Serena
Temei, meu amor! Temei, quando a lua se ergue no céu! Porque os mortos caminham de pressa. E não há para onde fugir!
(Lenore, Gottfried Bürger )
Prólogo 1
De longe, parecia um morro muito alto. Mas bastava que os olhos se aproximassem para que se percebesse que tudo não passava de uma gigantesca pilha de corpos: todos mortos a espada, como se uma guerra sangrenta tivesse acabado de chegar ao fim. Formavam um mosaico de membros destroçados e faces agonizantes. Alguns corpos ali ainda se moviam. Sobre tudo aquilo, um homem negro de porte forte e semblante frio, trajado com a veste mais fina da região, permanecia sentado sobre algo que parecia um trono, mas que um olhar mais cuidadoso revelaria ser, na verdade, mais um amontoado de corpos, seis ou sete, arranjados da melhor maneira possível para acomodar, com o máximo de conforto, o homem sobre eles. Na cabeça do soberano, uma coroa feita com o crânio de alguém que morrera certamente há muito pouco tempo, algo visível pelos pedaços vermelhos de carne que ainda se prendiam aos ossos. Em volta, duas ou três dezenas de soldados armados com escudos e lanças pontiagudas vibravam de momento em momento. Todos, ali, sem nenhuma exceção, tinham a pele escura dos filhos da terra. Por todos os lados, o mesmo terreno sem vida, com tufos de mato seco surgindo do chão estéril ao longo do caminho. Apenas isso, por milhas. Ao longe, era possível divisar as copas amareladas de algumas poucas árvores queimadas pelo calor. O sol tocava o horizonte, transformando a paisagem plana em um borrão avermelhado.
O sujeito largo, sentado sobre seu trono humano, soltou uma risada seca. Achou engraçada a forma como o homem a sua frente rodopiou quando sua cabeça foi golpeada com força. Uma fila de homens e mulheres derrotados caminhava lentamente, já sem forças para lutar. Era uma fila da morte. O corpo sem vida do homem que acabara de ser atingido foi removido por braços fortes e atirado para fora da montanha de corpos, rolando até atingir o chão, quase cinquenta metros abaixo. Haveria descanso para ele, enfim. Os outros ainda precisariam sofrer seus últimos instantes de agonia.
A fila andou. Era a vez de uma mulher jovem e magra, de cabelos curtos e rosto forte. Estava nua, como todos os desgraçados atrás dela. Dois soldados forçaram-na a se ajoelhar. Ela cuspiu sangue no pé do homem sentado e sorriu com gengivas vermelhas. O tirano não pareceu se importar. Ao lado da jovem, um guerreiro inacreditavelmente alto, maciço como uma montanha, ergueu um porrete aparentemente muito pesado. Era uma criatura de outras épocas, um titã com músculos de aço que colocaria mesmo o mais corajoso dos deuses antigos para correr. Uma cicatriz cobria sua face esquerda de cima a baixo. A cabeça negra, sem qualquer vestígio de cabelo, reluzia como um espelho. O olho vazado, esbranquiçado pelo tempo, dava-lhe uma aparência perturbadora. Era um rosto que assustava, ainda mais em um corpo tão grande.
—Emi yoo wo apaadi! (Vejo você no inferno!). —disse a garota, ao tirano, sem nenhuma gota de medo nos olhos.
O homem sorriu com a audácia. O sorriso sarcástico de quem sabe que venceu. Com um movimento sutil, ele deu o sinal ao gigante. O porrete desceu com uma velocidade absurda, cortou o ar com força. O barulho ao mesmo tempo seco e úmido da madeira arrebentando o crânio da garota não foi agradável. Os soldados voltaram a vibrar. O corpo sem vida foi atirado, com o anterior.
Pouco a pouco, os inimigos foram mortos. Em poucos minutos, só havia quatro pessoas nuas na fila. O primeiro deles, um jovem forte de cabelos longos foi ajoelhado com dificuldade pelos soldados. O carrasco ergueu o pedaço de madeira assassina.
—O safihan lati wa alagbara! (Você se mostrou um grande guerreiro!) —disse o homem sobre o trono de corpos. —Ya kan idà ki mi! (Tome uma espada e lute por mim!).
—Fun mi ni a idà, ati o Moori! (Dê-me uma espada, e eu arranco sua cabeça!) —respondeu o jovem.
Visivelmente irritado, o tirano deu o sinal. O porrete desceu com mais força que antes. O estrondo de ossos se partindo voltou a soar. O jovem forte caiu quase morto com a pancada. Seu corpo ainda se debateu por alguns segundos, tentando lutar, mais foi em vão. Os soldados o jogaram morro abaixo, com os outros.
A segunda pessoa na fila, um homem de pele enrugada e cabelos e barba grisalhos, cumprimentou a mulher bonita atrás de si com um abraço paternal e se curvou para reverenciar o menino ao lado dela.
—Lati toto mi oba (ao meu verdadeiro rei) —disse ele, com carinho. —Mo kí aki! (Eu saúdo!).
O tirano deu a ordem. Era a vez do velho. Dobrar seus joelhos foi mais difícil que fazer o jovem anterior se ajoelhar. Era um ancião incrivelmente forte. Devia ter sido um guerreiro formidável, em outros tempos. Outra pancada poderosa soou pela floresta seca. O ancião desabou como um saco, mas uma fagulha de medo surgiu no rosto do homem sentado sobre os corpos quando o velho inimigo se ergueu, sobre os próprios joelhos, apoiado em seus braços ainda fortes. O ancião sorriu por trás da barba grossa, agora vermelha. Sangue escorria de sua boca como uma cascata. O gigante olhou para o porrete ensanguentado sem entender.
—Emi yoo pada wa fann, apanirun! (Voltarei para buscar você, usurpador!) —grunhiu o ancião, apagando todo o sarcasmo que ainda havia na face do tirano.
Aquilo tudo durou longos segundos. Quando o velho voltou a cair, ainda tinha o sorriso desafiador na face. Os soldados relutaram muito antes de jogá-lo com os outros. O corpo do velho guerreiro rolou lentamente até o chão, como se seu espírito se recusasse a desistir da guerra recém-travada. O homem sentado sobre o trono de corpos demorou um pouco para se refazer do susto e precisou enxugar as pesadas gotas de suor que haviam se formado em sua própria testa.
A visão do ancião sendo arremessado quase fez a mulher chorar. Ela se conteve. Não queria dar ao assassino de sua família o gosto de ver suas lágrimas, era perceptível. Tomando o que ainda lhe havia de fôlego, a mulher se ajoelhou ao lado do menino. Havia medo e desesperança naquele pequenino rosto de criança, mas a coragem do pai vibrando nos olhos acinzentados era mais forte. A coragem de um rei.
— Mo fe ki e gbo temi, omo mi! (Quero que me escute, meu filho). —disse ela, depois de beijar o rosto do garoto com seus lábios machucados. —Iwọ kii yoo ku nibi, Mo passe! (Você não vai morrer aqui, eu estou mandando). Ko nitori ti ikorira (Não pelo ódio). O yoo kú fun irê (Você está destinado a morrer por amor). Nikan ife le para meo (Somente o amor pode matar você)!... Nikan ife (somente o amor)!...
O homem sentado deu a ordem. Chegava a vez da mulher. Ela se ajoelhou por conta própria, com a elegância de uma rainha. Seus cabelos eram encrespados e muito longos. Seu rosto era forte e, ao mesmo tempo, delicado. Ela ergueu a cabeça e encarou o tirano, sem uma fagulha de medo em seu olhar. Era uma filha da terra, um ser mágico: em seus olhos de corsa, havia a ternura da noite e a esperança da manhã. Sua pele era a mais perfeita de todos ali, a mais escura, e reluzia com o brilho de um diamante.
O tirano sorriu. Em seu rosto, algo que não chegava a ser amor. Mas era o mais próximo disso que alguém tão sádico conseguiria expressar.
—Ole gobe mi ti (Você podia ter me escolhido). —disse ele.
—Mo fe iku (Eu prefiro a morte) —respondeu ela, com a face inabalável das pessoas que sabem que fizeram a escolha certa, mesmo que isso lhes tenha custado a própria vida.
O sorriso no rosto do homem desapareceu. Ele tocou a caveira em sua cabeça com o indicador para provocar a mulher. Foi em vão. Os olhos dela o encaravam com honra. Por fim, ele deu sinal ao carrasco, que bateu sem piedade.
Morria, naquele momento, a beleza mais pura que já passara por aquela terra, a filha mais antiga dos homens mais antigos. Com olhos caídos, o rei ordenou a dois de seus homens que a levassem e a enterrassem em algum lugar bonito. Eles obedeceram. Aquela morte, visivelmente, não o alegrara.
E chegava a vez do menino. O pequenino parou diante do homem sentado. Não se abateu, não tinha medo. E não porque não compreendia o que estava acontecendo. Não, todo o temor que ainda havia em sua face se dissipou porque sua mãe lhe havia feito uma promessa, e ela sempre cumpria o que prometia. Mesmo no topo de sua meia década de vida, ele compreendia. A verdade se abriu diante de seus olhos.
O rei, por sua vez, não tinha nada mais a dizer. Provocar uma criança daquele tamanho parecia despropositado, ainda mais depois da última morte. Então, ele simplesmente deu o sinal. O garoto se voltou para o carrasco, que já erguia o pedaço de madeira assassina, e o encarou com seus olhos de um cinza fosco, sólidos como aço. O gigante não se abateu e golpeou com força. Em seus olhos, nenhuma hesitação. Se bem que um olhar mais cuidadoso teria percebido um ligeiro tremor em suas pálpebras, talvez em suas mãos. Aquilo não era comum, certamente. Não era a primeira criança naquela pilha de corpos, mas era a primeira que o encarava com olhos de um rei.
Se a pancada saíra mais fraca que o rotineiro, era impossível afirmar. O estrondo seco ecoou por toda a planície. Os animais da savana se alvoroçaram; as árvores agitaram suas copas. O menino foi arremessado com a força da pancada, e seu corpo pequenino rolou para fora da montanha por conta própria. No caminho, seus olhos encontram e cumprimentaram muitos rostos conhecidos.
O homem sentado acomodou seu dorso largo e suspirou, cansado, mas satisfeito.
—O ti wa ni pari (Está feito) -disse ele. —Mu aua asse (Tragam o banquete).
E durante a meia hora seguinte, ele saboreou suas costelas de porco e a coisa branca pegajosa que parecia purê de batatas. Depois de tudo, deixou a pilha de corpos para trás e partiu para cidade. Seu exército o seguiu.
O sol já se apagava no horizonte e as sombras já começavam a cobrir a paisagem, quando uma mão muito pequena surgiu no topo daquela montanha irregular. Segundos depois, o menino se ergueu acima de tudo, acima de todos aqueles corpos sem vida de tantos amigos e conhecidos. Sua cabeça certamente doía muito, mas ele não se abateu e não chorou. Jamais choraria novamente. Em seus olhos, a dor pela perda das pessoas que mais amara e a profecia da justiça vindoura. Com um grito alto, ele selou seu próprio destino. Não era a voz de um menino, era o rugido feroz de um leão.
Eles haviam fracassado. Só o grandioso Vast sabia o quanto haviam fracassado. Com os olhos fixos no horizonte e o rosto destemido de um príncipe, o pequeno homem seguiu seu caminho.
Prólogo 2
Na penumbra da sala, na grande casa de fazenda, algumas sombras compridas se amontoavam em uma das paredes. Seus donos estavam logo à frente, meia dúzia de pessoas que resistiam bravamente ao cansaço da madrugada fria, lançando ao ar, de tempos em tempos, cascatas de um vapor branco e espesso, que flutuavam na meia-escuridão como fantasmas, antes de se dissiparem por completo. As chamas das lamparinas vibravam foscas. Sobre as duas mesas de madeira, arranjadas no centro do cômodo espaçoso, estava o caixão escuro. Dentro dele, descansava uma mulher jovem e bonita, de cabelos castanhos lisos e muito compridos, presos em uma longa trança que lhe escorria pelo peito e pelo ventre. Ao seu redor, flores amarelas cheirosas e castiçais com velas negras que exalavam uma fumaça amarga e ardida.
O terço chegava ao fim. O padre se ergueu da cadeira e despiu sua estola rocha dos ombros. Era um sujeito alto, magro e muito pálido. No escuro, com a cara branca contrastando com a batina negra, parecia uma assombração, uma cabeça sem corpo.
A ladainha cessou, mas os murmúrios, as fungadas e os suspiros continuaram. Todos choravam. O menino se aproximou do pai, um homem loiro muito alto e muito forte, dono de um maxilar largo e comprido, de olhos azuis muito claros e de uma barba grisalha e espessa, e o puxou pela calça. O pai o ergueu. Em seu colo, ficava mais fácil enxergar o cômodo e as pessoas a sua volta. O menino estendeu o braço e apertou os dedos gelados da mãe no caixão. O rosto dela estava ainda mais branco que o do padre.
—Quando ela vai acordar? —perguntou ele, ao pai.
Ninguém pareceu ouvi-lo. Uma mulher magra se ergueu da cadeira. O menino observou enquanto ela se aproximava alguns passos e dirigia a palavra a seu pai. Era uma velha conhecida da família.
—Nós vamos para casa agora, Henrique, mas retornaremos amanhã pela manhã, bem cedo. Não se preocupe com nada. Nós cuidaremos de tudo.
—Tudo bem! —respondeu o pai do menino, enquanto ele e a mulher trocavam um abraço apertado. —Obrigado por tudo, minha irmã!
Com a mulher, saíram um homem gordo e um adolescente quase tão gordo quanto o homem. O padre se despediu e saiu em seguida. Por fim, o casal idoso deixou a casa, com acenos e muitas lágrimas, acompanhados por uma menina de uns quinze anos.
O pai e o menino ficaram ali, no silêncio, por algum tempo. O homem suspirou com a novidade da solidão.
—Eu vou ajeitar o quarto dos fundos. —disse uma mulher loira muito bonita, assim que passou pela porta.
No momento, era a única pessoa na casa além do pai, do filho e da mãe no caixão. Ela caminhou até o meio da sala, deu mais uma olhada no corpo esguio da mulher deitada debaixo do cobertor de pétalas e estremeceu.
—Arthur dorme comigo hoje, para você descansar melhor. —disse ela.
—Obrigado, Helen. —agradeceu o homem. —Eu não sei o que seria de mim sem você aqui.
—É meu trabalho e minha obrigação. —respondeu a garota.
Antes de sair, seus olhos ainda foram atraídos pelo dorso de Hércules do homem enfiado na camisa xadrez. Havia paixão neles, certamente. Uma paixão muito intensa e aparentemente secreta.
Um instante depois, e foi a vez de o pai apertar as mãos frias da mãe. O menino acompanhava toda aquela tristeza sem compreender. Bastava acordá-la, ele parecia pensar. O homem soltou um choro abafado, que não chegou de fato a escapar, e apertou seus próprios lábios com o punho serrado: uma mão de pedra, que saída de um antebraço nu largo como um tronco de árvore. Seus olhos estavam vermelhos, o menino percebeu.
—Eu prometo a você, meu filho: vou acabar com quem fez isso a sua mãe! Vou triturá-lo até os ossos!
O garoto encarou seu pai nos olhos. Aparentemente, não entendia metade daquelas palavras. Parecia não compreender também o ódio na voz do pai. Tudo aquilo era novo para ele.
O menino se agitou e escorregou dos braços do pai, que o soltou como um chumaço de algodão. O homem desabou sobre o sofá, exausto. Em minutos, adormecia. Um sono nervoso, mas extremamente pesado. O garoto permaneceu ali, em um dos cantos, brincando com seu cavalo de madeira. Era um brinquedo bonito, maior que o dono, e parecia muito com um cavalo de verdade.
Não muito tempo depois, algo estranho aconteceu. Repentinamente, o chão estremeceu. Um tremor fraco, quase imperceptível. As paredes também tremeram. Uma vibração estranha e incômoda se espalhou pelo ar. Então um sussurro de muitas vozes se ergueu, silencioso, na solidão da sala. Não era muito diferente da ladainha que silenciara há pouco, mas soava ameaçador e denso, quase pegajoso. As chamas das lamparinas vibraram convulsivamente. As velas sobre a mesa se apagaram.
A coisa toda fora tão sutil que alguém no cômodo ao lado não perceberia o ocorrido. No momento seguinte, tudo retornou ao normal. O menino voltou a brincar. Era pequeno demais para achar aquilo estranho. Não demorou muito, porém, para que outro som baixo surgisse. Aquele veio do meio da sala. Mais especificamente, de dentro do caixão. Era o gemido sufocado de alguém sentindo muita dor e soava acompanhado de outro ruído, pouco mais alto, de gravetos se partindo. O objeto de madeira sobre a mesa sacudiu com violência, quase a ponto de desabar de seu suporte improvisado. O homem quase despertou.
Mas aquilo também durou pouco. O tremor e os ruídos cessaram tão rapidamente quanto surgiram. O menino caminhou para o centro da sala. Estava curioso agora. Uma mão branca de dedos compridos e delicados agarrou a borda do caixão. Uma mão que não deveria estar se movendo. Ao menos, não sozinha. O menino não se assustou. Em sua mente, tudo era simples demais. A mãe ergueu o tronco lentamente. Seus cabelos longos haviam se soltado e escorriam-lhe agora pelo rosto, como uma espécie de véu. Pareciam quase ter vida própria.
A face do menino se iluminou. Já estava sentindo saudades da mãe, era visível. Ele pensou em acordar o pai, mas não houve tempo. A mulher saltou do caixão, leve como uma brisa. Nem mesmo o assoalho barulhento estalou com seu peso. Ela parou bem ao lado do filho e pareceu não o perceber. Seus olhos brilharam negros no escuro, como os olhos de um animal noturno. Um ruído estranho, inumano, saía de seus lábios, como se dentro de sua boca algo perigoso se escondesse, algo com garras e muitos dentes.
O menino ergueu a mão para agarrar o vestido florido da mãe, mas quando deu por si ela já estava a vários metros de distância. Aquilo sim parecia estranho, mesmo para uma criança tão pequena: a mãe caminhava pausadamente, a passos lentos, mas a cada movimento ela cortava uma distância desproporcionalmente grande, como alguém patinando no gelo. A velocidade era tanta que o corpo desaparecia a cada passo para surgir em um lugar diferente meio segundo depois. E havia também aquele som difícil de descrever, que surgia sempre que ela se movia, mais ou menos como o ruído de ossos e tendões se partindo ou vermes se alimentando. Talvez ambas as coisas.
A mãe atravessou a sala e desapareceu no corredor. O garoto a acompanhou. Ela parou diante da porta de entrada. O corredor estava bem mais escuro que a sala, porém, quando a porta se abriu sozinha, a lua cheia invadiu a casa com sua luz azul fosca. O menino não entendia aquilo: porque ela estava indo embora?
—Mamãe! —chamou ele, numa mistura de curiosidade e preocupação.
A mulher voltou a cabeça em sua direção por um instante. Só parte do rosto era visível sobre os ombros, mas foi o suficiente.
Então era isso? Ele compreendeu. Não, aquela não era sua mãe; era outra pessoa, ele teve certeza. A mãe provavelmente continuava deitada no caixão.
A mulher esquisita deu um último passo e desapareceu como que em um passe de mágica. A porta foi tragada por algo invisível e bateu com uma força inacreditável, a ponto de fazer todas as paredes da sala tremerem.
O pai do menino despertou assustado e esfregou os olhos com força.
—Arthur? —perguntou ele, erguendo-se num salto.
Ficou mais tranquilo quando viu o filho na porta da sala. A empregada surgiu no momento seguinte.
—Mas que barulho foi...? —estava a perguntar, mas emudeceu. —Henrique! —exclamou ela, apontando para o meio da sala.
O homem correu na direção do caixão.
—Não! —grunhiu ele, um urro tão alto que seria capaz de acordar todos os vizinhos, se houvesse alguém no raio de dez quilômetros. A empregada agarrou o garoto e olhou para o homem com uma mistura de preocupação e medo nos olhos.
—Quem faria algo assim? —perguntou ele. —Quem?
A mulher ainda pensou antes de responder:
—A mesma pessoa que a matou... Não há outra possibilidade.
O garoto viu algo surgir nos olhos do pai, algo que o assustou. Com medo, ele se agarrou a empregada. Nunca vira aquilo antes e não saberia descrever. Era um brilho sádico que deformou o rosto forte do pai. O homem abriu o armário da sala, apanhou um mosquete enorme e o carregou com pólvora suficiente para derrubar um elefante.
—Tenha cuidado! —disse a mulher.
—Não sou eu que preciso ter cuidado. —respondeu o pai, antes de desaparecer.
A porta bateu quase com tanta força quanto antes. A empregada demorou a se acalmar. Os piores pensamentos a agitavam e não a abandonariam com facilidade. Ela abraçou o menino com força e se acomodou em uma das poltronas, nos fundos da sala. Ficaram ali por um longo tempo, enquanto, no lado de fora, a lua cheia escorregava pelo céu. A espera pareceu eterna. O menino acabou adormecendo no colo da mulher, que apagou horas depois.
Os ponteiros do relógio pêndulo se moveram por quase cinco horas antes que a porta votasse a bater. A batida, agora, soara bem mais fraca. Raios de sol começavam a invadir a casa. A empregada se ergueu. Seu corpo doía inteiro. O menino despertou a tempo de ver o pai ressurgir na sala. Seu rosto estava contorcido pela dor, mas, ao menos, era ele novamente.
—Nada! —exclamou ele. —Todos nós procuramos. Todos nós! Cada homem da cidade. Não encontramos nada. O sujeito é um fantasma.
O menino ainda viu o pai afagar o caixão e suspirar antes de cair novamente no sofá.
—Por que alguém faria isso, Helen? —perguntou ele, inconformado. —Por que alguém a mataria e levaria o corpo dela?
A babá colocou o menino ao lado do pai. Lado a lado, os dois se pareciam ainda mais: o mesmo rosto, os mesmos olhos, os mesmos cabelos, a mesma boca carnuda e rosada.
—Há algo que eu preciso dizer. —afirmou a empregada. —Não queria dizer antes, não com você naquele estado. Acho que sei quem pode tê-la matado. Mas é apenas uma intuição.
—Quem? —perguntou o homem. Uma fagulha de esperança ressurgiu em seus olhos.
A mulher escolheu as palavras e estava prestes a dizer algo, mas foi interrompida pelo barulho no lado de fora. Um alvoroço de vozes e gritos se erguia não muito longe dali.
—Mas que raios é isso? —perguntou o pai do menino, antes de se erguer e caminhar para fora.
—Espere aqui! —disse a empregada, para o garoto, antes de seguir o homem.
O menino, obviamente, não compreendeu. Era grande o suficiente para distinguir ordens, mas não o suficiente para diferenciar as verdadeiramente sérias das que se repetiam a cada dez segundos.
No lado de fora, uma verdadeira peregrinação emergira da trilha que cortava a floresta densa. O sol surgia no lado oposto, bem atrás das plantações de milho e de trigo que se estendiam por milhas, em uma centena de tons de verde e amarelo.
Três dúzias de pessoas, pelo menos, aproximaram-se da casa. À frente do grupo, um homem já bastante velho mas com o porte forte de quem trabalha com a terra caiu de joelhos a alguns metros da porta de entrada. Estava coberto de sangue. Os outros criaram um semicírculo em torno do primeiro. Pareciam peixinhos alvoroçados em um aquário.
—O que aconteceu, Carlos? —perguntou o pai do garoto, antes de descer o pequeno lance de degraus.
O homem estava em choque. Abriu a boca por um longo tempo antes que a primeira palavra saísse.
—Meus... Filhos... Meus meninos... Estão mortos!
—O quê? Como assim?
O pai do garoto observou as faces a sua volta. O assassino havia feito mais duas vítimas. Era assustador, mas aquilo parecia não explicar tamanho medo. As pessoas se agarravam aos crucifixos e às espingardas e se benziam o tempo todo. Algumas delas, tremiam e gemiam de forma estranha.
—Como aconteceu?
—Nós estávamos em uma trilha na floresta. O dia já estava nascendo, e nós não havíamos encontrado nada, então decidimos procurar em outro lugar. Foi quando encontramos, em um galho, a corrente que sua esposa estava usando no velório. Eu apanhei o cavalo e me preparei para voltar e avisar os outros do grupo. Meus filhos decidiram ficar por lá para procurar mais. Foi então que a coisa saltou do meio das árvores e atacou os meus meninos. Meus filhos eram fortes! Você sabe como eles eram fortes. Mas eles não tiveram chance. A coisa tinha unhas e dentes. Meus filhos... Eles foram estraçalhados, Henrique. Estraçalhados como papel.
O pai do garoto analisou mais atentamente a sujeira escura que se agarrara como lama ao corpo, ao rosto e ao cabelo ralo do velho. Havia pedaços ali que pareciam pele humana, talvez músculos.
—Eu sinto muito, Carlos!
—Eu agarrei o cavalo e fugi. —completou o velho. —Fugi como um covarde.
—Você não foi covarde. Só estava salvando sua vida. Não se preocupe! Vamos matar o homem que fez isso a seus filhos! Vamos matar o homem que tirou minha esposa de mim!
O velho riu. Uma gargalhada macabra, que subiu cinco oitavas em poucos segundos. Uma expressão sádica surgiu na face vermelha do homem. O pai do garoto se afastou alguns passos, assustado.
—Esse é o problema. —disse o velho, no espaço entre duas gargalhadas, sem que a expressão alucinada deixasse seu rosto. —Foi sua esposa! Foi sua esposa que matou meus filhos!