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O Magnata

 

Era noite, uma noite fria, limpa e extremamente estrelada. O carro permanecia desde o fim da tarde estacionado em uma rua marginal de terra. O muro alto e incrivelmente massivo se estendia por muitos e muitos quilômetros. Era quase surreal, como se alguém tivesse enfiado a maldita Muralha da China bem ali, no meio da cidade. A pessoa responsável por aquilo tinha certamente muito dinheiro. Do outro lado do muro, era possível enxergar adegas, quiosques luxuosos, quadras de tênis, piscinas de todos os tamanhos, jardins gigantescos, lagos profundos, cachoeiras enormes, um hipódromo e até uma pista de automobilismo. Era quase como outra dimensão, uma dimensão de luxo e extrema riqueza, completamente alheia à pobreza que havia do lado de fora. E havia a mansão propriamente dita. Não, aquilo não era uma mansão, era um castelo enorme, maior do que alguns bairros da cidade, uma construção larga, alta, espaçosa, com o formato e o desenho de uma daquelas catedrais barrocas. Localizava-se na parte central da propriedade, sobre um morro íngreme, como um objeto de extremo valor sobre um pedestal. O resultado era de cair o queixo. Aquilo não era riqueza, era mais, muito mais, algo para o que ainda não se havia inventado um nome.

Klaus Kriger Von Hoffman, até o nome era pomposo. O pai era um industrial alemão de ascendência judaica, que acabou abrindo mão de parte de sua fortuna para fugir da Alemanha nazista. Em sua nova terra, como um bom homem de negócios, acabou expandindo sua fortuna de uma maneira realmente fabulosa, com negócios que se estendiam por todo o país: bancos e agências de crédito por todo o território nacional, metalúrgicas no Sudeste, empresas de cerâmica no Sul, empresas de extração de minério no Centro-oeste, hotéis de luxo no Nordeste. O filho herdou a fortuna do pai quando ele faleceu e, não contente com tudo aquilo, expandiu ainda mais os negócios, com ações em multinacionais e offshores, empresas de segurança de dados e empresas de tecnologia de todos os tipos. Isso sem contar os negócios com petróleo, principal ramo da família. O pai era reconhecidamente o vigésimo homem mais rico do mundo quando vivo, o que já não era pouca coisa. Alguns achavam que o filho havia alcançado a oitava posição, embora fossem apenas especulações.

Mas o que um homem como aquele poderia querer com ele? Encomendar a própria morte seria certamente uma loucura. A segurança da mansão deixava isso bastante claro. Se o velho quisesse realmente morrer, estava dificultando bastante o trabalho. Alguém próximo havia enviado a carta? Certamente não, e o papel timbrado, com o endereço da mansão como remetente deixava isso muito claro. Se alguém quisesse colocar as mãos na fortuna do velho, deveria ser mais cuidadoso. Matar aquele homem, de qualquer modo, seria impossível, mesmo para ele. Se tivesse mais tempo, talvez. A segurança da mansão era espetacular, mas havia brechas. Sempre há brechas. A empresa Alpha Security era uma multinacional extremamente famosa, especializada em segurança VIP. E o sujeito havia contratado o pacote mais caro. Câmeras de infravermelho com sensores de movimento e alarmes de todos os tipos eram só o começo. Alguns objetos que pareciam servir para decorar o jardim funcionariam, na verdade, como armadilhas para atrapalhar pretensos invasores. O mesmo valia para alguns detalhes da arquitetura da casa. Aquilo não era acidental, era fruto de um longo e cuidadoso planejamento, uma estratégia de segurança absurdamente competente. Isso sem falar na força humana, composta por soldados realmente muito bem treinados. Até as armas que portavam eram absurdamente potentes, e pareciam todas ilegais. Havia até atiradores de elite nos telhados, com seus óculos brilhantes de visão infravermelha, o que era realmente de apavorar. Contudo, assim como as empresas normais de segurança sempre montavam seus esquemas pensando em assaltantes de banco, as especializadas sempre pensavam em terroristas, e todas as falhas de segurança naquela mansão envolviam o desleixo com situações cotidianas, como se a grande ameaça fosse um exército de homens portanto fuzis de repetição e dirigindo carros-bombas, e nada mais. Um profissional sorrateiro poderia, com alguma paciência, apanhar um alvo desprevenido sem chamar nenhuma atenção até que fosse tarde para qualquer reação. Tempo, porém, era algo que ele não tinha. O quinto dia estava chegando ao fim e, com ele, o prazo para a execução do trabalho. Fazia muito tempo que ele não precisava devolver o dinheiro de um cliente, mas às vezes acontecia.

Não havia como entender muito bem o que aquele contrato significava, mas ele podia conjecturar algumas coisas. Antes de receber a carta, tudo o que ele sabia sobre o velho vinha das muitas notícias nos jornais. O sujeito era um verdadeiro magnata, com presença constante em muitos eventos da alta-sociedade, figurinha carimbada nas colunas sociais. Ele próprio patrocinava festas fabulosas, como meio de paparicar clientes e amigos. Nos últimos tempos, porém, o sujeito andava mais retirado, por alguma razão difícil de entender. Alguns especulavam que se tratava de alguma doença. Depois que recebeu a carta, ele próprio tratou de acionar sua rede de informação, e algumas pessoas que conheciam alguns dos empregados da casa começaram a sondar, como que por pura curiosidade. Pareciam, à primeira vista, boatos inocentes, mas não eram. Em pouco tempo, muitas informações, a maioria delas bastante baratas, mas também algumas bastante caras, começaram a aparecer. Com tudo isso, ele pode montar um quadro mais amplo em alguns poucos dias.

Em primeiro lugar, o velho estava de fato doente. Câncer, ao que parecia, e já em um estado bastante avançado. O círculo de confiança do homem também acabou se delimitando de forma mais clara, por meio das novas informações. Em primeiro lugar, o sujeito tinha muito menos amigos do que alguém seria capaz de imaginar. A pessoa a sua volta em quem ele mais confiava era seu secretário, por falta de um termo melhor. Guilherme Azevedo: homem de trinte e dois anos que nutria pelo velho o que parecia uma admiração bastante genuína, uma espécie de faz-tudo, e a pessoa com maior poder nos negócios da família depois do patrão. Os contatos também haviam revelado que o secretário tinha certas inclinações homoafetivas, embora se esforçasse para esconder muito bem o fato do patrão, que como bom tradicional não via a prática com bons olhos. Além do secretário, o velho confiava muito em seu motorista, que também funcionava como uma espécie de chefe de segurança. Esse era um sujeito negro de meia idade absurdamente forte e alto. Dez anos antes, o motorista havia tomado um tiro enquanto defendia a neta do velho de um possível sequestro. Cinco sequestradores foram mortos, e um segurança acabou na UTI. O fato, por si só, explicava a confiança do velho no motorista, bem como o salário do sujeito, que chegava a seis dígitos. Fora os dois, o velho não parecia confiar realmente em mais ninguém, e todas as outras pessoas em seu círculo de amizade eram meros contatos na política ou peças em áreas de interesse, muito mais que amizades sinceras. Além deles, havia o filho mais novo que, desde muito jovem, passava quase todos os dias em uma clínica, internado por conta de problemas mentais. O pai nutria pelo filho uma espécie de amor paternal extremamente cuidadoso, mas também extremamente envergonhado. Graças a isso, mantinha o filho de quarenta e dois anos cuidadosamente trancafiado, aparentemente para evitar a preocupação com todos os cuidados que a doença acabava demandando. Ainda assim, segundo suas fontes, o sentimento do velho pelo filho retardado parecia genuíno. A clínica na qual o filho permanecia internado era uma das mais caras e renomadas do país, quase quinhentos quilômetros longe da mansão.

Mas a pessoa em quem o velho mais confiara, e a única a quem ele dedicara um amor extremamente profundo, estava morta: sua neta, de vinte e sete anos. A pobre coitada fora assassinada cerca de três meses antes. Aquilo, ao que parece, acabou com o avô muito mais que a doença, que já consumia seu corpo castigado por quase dois anos. Além da neta, o filho mais velho, pai da garota, havia morrido em um acidente, durante uma prova de corrida amadora, cerca de quinze anos antes. O filho mais velho, aliás, era o brilho dos olhos do pai, um rapaz alto, forte, bonito, dono de um par de olhos penetrantes, de uma pele parda e lustrosa, de cabelos encaracolados e bastante escuros e de um carisma simplesmente arrebatador. Com a morte do filho, a neta assumiu um lugar ainda mais especial no coração do avô, o lugar que fora do pai, o lugar de maior destaque em sua mente e em sua vida, quase um altar adornado em sua alma. Até que ela também se fora. Tudo indicava que aquele contrato estranho envolvia o assassinato da garota. Mas como? Se quisesse o assassino morto, bastava pedir no contrato. Por que aquele jogo sem sentido? Era impossível deduzir mais qualquer coisa sobre aquilo sem entrar em paranoias. Talvez o motivo fosse outro. A neta fora encontrada estrangulada em um quarto de luxo, em um dos hotéis cinco estrelas do centro da cidade, que aliás pertencia ao avô, o que já era bastante estranho. Ninguém sabia muito bem o que ela estava fazendo lá. Talvez um amante. Ainda que a segurança do hotel não fosse tão boa quanto à da mansão, era bastante robusta. Será que a morte da garota o preocupava? Estaria o velho contratando seus serviços para testar a própria segurança? Se esse fosse o caso, ele tinha alguns conselhos para o homem. Por exemplo, não adiantava tanto trabalho para proteger a casa se o carro blindado que o sujeito mais usava era abandonado por horas a fio em um posto de lavação fora da propriedade. Ainda que houvesse câmeras por ali, a segurança era péssima. E o carro era apenas uma das falhas. Havia outras a serem exploradas. Muitas outras. Eram apenas hipóteses, obviamente, mas havia aquela que era a razão mais provável de ele estar ali, no meio da noite, sem saber exatamente do que se tratava tudo aquilo.

 

Todas aquelas conjecturas fervilhavam em sua mente, quando algo estranho aconteceu: os seguranças deixaram suas posições, todos eles, e se dirigiram até a entrada da mansão. Uma van estacionou no quintal em seguida. O que seria aquilo? Algum tipo de treinamento? Não estava na hora da mudança de turno, isso ele podia garantir, e mesmo os turnos da segurança eram revezados de forma bastante cuidadosa para que sempre houvesse ao menos dois homens fortemente armados em cada posto. Não, aquilo era outra coisa. Além do velho, agora só havia uma pessoa dentro da mansão, seu motorista. Mas o sujeito logo surgiu do lado de fora e embarcou na van. O veículo partiu, atravessou o longo gramado à frente da propriedade, passou pelo grande portão de entrada, e estacionou na estrada asfaltada que levava ao centro da cidade, cerca de doze quilômetros à frente. De onde estava, ele podia ver as luzes do carro, que não partiu nem retornou. O velho estava sozinho na mansão, a menos que algum outro segurança estivesse escondido ali há pelo menos três dias, sem ver a luz do dia, o que parecia improvável. As luzes de todas as câmeras se apagaram. Por fim, o portão dos fundos foi aberto automaticamente. Pelo binóculo, ele acompanhava tudo aquilo, ainda tentando entender.

Claro! Um convite para entrar. Até os cães haviam sido presos no canil, o que só acontecia durante o dia, nunca à noite. O homem o estava convidando a entrar. Ele sabia exatamente onde o velho estava, no escritório, no primeiro andar, em uma das laterais da mansão. Estava ali desde o começo da tarde. Era fácil chegar até ele pelo portão dos fundos. Os seguranças estavam todos bastante distantes. Se aquilo fosse uma armadilha, o velho estaria se colocando em um risco muito grande e aparentemente desnecessário. Não faria sentido. O sujeito precisava conversar face a face, como um bom homem de negócios, e apenas isso. Era um trabalho e tanto para uma conversa. O velho merecia seu tempo e seu respeito. Mais por curiosidade que por necessidade, ele resolveu entrar.

Um corredor largo coberto por elegantes pedras de mármore conduzia os visitantes do portão dos fundos até a entrada lateral da mansão. Ainda que fosse um dos caminhos mais curtos, a caminhada chegava a cansar, quinhentos metros, no mínimo. Algumas figueiras faziam companhia pelo caminho, distribuídas dos dois lados do caminho de pedras. E havia ainda o pequeno lago de águas azuis ao lado da estrada. Era possível ouvir até mesmo o barulho da pequena cachoeira e dos patos nadando e se divertindo. À noite, pouca coisa podia ser distinguida, mesmo com as lâmpadas decorativas, mas durante o dia a paisagem era de encher os olhos, mesmo se tratando apenas da entrada dos fundos. A entrada principal era muito mais bonita do que aquela, também bem mais longa. Ele levou cerca de dois minutos para alcançar a mansão. A porta dos fundos permanecia escancarada. Era uma porta pesada, de duas folhas, com relevos esculpidos na madeira. Alguém havia apagado as lâmpadas ali. Ele entrou. Um corredor alto e muito longo conduzia até o escritório, única parte da casa onde havia algum sinal de luz. Aquele não era o escritório central da mansão. Havia oito deles. Mas ainda assim o luxo daquele lugar era de encher os olhos. As paredes escuras de madeira ardiam com o brilho fosco das lâmpadas do lustre de cristal, cuja forma lembrava vagamente uma colmeia de abelhas ou mesmo uma pinha de ponta-cabeça. Os móveis eram antigos e visivelmente muito caros. Os detalhes da arquitetura e da decoração eram de impressionar. O chão estalava com os sons dos passos, tamanha a altura do teto. Era como estar em uma igreja. Nos fundos do escritório, a grande lareira de pedra ardia em um tom vermelho vivo.

E ali estava o homem, em sua cadeira gigantesca, que mais lembrava um trono. Era um homem moreno, de baixa estatura, com um rosto quadrado e um nariz grande e arredondado. Um bigode espesso e pouco mais escuro que os cabelos grisalhos cobria seus lábios. Seu semblante era sério e penetrante, e havia certa força em seus olhos, mas nada nele indicava o poder que possuía. Se passasse pela rua, seria um homem comum, um desses senhores aposentados que caminham pelas praças nos finais de tarde para tomar algum sol e ler seu jornal. Nada mais que isso.

―Ora, então você veio! ―exclamou o homem, e logo lhe indicou a cadeira à frente da mesa, que formava com a outra e com a poltrona no canto do escritório um jogo perfeito, tanto na cor quanto nos bordados no couro.

―Creio que o senhor não me contratou para matá-lo. ―respondeu ele. ―Mas fiquei curioso sobre o propósito do pagamento. Meu negócio, o senhor deve saber, é bastante específico. Não entendi muito bem pelo que estou sendo pago e, apesar da quantia generosa, fico um pouco desconfortável com isso.

―Não se preocupe! ―retrucou o homem, com a tranquilidade que o poder concerne aos poderosos. ―Estou lhe pagando por seu tempo e sua atenção.

―Nesse caso, você a tem.

O velho sorriu.

―Devo confessar que você é exatamente como eu imaginava.

―Sério? A maioria diria o contrário.

―Exato! Eu não sou como a maioria, você verá. Sabe… Eu sei como é. Ser um homem comum, um simples e reles homem comum. As pessoas menosprezam os homens comuns. Antes da doença, um de meus passatempos favoritos era andar por cada um de meus negócios, por todos os lados, com roupas baratas, sem revelar quem era, até que um gerentezinho ou um diretorzinho qualquer acabassem por me destratar, ou até apanhar algum racista medíocre em um cargo de alto escalão. Quando eu os convocava para uma reunião pessoal, sem revelar o assunto, eles ficavam empolgados, esperando uma promoção, ou ao menos um grande elogio. Presunçosos! Quando eles me reconheciam… ―um sorriso de pedra brotou em um dos cantos dos lábios do homem. ―A expressão deles me fazia muito feliz. Realmente, muito feliz.

―Sei como é. Eu tenho passatempos parecidos. Obviamente mais modestos.

―Eu aposto que você tem sim. Ah, meu caro, eu valorizo os homens comuns. É preciso ter medo dos homens comuns. Meu chefe de segurança apostou que você seria um homem forte, de trinta e poucos anos, provavelmente algum veterano do exército ou de alguma tropa de elite da polícia. Já eu, apostei que você seria um homem de pelo menos cinquenta anos, com uma barriga saliente, óculos de grau e o peso dos anos nas costas. Gerente de supermercado, talvez algum dono de locadora.

―Farmacêutico...

―Farmacêutico? —perguntou o velho, às gargalhadas. —Ah, isso é fantástico. Parece que eu ganhei a aposta.

―Sem querer apressá-lo, senhor Hoffman, mas sou um homem bastante desconfiado, e o mistério não é agradável para mim. Por que estou aqui, afinal?

―Você é um homem bem informado, tenho certeza. Deve saber sobre o assassinato de minha neta.

―Sim, eu soube. Pelos jornais.

―Quero que mate a pessoa que fez aquilo.

―Tudo bem! O senhor já pagou pelo serviço, e muito bem. Só preciso de um nome.

―É aí que está... ―sibilou o velho, encarando-o nos olhos. ―Não sei quem fez aquilo.

―Como assim? ―perguntou o convidado, ainda sem entender.

―Quero que o encontre e o mate.

―Acho que o senhor entendeu errado. Nosso ramo é bem específico. Vou devolver o dinheiro, e pode conseguir um bom investigador. O gerente de sua empresa de segurança pode certamente conseguir alguém.

―Honestamente, acho que foi você que entendeu errado. ―afirmou o velho, e pousou uma pequena maleta escura sobre a mesa, logo antes de abri-la. Dentro, muito dinheiro. Centenas e centenas de notas distribuídas em quatro colunas consideravelmente volumosas.

―Estou confuso agora. Mais dinheiro?

―Para você fazer um trabalho que está fora de sua especialidade. Quero que encontre quem matou minha neta, e faça o desgraçado pagar.

―Com um terço disso, o senhor contrata as melhores agências de investigação do mundo.

―As melhores agências de investigação do mundo não são você. E isso é apenas a metade. Acredite, esse dinheiro não é nada para mim. Algumas horas, em um dia regular em meus negócios. Pouco mais que isso. A coisa mais valiosa em minha vida foi tomada de mim sem que eu pudesse fazer qualquer coisa a respeito. Mas eu posso fazer agora.

―Me esclareça... Por que eu?

―A sensação que eu tinha quando meus empregados arrogantes descobriam quem eu era, que comentei a pouco, o pavor em seus olhos que me enchia de alegria. Aquele pavor não é nada perto do pavor que você desperta. Eu admiro esse pavor. Jamais seria capaz de algo parecido, mesmo com todo o dinheiro do mundo.

As coisas começavam a fazer sentido. O velho continuou, depois de um suspiro profundo. Parecia incrivelmente cansado. A doença certamente o consumia, e de forma bastante severa.

―Nem todos os meus negócios são exatamente legais, sabia? Tenho alguns contatos, ainda que superficiais, com pessoas não muito bondosas. E seu nome, entre eles, é cochichado entre dentes. Esse medo, em homens tão perigosos… Foi esse medo que me deu essa ideia. Quero que encontre a pessoa que fez aquilo com minha filha e a mate. Não apenas isso, quero que a faça sofrer, como nunca antes alguém sofreu na história deste mundo desprezível. Não apenas dor: agonia! Quando você deixar esse escritório, vou espalhar aos quatro ventos que o contratei. Quero que o homem que matou minha neta sinta medo, quero que o coração dele experimente um pânico que jamais experimentou. Quero que ele tenha pesadelos e desperte durante a noite em absoluto pavor, quero que se arrependa por ter sequer se atrevido a respirar um dia. Você, meu amigo, é o homem para isso. Não o engomadinho de alguma agência de segurança. Você! E, então, o pior ainda estará por vir.

O velho observou o convidado nos olhos.

―O que me diz?

―Tudo bem! Eu aceito o contrato. Mas, como em todos os contratos, algumas regras devem ser seguidas. Quero ter certeza que compreende isso.

―Prossiga!

―Depois de iniciar um trabalho, por razões difíceis de explicar, ele não pode mais ser cancelado.

O velho sorriu de prazer.

―Fechado! ―grunhiu ele, entre dentes.

―Sou pago para executar um trabalho, não para adivinhar as vontades de um cliente. O que você ordenou será feito, custe o que custar. Muito sangue pode ser derramado pelo caminho. E não estou exagerando. Não há retorno, em hipótese alguma.

―Não esperaria algo diferente. Vá em frente!

―Contrato firmado.

Ele se levantou e caminhou até a porta do escritório. O velho apenas se recostou na cadeira, aparentemente muito mais tranquilo e feliz do que minutos antes, também bem mais cansado.

―A propósito… ―ponderou ele, antes de deixar a mansão. ―Talvez o senhor queira pedir para seu pessoal desarmar a bomba em seu carro. O blindado. Ela só detona com um sinal específico, mas nunca se sabe.

Ele partiu. No corredor, ainda pode ouvir a gargalhada e os aplausos do velho. O homem estava mesmo feliz. O caminho de volta pareceu ainda mais longo. Só quando já estava deixando a estrada paralela à propriedade, a van dos seguranças atravessou os portões da mansão. O proprietário estava seguro novamente, e ele estava bem distante agora. Era um bom contrato, o melhor e mais bem pago que ele já havia firmado. Mas também o mais complicado. Agora, bastava aguardar a ligação de seu contador, para prosseguir o plano. Enquanto isso, ele precisava conferir como estavam as coisas no trabalho.

 

Algumas horas se passaram. A farmácia ainda estava iluminada. Era o dia do plantão. E a semana estava movimentada. Ele aguardava em seu escritório, um pequeno quadrado nos fundos do prédio, repassando os lucros dos negócios, de todos eles na verdade. O lugar era pequeno, mas relativamente acolhedor. Prateleiras brancas se espalhavam por cerca de oito ou nove metros, até as paredes brancas do prédio. Aliás, quase tudo ali era branco: o balcão, os aventais, as prateleiras e até a caixa registradora.

―Aquele senhor da manhã voltou. ―disse uma garota loira, de uns trinta anos, entreabrindo a porta do escritório.

―Aquele que não tem receita? ―perguntou ele.

―Só a cópia. Ele disse que perdeu a receita.

―Nada feito. Precisamos cumprir a lei. Custe o que custar.

―Eu aviso para ele. ―respondeu a funcionária, e voltou ao balcão.

―Sempre seguimos a lei. ―repetiu ele, para si mesmo. Não queria admitir, mas estava preocupado. Ele havia ganhado muito dinheiro naquele ramo de negócios sem nunca se colocar em perigo, e agora estava quebrando suas próprias regras por um contrato muito bem pago. E não era apenas o dinheiro que o atraía. Não precisava daquele dinheiro, embora a quantia fosse formidável. Era o desafio que o empolgava. Havia muito tempo desde que sentira aquela apreensão pela última vez. De modo geral, ele estava sempre cinco ou seis passos à frente do perigo, e o real motivo de ter entrado naquele ramo de negócio havia se perdido quase uma década antes. Aquele trabalho reanimava seu espírito, de algum modo, representava algum desafio real. Ele precisava daquilo.

No balcão da farmácia, a garota dispensou o velho sem receita. Se o sujeito queria se drogar, precisava arranjar droga de verdade. Era mais divertido e, sobre certo aspecto, até mais saudável. Com a garota, mais três farmacêuticos atendiam quase quinze pessoas. Era um dia movimentado. Não a farmácia, e sim os outros negócios. Movimentado de verdade. Só naquele mesmo dia, três execuções. Ele só havia participado de uma delas. E ainda havia mais duas execuções, já encomendadas, esperando para o dia seguinte. Ele esticou as pernas, o máximo que a sala apertada permitia, e tentou relaxar, mas não teve tempo.

 

A pequena luz vermelha sob o balcão se acendeu duas vezes. Aquele era o sinal. Ele avisou à gerente que precisava sair, apanhou o casaco escuro, ligou o carro e partiu. Quase três quilômetros, até uma rua marginal da cidade, era o suficiente. Depois de verificar tudo em volta por alguns minutos, ele apanhou o fone do orelhão, ligou o pequeno aparelho que modificava sua voz e discou.

Do outro lado da linha, seu contador atendeu.

―Por aqui tudo certo. —afirmou o contador. —Já consegui os documentos. E como foi com o velho?

―O homem só queria conversar. —respondeu ele. ―Ele ofereceu três milhões.

―O quê?

―Três milhões. Ele já pagou metade. Mas vai ser um trabalho bastante difícil. Chame o Conor e o Eliéser. Mande-os ficar sóbrios. E sem drogas até o trabalho ser concluído.

―Os dois? Vai precisar dos dois?

―Sim. Estou prevendo algum sangue. E preciso desses documentos. Envie-os o quanto antes.

―Entendido. E… A respeito da comissão… Ela vai ser proporcional?

―Claro que sim. Como sempre. Somos todos um, meu amigo. Todos um.

―Obrigado, chefe! ―respondeu o contador, e desligou o telefone. ―Mas um de nós ganha bem mais que os outros. Por que será?

O contador se conteve e iniciou o trabalho. Só se atrevia a resmungar quando o telefone estava desligado. Afinal, o chefe era de arrepiar, fosse ele quem fosse. Contudo, tinha-se de admitir, o homem valorizava um trabalho bem feito.

 

Aquilo era apenas o início. Ele voltou à farmácia, fechou o caixa, dispensou os funcionários e voltou para casa. Não sem antes passar em sua caixa postal. Havia um envelope esperando por ele. Era o combinado. Já em casa, ele abriu o pacote. Dentro, algumas cópias dos documentos policiais sobre a morte da neta do magnata. Subornar policiais para obter aquelas informações era desnecessário, principalmente quando você podia subornar a secretária da delegacia, que ganhava realmente mal e estava disposta a qualquer coisa por uns trocados extras. Aliás, a mulher conhecia mais os casos do que os próprios investigadores, pelo menos em termos de burocracia. Depois de coletar informações sobre o velho e sobre todas as pessoas a sua volta, aquela seria certamente a última parte da investigação.

Ele estendeu os papeis e as fotografias da cena do crime sobre a mesa e separou os vídeos de segurança do hotel onde a garota foi assassinada para analisar o cenário como um todo. Detalhes… tudo estava nos detalhes. Tudo sempre estava nos detalhes. E ele era bom com detalhes. Em uma das imagens, era possível ver a garota morta, fotografada de cima. O corpo completamente nu, exceto pelo que havia sobrado da camiseta, estava marcado de hematomas. Não era apenas um simples estrangulamento. Embora as marcas no pescoço fossem visíveis, aquilo era um espancamento. O agressor tinha mãos grandes. Pobre coitada! Em outra imagem, uma visão lateral do corpo, com a janela aos fundos. As cortinas estavam abertas. Mais fotos, em detalhes, do quarto. Quase nenhuma bagunça, com exceção dos lençóis revirados. Não parecia uma luta. Um namorado? Havia um boato de que a garota gostava muito de homens casados, especialmente quando as esposas vinham de brinde. Mas aquilo não havia acontecido por conta de gostos sexuais. Alguém havia de fato perdido o controle. E era possível descartar qualquer vingança contra o avô. Aquilo não era uma execução, era fúria pura.

Ele repassou os vídeos de segurança. A garota aparecia no salão de entrada, depois no elevador, depois no corredor. Depois mais nada. Ninguém entrando ou saindo do quarto. Mas como? Ele revisou os vídeos. Nada. A garota não havia deixado sua casa e dirigido por oito quilômetros apenas para ficar sozinha em um quarto de hotel. Havia bastante espaço na mansão para isso. Ela estava certamente esperando alguém. E o assassino não havia apenas voado até o quarto. Claro que não. Não dava para escalar paredes daquele tamanho. A menos que…

Muito mais simples de explicar do que ele havia conjecturado a princípio. Aliás, simples demais. Os horários expostos nas imagens das câmeras de segurança batiam com os horários indicados pela polícia no relatório, escrito a partir de informações colhidas com os funcionários do hotel. Mas não apenas isso, eram surpreendentemente coincidentes, até nos minutos. Aquilo jamais aconteceria. Era uma simulação barata. O que provava isso era o horário que aparecia no relógio da torre de uma das igrejas do centro da cidade, que podia ser visualizado nas fotografias da cena do crime, através da janela aberta do quarto. Era apenas um pequeno detalhe, que só podia ser percebido graças a um dos espelhos do quarto, que havia capturado de relance a torre da igreja. Ele mesmo precisou de uma lupa para conseguir identificar o horário indicado nos ponteiros. Ninguém havia prestado atenção naquele relógio. Aquele relógio era famoso justamente por estar sempre correto, de modo que não raramente as pessoas que passavam pelo centro da cidade acertavam seus ponteiros por ele. E, a menos que a garota tenha morrido, sido fotografada, depois levantado, aparecido nas câmeras, para finalmente morrer definitivamente, nada daquilo fazia sentido. A polícia estava simplesmente mentindo. Mas por quê? E para enganar a quem? Provavelmente o avô. O velho jamais descobriria o assassino da neta, não com aquele complô. O homem mais rico do país, quem diria, realmente precisava dele. Mas as imagens ainda diziam muito pouco. Era preciso ir mais fundo, localizar os culpados. E para isso seria necessário pegar mais pesado e apanhar os enganadores, um a um se necessário. Começando pelo menor, para só então chegar aos maiores.

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O Rastro

 

Barulho. Todas as manhãs era aquele maldito inferno. Quando passava a noite em casa, descansado, ele não se importava, mas quando chegava em casa às quatro horas da manhã, depois de quase vinte horas de plantão (deveriam ser vinte e quatro, mas ele tinha uma boa relação com o chefe), aquele barulho era de enlouquecer. E não havia nada a ser feito. Sua esposa até tentava não despertá-lo, nos primeiros vinte minutos depois que se levantava, mas arrumar três crianças e um adolescente para a escola, preparar o café e se organizar para oito horas de trabalho como gerente de uma fábrica de costura, tudo ao mesmo tempo, era realmente uma tarefa difícil e bastante barulhenta. Portas batiam, gritos e reclamações ecoavam pela casa, e até o cachorro resolvia participar as vezes, com latidos e até uivos. A casa só voltava ao normal lá pelas oito da manhã, e ele acabava perdendo completamente o sono. E naquele dia, em especial, havia a janela. Por que raios sua esposa havia aberto aquela porcaria de veneziana, com um frio daqueles do lado de fora? Graças à brisa gelada, as cortinas balançavam e, embora o quarto não ficasse de todo claro, aquela meia luz dos infernos, nos olhos de alguém com tanto sono, era extremamente irritante. Ele acabou despertando de todo e se ajeitou sobre a cama, preparando seu espírito para que o corpo pudesse se erguer. Com um suspiro profundo, ele abriu os olhos.

 

O susto quase fez seu coração parar. Ele engoliu o grito. Havia alguém a seu lado, quase colado a ele, acomodado sobre a pequena poltrona ao lado da cama. Era um sujeito gigantesco, realmente enorme, com a cabeça inteira coberta por uma horrenda máscara de meia que deformava completamente seu rosto, este aparentemente já não muito atraente. O sujeito vestia uma sobreveste marrom escura que parecia bastante pesada e uma blusa grossa de lã. Ainda assim, os músculos saltavam aos olhos. O sujeito era incrivelmente forte. Uma cicatriz profunda cortava seu rosto até o queixo, e podia ser percebida mesmo debaixo daquela máscara estranha. A pistola que o sujeito mantinha apontada em sua direção tornava tudo ainda mais assustador. Não que o homem precisasse realmente dela. Não com todo aquele tamanho. O dono da casa congelou sobre o colchão. Não conseguia mais mover um único músculo.

―Bom dia, dorminhoco! ―disse o invasor, em um tom de voz bastante tranquilo.

―Meu Deus! ―resmungou o dono da casa, repentinamente pálido. Sua voz soou baixa e entrecortada. Temia alertar a família. Não que houvesse qualquer chance daquilo acontecer, não com aquela algazarra interminável dentro de casa.

―Sabe por que estou aqui? ―perguntou o invasor.

―Disseram que você poderia aparecer. Disseram para termos cuidado.

―E parece que você não foi muito cuidadoso.

Um dos filhos quase entrou no quarto.

―Agora não! ―berrou o pai, em desespero, fazendo o menino desistir de atravessar a porta.

 

―Peça para sua mãe!

―Muito obrigada! ―berrou a mulher, da cozinha. ―Eu sei que você está cansado… Eu sei… Mas não custava ajudar um pouco, porcaria!...

—Ah, que ingratidão! —grunhiu o invasor. —Você é um maldito policial, homem. Deveria se impor mais. Mulheres gostam de homens fortes. Gostam que batam nelas, se for preciso.

O dono da casa não conseguia acreditar naquela conversa. O invasor o observava com olhos frios.

―Por favor, não os mate! Por favor!

―Cabe a você, companheiro. Apenas a você. Por que mentiu sobre a hora em que chegou àquele hotel, no dia da morte da garota?

―Não menti! Fui o primeiro a chegar ao hotel.

―Isso é mentira. Não gosto de mentiras.

―Não é mentira, eu juro. Fiz o que me pediram e anotei tudo no relatório. Mas…

―Mas?…

―O corpo não estava lá quando cheguei. Um carro o carregou para o hotel, e alguns homens que não conheço o colocaram no quarto. Eram homens estranhos, algum tipo de segurança particular.

 

Não eram da polícia. A garota não foi morta lá.

―E onde ela foi morta.

―Eu não sei…

―Tudo bem, talvez precisemos chamar sua esposa para ensiná-la como tratar um homem… Querida! ―Berrou o invasor.

―Não faça isso! Não faça isso!

―Era só o que me faltava! ―grunhiu a esposa, de algum lugar perto da sala. ―Se quer alguma coisa, levante e pegue!

―Ah, isso não é jeito de falar com um homem… ―reclamou o invasor, ameaçando se levantar.

―Eu vou até lá...

―Não! ―chorou o dono da casa. ―Não faça isso! Não faça isso! Eu não sei! Eu juro que não sei!

 

Eles só me pediram para assinar o relatório. Só isso! Nem sei o que estava escrito lá. Eu juro!

―Tudo bem, eu acredito em você. Eles... Quem são eles?

―Meu supervisor na polícia. E… O delegado.

―O delegado? Você está inventando isso.

―Não, juro que não!… Juro que não!…

―Muito bem então. Você fez sua parte. Se estiver mentindo, vou voltar aqui e ter aquela conversa com sua mulher. Não minta para mim.

―Não menti... Não mentiria…

―Claro que não! Adeus, parceiro!

―Pode ter algo que eu possa fazer!

―Você já fez! Obrigado!

―Espere!… Espere!… Esper...

 

Ao longe, de uma das partes mais altas da cidade, ele acompanhava o movimento na rua distante. Um homem muito grande caminhava em direção a um orelhão, já bastante distante da casa da qual havia acabado de sair, com muita habilidade, por uma das janelas do segundo andar, sem que ninguém nem mesmo o percebesse. Minutos depois, uma mulher loira, ainda de pijama, deixou a casa aos gritos. Parecia desesperada. Alguns vizinhos a acudiram. Em minutos, um alvoroço dos infernos havia se formado do lado de fora da casa. Uma multidão assustada tentava socorrer a viúva em desespero.

O homem alto alcançou o orelhão no fim da rua, bastante distante da algazarra, e apenas esperou. O bom e velho Eliéser. Um dos assassinos mais profissionais de seu portfólio. O sujeito era frio como uma pedra, tranquilo nas situações mais estressantes, extremamente decidido em suas ações. Sempre sabia quando agir, como uma ave de rápida que jamais erra o bote. Mesmo quando muito bêbado ou drogado, o sujeito ainda conseguia se portar com absoluta normalidade, exceto por alguns hábitos estranhos que deixava escapar às vezes, como carregar as mãos ou as orelhas de suas vítimas e deixar sobre os corpos caixas de música muito bonitas que ele mesmo fabricava. Um hábito bastante estranho, mas tinha seu quê de humor, como fazer a polícia gastar meses tentando decifrar o que aquelas ações desconexas significavam, sem que elas de fato significassem nada. Com o tempo, ele acabou descobrindo que assassinos de aluguel eram geralmente tipos bastante esquisitos. E aquele, em especial, tinha outros hábitos estranhos, como passar os dias tricotando, quando não estava executando pessoas. Raios! O que valia, no fim, era a habilidade de fazer alguém parar de respirar, e ele não era um maldito psiquiatra para se preocupar com aquelas esquisitices.

Alguns segundos após seu subordinado chegar ao orelhão, do topo da cidade, ele discou, não sem antes ligar seu conversor de voz. O pistoleiro atendeu a ligação no terceiro toque, como combinado.

 

―E então? ―perguntou ele.

―O policial falou. E, chefe... Você não vai acreditar...

 

Aquilo era delicado demais para ser delegado a qualquer outro da equipe. Ele próprio tratou de dirigir para o centro da cidade o mais rápido que pode e parou seu carro no fim de uma rua larga e bem pavimentada, cravejada de prédios bastante altos. Com seu binóculo, ele acompanhou a movimentação de uma das salas do terceiro andar de um prédio alto. O delegado, por trás das persianas abertas, parecia bastante tranquilo, sentado sobre sua mesa de trabalho, paquerando a secretária como se não tivesse mais nada a fazer. Talvez realmente não tivesse. Funcionários públicos! O delegado ainda não sabia a respeito da morte do policial, era certo. Se soubesse, não estaria tão tranquilo. Ele havia chegado bem a tempo.

 

Uma viatura policial parou ao lado de seu carro, no acostamento. Aquela era uma rua bem protegida. Um policial fardado pediu que ele abaixasse o vidro, mas não parecia impressionado com ele, como se estivesse diante de um tarado inofensivo com um binóculo, ou algo do tipo.

―Bela lente! ―afirmou o policial. ―O que está olhando aí?

―Sou um grande admirador de pássaros, senhor guarda! Os lêmures anelados aparecem durante algumas semanas antes…

―Tudo bem… Tudo bem… ―grunhiu o policial, sem paciência. ―Volte para sua “observação”!

Por que alguém pararia para observar pássaros no meio da cidade, quando havia um bosque lindo a alguns quilômetros dali? Só pardais e pombos esquisitos disputavam as migalhas dos restaurantes, e nada mais. Obviamente não importava, e o policial não desejava de fato saber por que alguém como ele estava ali. Ele não parecia alguém perigoso, então não devia representar qualquer perigo. Simples assim. Tudo o que as pessoas mais desejavam, naquela cidade, era fugir dos problemas, evitá-los o quanto fosse necessário. Por isso mesmo, acabavam sempre se ocupando com coisas desnecessárias ou superficiais. Pouco importava o fato de ele ter mencionado um macaco feio que vivia do outro lado do mundo como se o bicho fosse um maldito pássaro: o policial não conhecia pássaros, não dava a mínima para os pássaros e provavelmente tinha raiva das pessoas que se importavam com eles. De onde havia saído aquele nome idiota, afinal? Claro: o documentário que ele havia assistido na noite anterior, para dar sono. O simples nome de um macaco feio era mais que o suficiente para afastar completamente o problema. A viatura se foi. O policial dirigiu por alguns metros, até dar de cara com um jovem de pescoço tatuado e gorro escuro. Com ferocidade, o policial e seu parceiro de ronda atacaram o novo suspeito e o obrigaram a parar, como se o sujeito visivelmente inofensivo fosse algum assassino perigoso. Qual razão o rapaz havia dado para aquilo? Nenhuma, além de caminhar pela parte errada da cidade.

―Deus, isso é fácil demais! ―sussurrou ele, para si mesmo. ―Fácil demais!

 

De volta ao delegado, no terceiro andar do prédio da delegacia de investigações especializadas, o que quer que aquele nome significasse, e tudo parecia exatamente igual, como se alguém tivesse apertado o botão e pausado o vídeo. A secretária sorria com gosto. O delegado era um homem bonito de quarenta anos, alto, visivelmente atlético, com um rosto liso bem barbeado e belas mechas morenas. A secretária parecia extremamente encantada com a conversa idiota. O sorriso cínico do delegado era de enojar, como o daqueles engomadinhos de sua velha faculdade que se achavam superiores simplesmente porque os pais mais ou menos ricos tinham dinheiro para alugar um apartamento minúsculo perto do campus, ao contrário dos colegas menos abastados que precisavam dividir beliches no dormitório. Contudo, algo ali parecia não fazer sentido: o delegado era pré-candidato à prefeitura da cidade, no mesmo partido do atual prefeito, e as pesquisas apontavam que venceria ainda no primeiro turno. Ele mesmo havia feito algumas doações generosas, já que ter um cretino incompetente como prefeito era bom para os negócios. O velho magnata, contudo, era o principal financiador da campanha do delegado. Por que, afinal, o sujeito trairia a pessoa que pagava suas contas? Por que arriscaria tudo, com o perigo de acabar atrás das grades, ou pior, dado o passado e a fortuna do avô da garota morta, apenas para esconder o culpado. Ao menos que o delega fosse ele próprio o culpado. A garota gostava de homens casados, e o delegado era casado. Mas constava que a neta do velho magnata tinha um ótimo gosto para homens e preferia os educados e inteligentes, o que definitivamente não parecia o caso daquele indivíduo prepotente e medíocre. Não, havia algo mais ali. E ele precisava aguardar para ter respostas.

 

Não precisou aguardar muito, é verdade. O telefone da sala tocou. O delgado o atendeu sorridente, mas segundos depois seu sorriso desbotou. Ele curvou o corpo e apertou os olhos com força, para enfrentar a tontura repentina. O telefone foi desligado. A secretária perguntou algo, aparentemente preocupada, mas foi expulsa da sala com ferocidade, assustada com a face desconhecida daquele homem encantador com quem convivia todos os dias. O delegado apanhou o fone e discou. Segundos depois, e ele passou a discutir avidamente com quem quer que estivesse do outro lado da linha. Aquilo durou um longo tempo, antes que o telefone fosse desligado. Minutos depois, o delegado apanhou uma das viaturas do estacionamento e partiu.

De longe, ele o acompanhava, tomando cuidado para não ser notado. Não que houvesse tal perigo, não com o carro de vovô que dirigia, a coisa mais enfadonha que os engenheiros mais enfadonhos da montadora mais enfadonha do país foram capazes de projetar. Não parecia o carro de um assassino, então não devia representar qualquer perigo. A viatura avançou por alguns quarteirões e estacionou em uma praça do centro. Ele seguiu caminho e deu a volta na praça, sem perder a viatura de vista, para não despertar suspeitas antes do tempo, só então estacionou o carro a alguns metros de distância. Um carro gigantesco, certamente blindado, estacionou minutos depois, e o delega embarcou. Havia seguranças ali, dois deles, e ele podia reconhecer, mesmo a distância, a logomarca daquela empresa irritante de segurança privada. Aquilo era estranho. A pessoa no carro certamente não era pobre. O velho tinha algum inimigo poderoso, talvez tão poderoso quanto ele? Talvez fosse o caso. O carro partiu, com o delegado no banco traseiro, acompanhado por quem quer que estivesse ali, e dois seguranças fortemente armados nos bancos da frente. Quando o sinal vermelho fechou, ele encostou seu sedã velho bem ao lado do SUV blindado. Os vidros estavam fechados, e não era possível enxergar nada dentro do carro. Seria preciso resolver aquele problema. Com uma expressão amigável, ele buzinou para chamar a atenção do motorista do carro blindado. O sujeito abriu o vidro, um tanto desconfiado, mas a desconfiança logo desapareceu quando o segurança deu uma boa olhada no carro horrível e no proprietário sem graça. Uma expressão de extrema indiferença, com alguma dose de irritação, agora marcava a face do segurança.

―Pois não? ―perguntou o sujeito.

―Desculpe amigo, —disse ele. —mas tem algo vazando no seu carro.

―É o ar-condicionado! ―respondeu o segurança, sem paciência. ―Ele pinga.

―Ah, está certo. O meu também tem ar-condicionado. Mas só para o verão, sabe? O modelo com ar quente estava mais caro, aí…

O segurança fechou o vidro, sem dar qualquer satisfação àquela conversa despropositada. Antes que o vidro fosse fechado de todo, porém, ele conseguiu dar uma boa olhada no banco traseiro do carro. O delegado parecia extremamente aflito. O homem sentado a seu lado tentava convencê-lo de que tudo estava bem. Por um momento, aliás, o homem olhou diretamente para ele, sentado atrás do volante de seu utilitário cor de vinho. Não houve qualquer receio, qualquer medo ou dúvida. Os olhos do homem o encararam e o atravessaram, como se ele não fosse ninguém, como se nem estivesse ali. Então o sinal abriu.

 

Por certa perspectiva, aquilo fazia bastante sentido. Guilherme Azevedo. O secretário do velho magnata, a pessoa em quem o homem mais confiava, estava envolvido na morte da garota. O hotel onde o corpo foi jogado pertencia ao avô. Os policiais foram comprados pelo dinheiro do avô. Mas era o secretário que controlava, na prática, boa parte da fortuna, se não toda ela. Ele tinha recursos. E estava usando todo aquele dinheiro contra o próprio dono. Quem diria? O sujeito se arrependeria por aquilo, de um jeito ou de outro.

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