Segunda Parte
Capítulo 6
Seus olhos se acenderam lentamente. No começo, tudo não passava de um borrão, sombrio e doloroso, que brotava mais de suas memórias que de seus olhos. Então o ódio poderoso, sempre ele, se acendeu como uma brasa em seu coração. Queimava como fogo. Ele se ergueu antes mesmo de abrir os olhos. Tentou gritar, mas seu corpo ainda estava fraco demais para qualquer esforço. Suas pernas vacilavam.
O menino levou uma das mãos à cabeça. Sangue! Muito sangue. Escorrera por um longo tempo, mais do que parecia humanamente suportável, mas ao que parecia havia cessado, talvez porque a própria fonte, sua vida, tenha chegado muito perto de se esgotar. As lembranças eram confusas, mas a fúria e a tristeza tornavam tudo muito claro.
Seu tio, Ireje, que se autointitulava Assengula, o conquistador. O homem que levara embora seu pai, seu irmão e, não contente com tudo isso, também sua mãe. Antes mesmo de seus olhos se acenderem por completo, com seu corpo tomado de ira, o garoto escalou a pilha de corpos. Queria chegar ao topo, queria exterminar o usurpador. Apanhou uma ponta de lança no meio do caminho, arrancando-a de um dos corpos, para terminar o trabalho.
Já no topo do monte de corpos, apenas a escuridão o aguardava. Era noite. Uma noite clara e límpida de outono, com a lua cheia iluminando, como um espelho, o mato claro e a areia fina da savana. Não havia mais ninguém ali. Todos haviam partido. O tio havia escapado de suas mãos.
O garoto olhou para o chão, ou para aquilo que deveria ser o chão, no topo daquela gigantesca pilha de corpos. Só o que via era o sangue. O sangue de seus amigos, o sangue de sua mãe, seu próprio sangue. Tomado de mágoa e ira, ele caiu de joelhos e chorou. Estava sozinho. Não apenas ali, no meio daquela pilha de pessoas mortas, mas no próprio mundo. Em toda aquela vastidão que o cercava, e muito além, ele não tinha mais ninguém.
Quando o choro se esgotou, já que seu corpo não conseguia mais produzir nenhuma lágrima, o garoto se pôs de pé. A lua indicava a direção de casa, como sua mãe havia ensinado. A esquerda do sol, a direita da lua, em noites de lua cheia, como aquela. Seu tio certamente estaria lá, no trono de seu pai. O ódio voltou a acender seu coração. Era a única coisa mais forte que a tristeza e a solidão. O garoto apanhou sua ponta de lança e gritou. Um grito alto e poderoso, que despertou as feras da savana. Um leão distante respondeu a seu chamado.
O menino partiu, veloz como uma gazela, potente como um rinoceronte. Cada passo ressoava na imensidão daquela terra escura como uma explosão. Aquelas milhas não tinham chance contra ele. As muralhas do palácio também não teriam. Ele as escalaria. As destruiria, se lhe dessem a chance, se ousassem se colocar entre ele e o pescoço do usurpador. As sombras o seguiam. E ele podia senti-lo, em seus ombros, Ovará, o deus da morte. Ele era seu guia. Haveria sangue, haveria dor.
Alguns metros à frente, o primeiro obstáculo: o riacho de Tamuro. Era um córrego raso, cujas águas raramente encobriam a canela de um adulto. Seria um desafio para alguém de seu tamanho, mas seria rápido. O garoto acelerou os passos, preparando o corpo para as águas frescas.
Houve um vislumbre, nas águas. Repentinamente, ele parou. Era seu vulto no rio. Seu corpo era pequenino, quase insignificante. A ponta de lança, em suas mãos, parecia um sabre. Só então ele se dera conta de que a arma estava quebrada. Não mataria um gambá com aquilo, muito menos um rei guerreiro com dez vezes seu tamanho. E jamais passaria por Oluk, o guardião, com seus dois metros e meio de altura. Era cômico, no fundo, ter imaginado que poderia. O poder que imaginava em seus membros não estava ali. E o que em sua mente parecia uma corrida fabulosa não passava de um cambalear moribundo. Ele estava à beira da morte, ou muito próximo disso. Seu corpo não suportaria a caminhada de dois dias até as muralhas. E o deserto escaldante em frente, além da pequena floresta cortada por aquele insignificante fio de água, certamente enterraria seu corpo.
O garoto parou e refletiu. Não teria sua vingança daquele jeito. Se tentasse, e não fosse engolido pelo deserto, seria flechado pelos guardiões do templo de Inscla, muito antes de chegar a seu destino. Por mais que aquilo machucasse, ele precisava postergar aquela caminhada. E não apenas por alguns dias. Seria preciso crescer. Seria preciso aprender. Seria preciso mais e mais.
Debaixo de uma árvore de caluba, com sua copa baixa e espalmada, o garoto aguardou. Sete dias... Sete dias, debaixo das folhas amarelas, ocultado por uma alta vegetação verde, matando sua sede com o orvalho que despencava das folhas à noite e nutrindo seu corpo frágil com os insetos que se alimentavam da seiva, ele aguardou ainda mais.
Muitos peregrinos passaram por ali, e ele continuou esperando. Outros peregrinos, e o garoto apenas aguardou. Ele acompanhou uma caravana dos Aikos, pastores, comerciantes de lã, famosos por sua aguardente e por sua bondade. Era tentador, mas ele os deixou ir. Na noite seguinte, passaram os Iorukas, estudiosos das estrelas, sábios, que colecionavam textos proféticos. Havia muito a aprender com eles, mas não era o que ele precisava, então os deixou ir. Na manhã seguinte, vieram os Ariadas, filhos de Obarô. Eram construtores, os melhores, e erguiam desde tendas até palácios. Os muros da cidade sagrada foram erguidos por eles. Os homens pararam para encher os cantis. Eram alegres, e as piadas eram boas. O menino sorriu, mas não era seu destino, então apenas os deixou ir. Dois dias depois, vieram os Paradis, religiosos do oriente, famosos por sua hospitalidade e por sua justiça. Suas roupas eram coloridas, e seu canto era extremamente belo, como o canto de sua mãe. Um dos pés do menino se moveu sozinho, mas ele o deteve. Não era seu destino. Nada daquilo era. Um dia, quem poderia saber, seria possível. Não naquele momento. Era preciso esperar, ainda mais.
E eis que, no pôr do sol do sétimo dia, vieram eles, os Takaras, da nação de Olovê, guerreiros hábeis, peritos em diversas armas e em táticas de cerco. Eram famosos por sua vida nômade e pela total falta de compaixão. Viviam dos tributos ganhos pelo medo que suas lanças despertavam. Suas lanças, aliás, eram temidas até mesmo pelos guardiões do templo sagrado de seu falecido pai. E eles eram os melhores. Os homens eram quietos e ríspidos: não rezavam, não contavam piadas, não teciam tendas e não cantavam belas canções. Só o trote dos cavalos os acompanhava. E eram cavalos realmente majestosos. Eram guerreiros, em suma. Suas armaduras reluziam na meia-escuridão do fim do dia.
O menino se ergueu e bloqueou o caminho dos soldados. Eles não hesitariam em passar sobre uma criança desavisada que lhes cortasse o caminho, não se importariam em esmagá-la, vezes e mais vezes, com os cascos poderosos dos cavalos. Mas aquela havia feito aquilo de propósito, e a surpresa os deteve. Os cavalos bufaram com raiva. O hálito era quente.
—Kuro ni ọna, omokunrin! —(saia da frente, moleque!) —grunhiu o comandante dos guerreiros.
O menino se ajoelhou e fez uma súplica!
— Jọwọ, olori nala khan! (Por favor, grande comandante). —disse ele. —Koni ami lati jê ofo ti ọkọ, ori itọka latili awọ ara (ensine-me a ser a ponta da lança, a ponta da flexa que atravessa a carne). Koni ami lati jê òjì ó gba ojú ogun kọjá ki o si ge ọfun (Ensine-me a ser a sombra que atravessa o campo de batalha e transpassa as gargantas!). Koni ami lati jê ida gibin ẹjê si pa aye run! (Ensine-me a ser o fio da espada que sameia o sangue e aniquila a vida!). Koni ami lati jê lati ṣe ogun! (Ensine-me a ser um guerreiro!).
Os soldados se silenciaram por um tempo, numa espécie de transe causado pela surpresa, depois caíram nas gargalhadas. Era algo raro entre eles.
—Akewi! (Um poeta!) —gritou o mais alto deles.
—Osere! (Um artista!) —grunhiu outro, entre duas gargalhadas.
O chefe dos soldados se conteve a apenas disse:
— O yẹ ki o lọ pẹlu awọn Iguês! (Você deveria ir com os Iguês!). Wọn sọrọ lẹwa (Eles falam bem)!
—Wọn kọja nibi (Eles passaram bem por aqui). —retrucou o menino, como um príncipe. —Mo si jẹ ki wọn lọ! (E eu os deixei ir!).
A força daquelas palavras fez as gargalhadas se encerrarem no mesmo instante. O primeiro dos soldados pulou do cavalo e caminhou até o menino. Seus passos eram ágeis e densos, como o garoto havia imaginado os seus próprios passos, dias antes. O comandante analisou as feridas que se espalhavam pelo rosto e pelo corpo nu do menino e encarou a grande cicatriz em sua testa.
—Tani o ṣe eyi si, omokunrin? (Quem fez isso com você, moleque?) —perguntou ele.
—Irejê, onigbowo ole itẹ okuta! (Irejê, o usurpador do trono de pedra!)!
Os homens bufaram de asco. Um deles escarrou. O comandante não escondeu o desgosto.
—Owú ìríba! (Aquele bastardo covarde!). —grunhiu ele.
Voltando-se para o garoto, ele perguntou:
— Ti o fẹ da eje re (Você quer derramar o sangue dele?) Ti o fẹ yọ oju rẹ? (Quer arrancar seus olhos?) Ti o fẹ lati binu oku rẹ (Quer mijar sobre seu cadáver?)
—O jẹ gbogbo awọn ti mo fẹ! (É tudo o que mais quero!) —respondeu o menino.
—Emi yoo kọ ọ gbogbo eyi... (Posso ensiná-lo a fazer isso...) —respondeu o comandante, enquanto caminhava até seu cavalo e apanhava sua lança. —Ti o ba gbe soke! (Se você conseguir arrancar isso do chão!).
A lança foi cravada na terra com muita força. O comandante voltou a montar seu cavalo. O garoto analisou a cena por um instante. Era só isso. Arrancar uma mísera lança do chão e tornar-se um guerreiro. Com muito ímpeto, ele puxou com força o cabo de metal. Por um momento, foi como se o mundo virasse de ponta-cabeça, tamanha a confusão. Quando deu por si, o menino percebeu que estava no chão, com a coisa de metal sobre seu peito, esmagando-o. Era uma coisa excepcionalmente pesada. Bem mais pesada que as lanças de treino que às vezes seu falecido pai o deixava manejar. O menino tentou se erguer, mas não conseguiu. Sem querer passar vergonha, jogou a lança para o lado e se levantou, depois tentou apanhá-la novamente, mas acabou com a face completamente enterrada no chão escuro.
Durante tudo aquilo, os homens gargalharam com muita força. Não, aquela não era uma arma muito adequada para um rapazote de meia década. Era uma arma de verdade, massiva, pesada e poderosa como poucas. O menino observou aquelas gargalhadas despropositadas e gritou. A velha ira, sempre ela, com o ardor que queimava seus músculos, voltou a tomar seu corpo. Ele ergueu o objeto pesado e, a muito custo, conseguiu apoiá-lo em seu ombro ferido. Com a arma erguida, ficava mais fácil, embora suas pernas ainda vacilassem. O garoto suspirou, cansado, mas vitorioso.
Os homens se calaram. Uma expressão de surpresa e certo orgulho, embora tímido, encheu os olhos do capitão.
— Kini oruko re, omokunrin? (Qual seu nome, garoto?) —perguntou ele.
—Oleri, jora khan! (Oleri, senhor!) —respondeu o menino.
—Opari! (Não mais!) —retrucou o capitão. —Lati i lọ, iwọ yoo jẹ Okoidá, ohun ti o ru ọkọ! (A partir de hoje, você será Okoidá, o portador da lança!)
Antes de partirem, o comandante ainda disse:
—Gbe ọkọ titun rẹ! (Carregue a arma até sua nova casa). O jiná, sugbon o jẹ rẹ akọkọ idaraya. (É longe, mas é sua primeira missão). O jẹ pataki lati awọn ẹsẹ rẹ ti ko lagbara! (Vamos exercitar suas pernas fracas!).
E todos se foram, deixando a paisagem colorida do riacho mais uma vez deserta.
Capítulo 7
Era noite na cidade. As árvores gigantescas permaneciam caladas. Suas copas projetavam sombras que cobriam tudo no vilarejo, apesar das lamparinas que ainda ardiam nos poucos postes, no pequenino centro comercial da cidade. O centro comercial, aliás, possuía apenas uma loja de ração, um bar e uma pequena feira. A cerração se erguia, pesada, sobre o vilarejo, cobrindo parcialmente o céu e a lua cheia, que tingia as nuvens com sua luz tímida. Apesar dela, era uma noite escura.
Não foi difícil perceber que os produtos da feira não haviam sido recolhidos, mesmo muitas horas depois do anoitecer. Pareciam estar ali há um bom tempo. Aquilo não era normal. As casinhas de madeira em torno do centro permaneciam com suas janelas abertas. Algumas chocalhavam e batiam com a brisa gelada que soprava sobre a cidade. As outras casas também estavam quietas e aparentemente desertas. A familiar melodia de viola não se fazia ouvir no interior do bar. As conversas animadas e a cantoria dos homens embriagados também haviam desaparecido. Tudo o que havia ali era um pesado silêncio.
Os cavalos pararam. Alguns bufaram, reclamando. Estavam assustados. Seus donos saltaram logo depois, mergulhando suas botas no lodo pegajoso da cidade, ainda mais pegajoso graças à chuva que despencara durante toda a tarde. Formavam quase um exército, quatro dúzias de fazendeiros e agregados armados até os dentes. Estavam atrás do forasteiro.
Um dos homens, que permanecia escondido atrás de umas das árvores, aproximou-se do grupo, dirigindo-se àquele que parecia ser o líder da tropa.
—Vocês chegaram.
—Tem certeza que ele ainda está ali? —perguntou o homem loiro, alto e muito forte, apontando para o bar. Sua barba e seus cabelos grisalhos não eram penteados há um bom tempo. Seu estado não era nada bom. Muto diferente de semanas antes. Todos ali estavam em frangalhos. A pequenina cidade havia mergulhado em um verdadeiro pandemônio.
—Certeza não. —respondeu o homem que estivera vigiando. —Mas um dos garotos do cabaré viu o sujeito entrando no bar. E eu não tirei meus olhos daquele lugar. Então ele só pode estar ali.
—Ótimo! —respondeu o homem loiro.
Um sujeito muito forte de pele sardenta se aproximou do líder do grupo.
—Estamos carregando as armas. Seria bom formar um cerco, para impedir que o miserável fuja.
—Concordo! —respondeu o homem loiro. A ira se acendeu em seus olhos, que até aquele ponto só transpareciam cansaço e confusão. —Vamos acabar com ele!
Uma mulher loira que acompanhava o grupo se dirigiu ao homem loiro. Carregava um rapazinho em seus braços.
—Tenha cuidado, Henrique! Espere o reforço da capital antes de agir!
—Se fizermos isso, ele pode fugir.
—Eu estou assustada. Você viu como as pessoas da cidade estavam apavoradas. Elas estavam fugindo. Algumas... Algumas estavam vendo pessoas mortas, Henrique. Pessoas mortas.... Acho que esse homem tem algo a ver com tudo isso.
—Não se preocupe, Helen. As pessoas sempre veem muita coisa quando estão assustadas. Os mortos estão mortos. Apenas isso. Nossos amigos, nossa família, pessoas que nós amávamos, foram tiradas ne nós. E a violência... As pessoas estão com medo. Os moradores vão voltar quando tudo tiver acabado. Nós já sabemos quem é o responsável por tudo isso. E ele está ali dentro. Vamos pegá-lo.
—Você viu os mortos. Alguns foram destroçados. Quem faria algo assim? Aquilo não é normal. Não pode ser.
—Vamos resolver tudo isso!
—Deixe-me pelo menos levar Arthur para casa. Ele não precisa participar disso. Ele é muito pequeno.
—Ele precisa ver o que vai acontecer com o miserável que levou a mãe dele, Helen. Ele me agradecerá quando for um homem.
—Henrique...
O homem loiro apertou os ombros da garota com carinho.
—Eu agradeço por tudo que você tem feito. Nós estaríamos destruídos sem você. Mas eu prometo: nossa vida vai voltar ao normal. Vamos acabar com isso e voltar para casa. Sem superstições. Sem esses medos tolos de pessoas assustadas. Só aquele homem, morto.
A garota suspirou vencida. Algo dentro dela lhe dizia que não seria tão fácil. Mas ela concordou.
—Apenas fique bem atrás do grupo. —disse o homem loiro, à garota. —Ele pode estar armado. Ou pode ter comparsas.
Outro homem muito forte se aproximou, com mais oito, tão fortes quanto.
—Mandamos os mais jovens e os mais velhos manterem guarda nos fundos. —Afirmou ele. —Nós vamos pela frente.
—Ótimo! —respondeu o sujeito loiro. —Vamos matar o desgraçado!
Os homens se aproximaram, cercando o barraco onde funcionava o bar, como haviam combinado. Foram alguns poucos passos, no silêncio da noite. Todos os animais da floresta, já bastante quietos, se calaram. A porta já estava aberta. Os mais fortes do grupo entraram. Diferente dos outros, eram homens hábeis, se não habituados ao confronto, ao menos capazes de travá-lo. E estravam dispostos a isso.
Era difícil acreditar no que se via. Ali dentro, uma verdadeira visão do inferno. Uma dúzia de corpos, ao menos, todos destroçados. Todos os que haviam se recusado a fugir da cidade haviam morrido, ao que parecia. As paredes, o chão e até o teto estavam tingidos de sangue. Naquela meia-escuridão, era como um espelho negro sobre a madeira, refletindo a noite do lado de fora e a única lamparina fosca do bar.
E ali estava o forasteiro, acomodado sobre um banco alto, apoiado sobre a bancada do bar. Suas roupas e seus cabelos negros e longos eram a pura expressão do caos, muito diferentes da etiqueta com a qual se apresentara na cidade semanas antes, como uma espécie de príncipe entre plebeus. Sua boca estava tingida de sangue, um sangue espesso e seco. A coisa escorrera pela camisa branca de franjas e pelo lenço bordado. O estrangeiro havia perdido qualquer compostura, era visível. O dono do bar, ou o que havia sobrado dele, estava aos pés do homem, completamente dilacerado. O estado do corpo era tão lastimável que a garota loira, que até aquele momento observava tudo de longe, acabou se aproximando para garantir que seus olhos não a estavam traindo. Sim, era inegável, aquilo era obra de algum tipo de fera. Facas não fariam nada parecido, apenas dentes e garras. Muitas delas. A garota protegeu o menino instintivamente. A sensação de pânico em seu peito se aguçou. Aquilo não era apenas maldade ou loucura, era algo muito pior, realmente muito pior. Ela só não sabia o quê. Mas os instintos mais primitivos a mandavam bater em retirada.
Os homens se aproximaram do forasteiro com suas armas em riste, prontos para disparar. Eram mosquetes pesados e poderosos, mas o sujeito estranho não parecia preocupado com eles. Ele sorveu um gole de bebida, num pequeno copo de vidro.
—Nada! —sussurrou ele, com sua voz metálica e abafada. —Nenhum gosto. Nada além do sabor amargo do sangue. Apenas ele, por todos esses anos. Não se pode ter tudo, não é verdade?
—Você... —grunhiu o homem loiro, apontando para os cadáveres. —Você os matou, matou todas aquelas pessoas na cidade também!
—Sim, eu matei a maioria delas. Algumas eu só devorei. Nós sempre dividimos nosso pão. Como ordenam os mandamentos.
—Por quê? Por que você fez isso?
—O escorpião e rã. —sussurrou o forasteiro.
—O quê? —perguntou o homem loiro, assustado com aquela conversa estranha.
—Isso não deveria ter ocorrido. Não desse jeito. Deveria haver alguma beleza, alguma poesia. Mas é minha natureza. A destruição sempre me segue. Sempre me perseguiu. E dessa vez ela chegou mais rápido do que eu esperava.
—Pois bem. Se a culpa é de sua natureza, então ela está prestes a ser expiada.
O homem loiro ajeitou ainda mais a arma. Os outros fizeram o mesmo. O forasteiro se levantou e abriu os braços, compassivo.
—Pois bem, crianças! Façam seu melhor! Eliminem o mal da face da terra, com suas armas assustadoras!
Aquilo era um convite. Disparos, disparos e mais disparos. Poeira e lascas de madeira por todos os lados, e uma camada espessa e escura de pólvora que se ergueu sobre tudo ali, encobrindo, por alguns segundos, os corpos e o sangue. O último disparo atingiu a cabeça do forasteiro. O sujeito desabou como uma árvore podre. Seu corpo atingiu o chão com força.
O homem loiro se aproximou alguns passos para conferir o trabalho. Aparentemente, não havia dúvidas. Só por precaução, ele levantou uma pistola e disferiu um último disparo. Os homens soltaram ligeiros brados de vitória. Estava acabado. A garota loira suspirou. As ferroadas em seu peito cessaram por alguns instantes.
—Vá para o inferno, desgraçado! —grunhiu o homem loiro. E se preparou para abandonar o bar. Todos fizeram o mesmo.
—O que fazemos agora...? —estava a perguntar um dos homens do grupo, quando a mesma voz metálica voltou a soar pelo bar, agora carregada de um timbre estranho, não mais o tom abafado, mas algo perigoso, que parecia aderir as sombras da noite.
—Vocês já vão? —perguntou o forasteiro. —Assim cedo? Nossa noite ainda nem começou.
Ninguém parecia acreditar. Os homens se voltaram, muito lentamente, para a direção da voz, embora ela parecesse agora envolver o lugar inteiro. E ali estava novamente o sujeito estranho, sentado em frente ao balcão, como antes, como se nada daquilo tivesse acontecido, como se todos tivessem voltado no tempo. Instintivamente, o homem loiro conferiu o cano do mosquete: estava quente. Mais que isso, estava fervendo. Não havia dúvida alguma de que uma bala havia saído dali. Mas o forasteiro não parecia ferido de nenhuma forma. Havia, contudo, algo de diferente em seu rosto, a expressão dilacerante da mais profunda indiferença entalhada nele, como se o sujeito tivesse simplesmente despido sua expressão anterior, ou mesmo todo seu rosto. Até os traços e o contorno dos olhos e da boca pareciam diferentes agora.
—Como isso é possível? —perguntou um dos homens apavorado. Ninguém parecia acreditar. Todos estavam em transe. E as coisas estavam prestes a ficar muito piores.
—Henrique! —sussurrou a mulher loira, apontando para um dos cantos do bar.
Todos viram, mas ninguém conseguia acreditar. Sim, ali estavam elas, algumas das pessoas mortas nas semanas anteriores, dois rapazes, duas garotas jovens, uma menina de treze anos, uma mulher de meia idade e uma jovem esposa. Estavam mortos, não havia dúvida disso. Ainda assim, estavam ali, de pé, encarando a multidão assustada. Os rostos carregavam a mesma expressão indiferente e perversa que emanava da face do forasteiro.
O homem loiro cambaleou alguns passos, em transe, ao perceber a esposa morta de pé. Voltando-se para o forasteiro, ele só conseguiu sussurrar:
—Demônio!... Você é o demônio!...
O forasteiro se ergueu, e respondeu, com sua voz vibrante e pegajosa.
—Não, eu não sou. Mas, se o demônio existisse, ele seria muito parecido comigo.
O homem ergueu seus olhos, e eles agora brilhavam na meia escuridão, como os olhos de um predador selvagem. Os olhos dos outros mortos também se acenderam. Então algo ainda mais estranho aconteceu: uma melodia áspera e densa pareceu brotar do chão e das paredes, acompanhada por uma brisa congelante e pegajosa que parecia viva. Era como o coro de inúmeras vozes, como uma imensidão de preces baixas soando numa espécie de compasso grotesco. E o que elas diziam, embora as palavras não fossem discerníveis, não poderia ser algo bom. A chama da lamparina vibrou, quase a ponto de se apagar, lançando sobre o lugar sombras ainda mais pesadas. O forasteiro se ergueu ainda mais na escuridão. Seu corpo vibrou e sacudiu de forma estranha e seus ossos começaram a estalar de forma violenta, como se estivessem se partindo. Seu corpo se alongou e se tornou maior. O sujeito, que já era alto, pareceu dobrar de tamanho na escuridão. E, apesar das sombras, todos podiam ver as garras longas e pontiagudas que brotaram de suas mãos e os dentes afiados que agora se recusavam a se acomodar em sua boca.
Quando a melodia macabra cessou e a chama da lamparina parou de se agitar, todos se assustaram com a aparência real do forasteiro. Alguns se afastaram instintivamente, e a garota gritou. Quando os mortos atacaram, tudo foi muito rápido. Alguns homens foram dilacerados antes mesmo de perceberem o que os havia golpeado. Alguns gritaram em desespero, como animais no abate. A lamparina despencou da parede, tamanha a violência do ataque. A luz da chama vibrou forte por um instante e então se apagou. Alguns mosquetes que ainda estavam carregados dispararam na escuridão. As balas só conseguiram ferir os vivos. Adagas e facões rasgaram as sombras, mas eram inúteis. Sangue, e mais sangue. Gritos, e mais gritos. Membros se desprenderam dos corpos. O homem loiro golpeou algo, que retribuiu o golpe. O impacto foi violento. A garota tentou correr, com o menino nos braços, mas foi lançada ao chão por algo muito forte, algo que marcara suas costas com feridas profundas. O garoto rolou de seus braços. Com um gemido de dor, ela ainda gritou: “Corra, Arthur”, antes de ser puxada novamente para as sombras por braços inacreditavelmente poderosos.
O menino obedeceu e, tomado pelo medo, correu para a rua, na direção da luz opaca da noite. Aqueles poucos metros, para alguém tão pequeno, pareciam intermináveis. Mas ele correu com valentia e com coragem e alcançou a porta. Mal a brisa da noite o encontrou, porém, e ele foi apanhado por braços fortes. Aqueles eram braços estranhos, mas bastante acolhedores. Braços que o protegeram.