da camisa e levantá-lo do chão como se o homem não tivesse peso algum.

E o que você sabe? –bufou Eric. –Onde você estava? Onde você esteve esse tempo todo?

Uma tragédia estava prestes a acontecer. O médico tentou separar os dois homens, mas seus braços não tinham nenhum efeito sobre Eric. O noivo parecia capaz de partir o pai ao meio como se o homenzinho fosse feito de papel, e não era exatamente uma hipérbole.

Chega! –gritou Amanda. Sua voz soara alta, franca. –Eric, já chega!

O noivo se acalmou e obedeceu. Os pés do pai tocaram o chão lentamente.

Você não sabe de nada. –completou Eric, antes de soltar a gola do homem. –Ninguém sabe.

O pai abaixou a cabeça. Não estava zangado, ou mesmo magoado, apenas triste.

Você tem razão. –respondeu ele, antes de partir. –Eu não devia estar aqui, para começo de conversa.

Amanda observou o pai partir, completamente deprimido. Os médicos ainda permaneceram algum tempo ali, flutuando. Estavam perdidos em tudo aquilo.

Doutores, posso ficar um pouco sozinha com meu noivo, por favor! –pediu Amanda, também mais calma.

Os dois concordaram e partiram, confusos. Tinham realmente muita coisa para fazer. Afinal, aquilo era um hospital.

Havia uma penumbra no ar.

Eric, o que está acontecendo? –perguntou Amanda.

Isso não pode continuar. Apenas isso.

Eu o conheço melhor do que ninguém, e esse não é você. 7Amanda suspirou. Sabia o que estava errado.

 

–Isso tudo tem ver com ele, não é?–perguntou ela. –Maicon?

 

E foi a segunda vez que Amanda viu o noivo chorar em todos aqueles anos. Daquela vez, não passava de uma lagrima em seu rosto e de um tremeluzir nervoso em seus lábios.

Em todos esses anos, eu nunca ouvi o nome de nosso filho em seus lábios. –completou Amanda. –Nem uma só vez

 

O choro do noivo aumentou de intensidade, então ele se controlou. Realmente não era um homem de chorar. Sua velha mãe o havia criado daquele jeito.

Ele nasceu morto. –afirmou Eric, como se a frase respondesse tudo. De certa forma, respondia. –Os médicos disseram, na época. Um problema no coração.

Eu sei. –afirmou Amanda.

Mas, quando eu o segurei, ele ainda estava quente. Ainda parecia vivo. Muito vivo. Ai, eles o arrancaram de mim. Eu devia ter pedido um pouco mais de tempo, mas eu não pedi. Eu não estava pronto. Eu penso nele o tempo todo.

Eu também. –afirmou Amanda.

 

Os dois ficaram em silêncio por um longo tempo.

Querido, esta criança não tem nada a ver com o que aconteceu. Não tem culpa. Você sabe disso.

Não é uma questão de culpa, é uma questão de justiça. Essa criança não pode nascer viva. Não quando nosso filho não teve chance alguma.

Escute o que você está dizendo! Ele vai nascer. De um jeito ou de outro. Se houvesse uma razão, se houvesse uma maneira, mas não há. Não mais.

Então, o que vamos fazer?

Eu não sei. Ele vai nascer. Alguém vai levá-la para bem longe. Então nós vamos recomeçar, se houver um jeito. E eu quero você comigo.

Tudo bem.–disse o noivo, depois de um longo momento de silêncio, então partiu como um sonâmbulo. Amanda ficou ali, sozinha, no silêncio do quarto. Não, ela não estava sozinha. Não mais. Podia sentir isso agora.

Capítulo 65

 

Quando a bolsa estourou, pouco mais de um mês depois, os dois agiram com automatismo. Amanda apanhou sua mochila, que já estava preparada há algum tempo, e caminhou até o carro. Eric, por sua vez, dirigiu como um bom policial, eficiente e rápido, mas sem pressa ou ansiedade. Pelo vidro, Amanda observou as luzes da estrada passando muito rápidas. Era estranha a sensação. Em seu peito, apenas um grande vazio.

As contrações, no início bastante suportáveis, só se intensificaram quando ela já estava na sala de espera do hospital. Daquele momento em diante, não pararam mais de piorar. O obstetra garantira que as contrações eram necessárias, algo típico de um homem que, afinal, jamais passaria por aquilo. Então tudo piorou muito.

 

Amanda pensou que estava habituada à dor, mas aquilo já era estupidez. O bebê se contorcia dentro dela de uma forma que ela não conseguia entender. Era como se os ossos de suas costelas estivessem se expandindo como um balão e se estilhaçando. A dor trazia de volta suas velhas feridas. Por um momento, Amanda chegou a acreditar que a criança realmente queria matá-la, mas sabia que era apenas um temor infantil de uma mulher apavorada. O menino certamente só estava assustado e com muita dor, assim como ela. Mas foi apenas quando a criança em seu ventre parou de se mexer que Amanda realmente ficou apavorada. Não houve mais qualquer sinal do menino nas horas seguintes, apesar das contrações dilacerantes, e aquilo era de matar de preocupação. Era difícil estar ali, sozinha, em meio a tudo aquilo.

As enfermeiras passavam indiferentes, como se ela não estivesse ali. Havia mais três mulheres prestes a dar à luz, e a maternidade estava um verdadeiro caos. Os médicos também estavam ocupados com as outras mulheres. O plano de saúde era inútil naquelas situações, Amanda sabia. Ainda assim gritou por ajuda. Precisava de alguém para segurar sua mão, alguém para sussurrar que tudo estava bem. Ninguém apareceu. Ela permaneceu ali por longos minutos, que logo se transformaram em mais uma hora.

 

Repentinamente, porém, uma mão hesitante agarrou a sua.

–Está tudo bem! –disse alguém a seu lado. –Está tudo bem, filha.

Não, Amanda não queria aquele homem ali. Era do noivo que ela precisava, mas Eric não participaria daquilo, ela sabia. O velho ódio pelo pai retornou, mais forte que nunca. Afinal, como ele se atrevia a estar ali naquele momento? Então o sentimento se esmaeceu quando mais uma contração a sacudiu. A contração partiu, embora tenha deixado em seu lugar uma dor aguda e ardida, como se seu corpo estivesse pegando fogo por dentro.

–Ele não está bem! –sussurrou Amanda, às lágrimas. –Ele não está bem!

–Ele vai ficar bem. –prometeu o pai. Amanda acreditou nele. –Vocês dois vão ficar bem. E eu não vou a lugar algum.

O homem cumpriu sua promessa. Os dois permaneceram ali, naquele ritual de tortura da natureza, durante quase quatro horas. Amanda quase esmigalhara os dedos finos de seu velho pai de tanto apertá-los, mas ele não parecia se importar. Não, não era o mesmo homem. Não podia ser.

 

Enfim, ao cabo de mais alguns minutos, duas enfermeiras apareceram e agarraram a maca.

–Vamos. –grunhiu uma delas, e empurrou a geringonça.

Amanda gemeu com o movimento brusco.

–Posso ir junto? –perguntou o pai.

–Pela outra porta. –respondeu uma das mulheres, como se aquilo fosse uma espécie de coordenada.

–Qual delas? –perguntou o pai, perdido, mas já estava longe.

A maca atravessou outra porta. Daquele ponto em diante, Amanda foi conduzida por mãos ainda mais rápidas. A aparente indiferença daquelas pessoas era compensada pela visível eficiência. Em minutos, ela já estava deitada, com as pernas abertas, enquanto alguém espetava seu braço com uma agulha muito grande. A anestesia veio pouco depois.

Pessoas estranhas a cercavam agora. Eram os médicos, com seus aventais azuis e suas máscaras sinistras. Amanda, aliás, já começava a formular novas teorias sobre a função daquelas máscaras. A dor só aumentava, apesar do efeito desagradável da anestesia.  No meio de todos aqueles desconhecidos mascarados, Amanda reconheceu Melina e, em um movimento de desespero, agarrou a médica.

–Está doendo muito... Mais que da primeira vez... Muito mais...

–Eu sei, querida. –respondeu a médica. Amanda percebeu que realmente gostava daquela mulher. Melina passara tanto tempo com ela nos últimos meses que quase se transformara em um tipo de amiga. –Já vai acabar. Eu prometo.

Melina a soltou, mas outra pessoa segurou sua mão. Era o pai. Estava ali, todo de azul. Suava como um soldado no deserto. Ela suava mais que ele. Muito mais. Sua pele havia se convertido em um chafariz.

Parecia impossível, mas a dor conseguiu piorar. Aliás, aquilo não era mais dor. Alguém precisava, urgentemente, inventar outro termo, um mais adequado, de preferência bastante curto. E aquilo tudo ainda durou um bom tempo. O menino não deu mais sinal de vida. Amanda estava exausta. A última contração quase a fizera desmaiar, mas ela resistiu.

–A cabeça. –disse um dos médicos, que ela certamente não conhecia. –Está vindo.

–É pequeno. –disse outro. –Não está se mexendo. Vamos rápido!

Aquele parecia o pediatra.

–Tudo bem, Amanda, preciso que empurre com força. –disse um terceiro médico.

Aquele era um conhecido, o sujeito careca e simpático cujo o nome ela havia esquecido. Passara pelas mãos de tantos deles nos últimos meses que ficava difícil memorizar todos os nomes.

Amanda gritou sem perceber:

–Eu não consigo!

–Você consegue! Já acabou. Apenas empurre!

Amanda gemia, gritava e grunhia, mas era tudo em vão. Então veio a última contração, que foi certamente a pior de todas, uma coisa aguda, latejante, inimaginável. Contudo, repentinamente, veio o alívio. Seu corpo, enfim, relaxou. Sua mente rodou, como se ela estivesse em uma spacemauntain. Não que não houvesse dor agora. Havia sim uma dor de arrepiar, mas, perto da outra, era como passar férias no Caribe.

 

 A fraqueza era tanta, que Amanda chegou a perder os sentidos por alguns segundos, Ainda assim, conseguiu ouvir o chorinho abafado. Quando abriu os olhos, eles já o estavam levando embora. Era uma criaturinha muito pequena. Como um ser daquele tamanho iria sobreviver?

–Ele está bem. –ainda afirmou o médico, que já se afastava com o menino. –Muito bem! Só está cansado.

–Acabou. –sussurrou Melina, ao lado de Amanda. –O pesadelo se foi. Apenas descanse.

Não, não havia acabado. Amanda sabia, mas estava cansada demais para discutir, então obedeceu e fechou os olhos. Parecia um dèjávu. 

bottom of page