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O  Traidor    

 

Aquilo seria mais difícil do que ele havia conjecturado a princípio. Ele podia entrar em contato com o velho, avisá-lo de que o assassino morava na mesma casa que ele, usava sua fortuna contra ele, alertá-lo sobre o fato de que parecia haver uma espécie de conspiração para esconder o crime. Óbvio que poderia. Poderia ficar com a parte adiantada do dinheiro, talvez até com o dinheiro todo, e o velho poderia resolver o problema sozinho, quem sabe até o agradecesse depois por tudo aquilo. Mas ele tinha uma reputação a zelar, um nome a manter. Não era pago para descobrir conspirações, era pago para executar pessoas. E uma pessoa precisava ser executada, o secretário do homem que o contratou. O serviço seria executado, dentro do prazo, de preferência. Era uma questão profissional, e uma questão de honra.

O problema era justamente “como?”. O secretário, que na verdade trabalhava como uma espécie de procurador, tinha acesso à fortuna do velho, possuía contatos (o fato de conseguir esconder o crime bem debaixo do nariz do patrão provava isso) e tinha a proteção da mesma empresa que fazia a segurança da mansão, o que tornava aquele trabalho bastante complicado. Não apenas isso, tornava aquele trabalho bastante perigoso. Ele precisava pensar direto, planejar cada passo que devia ser dado, ou a coisa toda poderia acabar da forma errada. Além disso, não bastava matar o sujeito. Era preciso garantir que a pessoa certa estava morrendo, e para isso ele precisava causar um bocado de dor, interrogar o secretário e fazê-lo falar. E não podia fazer tudo isso com o sujeito morto. Era preciso refletir.

O plano de segurança do secretário não era tão forte quanto o do velho, mas era bastante robusto. Dois seguranças nas viagens de carro, fora os seguranças que aguardavam nos locais por onde ele passava ( fossem empresas, escritórios ou hotéis), tudo isso tornava o trabalho bastante complicado. Não eram seguranças comuns, eram ex-militares técnicos, experientes e muito bem treinados. Não hesitariam em atirar em qualquer um que parecesse suspeito ou estivesse no lugar errado. Atirar de longe seria a melhor opção de execução. Ele tinha bons homens para aquilo. Eles poderiam aproveitar as brechas de segurança durante o desembarque, o que não acontecia no caso da segurança do velho magnata. Se fosse uma execução comum, seria fácil. Mas não era. Era um trabalho bastante específico.

Ele folheou novamente as pastas recebidas com as informações do velho e de todos que o cercavam. Havia brechas a serem exploradas, mas todas eram perigosas. Havia a boate gay, grande vício do secretário, que ele visitava ao menos duas vezes por semana e não deixaria de frequentar mesmo sabendo do contrato. Pegá-lo na boate seria arriscado. Havia o treino de squash, ainda mais arriscado. Além da boate e do esporte, havia as visitas à academia de ginástica, que poderiam abrir alguma brecha. Em todos aqueles casos, porém, os seguranças estariam presentes, e ele acabaria se colocando ou colocando seu pessoal em perigo de forma desnecessária. Alguém menos experiente pararia por aí e desistiria. Não ele. Os detalhes sempre o chamavam. Detalhes… Detalhes… Detalhes… Uma infinidade deles, em todas aquelas páginas. Mas… Sim! Havia mais uma brecha que ele poderia explorar, de forma inusitada, e aquela não precisava colocar ninguém em perigo. Ninguém além da vítima, é claro. O caminho seria um tanto tortuoso, ele ainda não sabia muito bem como explorá-lo, mas passava por um bom e velho “amigo”. Do lado de fora da janela, os raios avermelhados de sol perdiam sua intensidade. Ele apanhou o telefone e discou.

 

 

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O Amante

 

Não tinham sido dias bons. Na última semana, ele teve apenas dois clientes, o que não dava nem para os cigarros e a bebida. Nos últimos tempos, as coisas estavam tão ruins que ele precisou aceitar até mulheres. Quando começou com aquilo, ele jurou que jamais faria qualquer coisa com mulheres. Gordos, carecas e velhos, isso ele conseguia aguentar, mas mulheres… Era nojento demais. A última havia feito ele enfiar a cara em lugares que jamais imaginou que precisaria enfiar, ele viu coisas que jamais imaginou que precisaria ver, e o trauma foi bastante profundo. Ele gostava de homens, mesmo os não muito atraentes, e se sentia bem com eles. Que mal havia em ser pago por aquilo? Mas com mulheres a coisa mudava de figura, era necessário fazer algo que ele não havia nascido para fazer, algo que estava além de sua natureza, e ele se sentia mais sujo que uma privada cheia. Aquilo podia ser apenas um reflexo dos maus tempos, mas não era menos consolador. Ele chegou até mesmo a conjecturar se aquela escassez de clientes não se devia na verdade a sua idade. Afinal, vinte e seis anos não era o mesmo que dezoito, e muitos que gostavam de garotos novos o estavam simplesmente abandonando, como se ele fosse a porcaria de um preservativo usado, trocando-o por outros rapazes mais atraentes e mais jovens. Era a vida seguindo seu curso: ele havia ficado para trás, como um daqueles fósseis de dinossauros dos museus que só paravam de pé por serem sustentados por cabos de aço.

Mas a maré estava mudando, aparentemente. A noite anterior foi agitada, com um programa em uma formatura de um desses colégios de rapazes. Ele não foi pago por aquilo, mas a bebida foi de graça e todos os rapazes se comportaram muito bem. Todos eles. E foram sete deles. A festa valeu a pena. Na manhã seguinte, mal ele havia se levantado e já recebeu uma ligação. O primeiro programa rendeu bem. Ele ainda arranjou mais um cliente durante a manhã. Perto do final da tarde, veio a última ligação. Só para testar a sorte, daquela vez ele pediu o triplo do valor do programa, e o sujeito desconhecido aceitou de pronto, com uma condição, a absoluta discrição, o que ele obviamente não podia recusar. Como se aquilo fosse uma novidade. Homens casados eram sempre meio paranoicos. No fim, apesar de todos os empecilhos, aquele dia prometia render mais que uma semana inteira de trabalho. A sorte estava retornando. Ele tomou um banho, aspergiu seu melhor perfume, colocou sua peruca loira e enfiou os glúteos magros em seu short jeans mais apertado. Depois de tudo aquilo, ele ainda gastou algumas horas se observando no grande espelho da sala e se apalpando, cada mínimo detalhe de seu corpo e de seu rosto, cada curva, cada marca. Sim, a idade estava realmente chegando. O resultado ainda era muito bom, era preciso admitir, mas muito em breve a aposentadoria acabaria chegando, por bem ou por mal. Ele precisava aproveitar enquanto havia tempo. E precisava seguir o conselho de seu velho pai e de seu último amante sério: pensar no futuro e arranjar um emprego de verdade, um emprego que o completasse, que o tornasse melhor do que aquilo.

Haveria tempo para toda aquela digressão mais tarde. Agora ele precisava trabalhar, para não morrer de fome. A campainha do apartamento tocou. Era o único apartamento no terceiro andar daquele prédio velho e quase abandonado, mas ele gostava de morar ali. Naquele ramo de negócio, era necessário um tanto de anonimato e um bocado de espaço, e isso ele tinha de sobra naquele lugar. Além disso, o apartamento tinha a sua cara, limpo e extremamente aconchegante, apesar da vizinhança ruim. Objetos sensuais, para não usar outras palavras, se espalhavam por todos os cantos. E ele podia fumar ou simplesmente passear nu pela varanda quando bem entendesse. Não haveria aquele tipo de privacidade em outro lugar. Com um suspiro, ele abriu a porta, procurando não criar nenhuma expectativa, fosse positiva ou negativa, sobre seu próximo cliente. Aquele era seu ritual secreto, o ritual de quem não tinha outra opção a não ser fazer coisas nojentas com homens desconhecidos.

Seu sorriso se desmanchou. Não, o sujeito não era feio. Havia certo charme. Ele não era gordo, ou magro demais. Havia até mesmo algo em seu corpo que parecia indicar algum exercício, apesar da barriga saliente. Mas o charme era tênue demais. O sujeito era comum: meio calvo, um tanto baixo, a pele morena repleta de sulcos não muito profundos de velhos cravos. Os cabelos poderiam dar algum brilho ao dono se não fossem tão curtos. Os óculos redondos lhe davam uma aparência ainda mais comum, e a roupa que vestia transformaria qualquer um em um avozinho. Ele teria algumas dicas de moda para dar àquele sujeito se tivesse tempo e intimidade. Enfim, o resultado geral era meio desanimador. Não havia nada de repugnante naquele homem, era verdade, mas também nada de atraente. Era como ter de fazer sexo com o próprio pai. Simplesmente sem graça, e nada mais.

Ele se esforçou para abrir um sorriso e pediu para o cliente entrar. O sujeito parecia bastante apreensivo ao telefone, dado o número de perguntas que fez sobre o sigilo do serviço, a privacidade do apartamento e coisas do tipo, mas pessoalmente não apenas se mostrava uma pessoa bastante tranquila como trazia uma frieza estranha nos olhos e no modo de se portar. O sujeito se sentou, com certa elegância, em sua poltrona favorita, tomando posse não apenas no móvel mas do apartamento como um todo, e pareceu bastante relaxado com tudo aquilo. Era certamente bastante esquisito. O homem parecia estranho. Era um cliente como todos os outros, contudo, e merecia respeito.

―Quer uma bebidinha, querido? ―perguntou ele, enquanto servia uma boa dose para si mesmo.

―Não, obrigado. ―disse o cliente. ―Na verdade, eu trouxe algo para animar nossa noite.

O sujeito tirou do bolso um pequeno pacote de papel e o estendeu. Ele o apanhou e o abriu. Dentro, um punhado de pó branco e fino.

―Ah, que fofo! ―disse ele, bastante empolgado agora, enquanto afagava com carinho o rosto do cliente.

O sujeito não pareceu gostar da carícia. Não parecia necessariamente incomodado com o contato, mas também não parecia animado de qualquer maneira, como se estivesse ali a trabalho e não a prazer. Que se explodisse! Ele queria mesmo era o dinheiro do sujeito, e aquela maravilha que ele havia trazido consigo. Com certa pressa, até mesmo certa inquietação, ele despejou a substância branca sobre a mesa de centro, ajeitou três carreiras bastante robustas de pó e deu uma boa tragada em uma delas, quase até esgotá-la de todo. A coisa entrou queimando, fez o quarto todo girar. Meio segundo depois, seu corpo foi tomado por uma energia incrível, como se ele agora fosse capaz de levantar a estante sobre a cabeça e arremessá-la do outro lado do apartamento, e a excitação tomou proporções ainda maiores.

―Uau!… ―grunhiu ele, tentando controlar aquela agitação irresistível em suas veias. Uau!… Uau!… É das boas!… Das boas!…

Foi difícil se concentrar novamente no visitante, tamanha a excitação. O homem o observava com curiosidade e boa dose de ironia. E que sorriso cínico e debochado era aquele em seu rosto? A adrenalina da droga se esgotou mais rápido do que veio, e seu corpo foi sugado por uma espécie de túnel negro que se abriu sob seus pés. Não, certamente não havia nada sobre seus pés, com exceção da penumbra pesada e repentina que havia caído sobre o apartamento todo, mas seu corpo estava prestes a ser sugado por algo no chão. Seus joelhos começaram a tremer e vacilar, e ele desabou sobre o sofá. Por sorte, e por alguns centímetros, não caiu de cabeça no chão. Alguns tremores pequenos começaram a se espalhar por todo o seu corpo, um formigamento intenso tomou conta de seus membros, e ele agora podia sentir sua própria saliva escorrendo por seu rosto sem que pudesse fazer nada a respeito. Era uma sensação bastante desagradável. E estava apenas começando.

―O que é isso? ―ele ainda conseguiu perguntar, mas sua voz soou diferente, abafada e mal articulada. ―Isso não era cocaína!

―Na verdade, era sim. ―afirmou o homem estranho, que certamente não era um cliente. ―Eu apenas adicionei algumas coisinhas nela.

―Coisinhas?

―Dez miligramas de acepromazina, cinco de pinetonina, cinco de polaramine e cinco de um ingrediente secreto. Tudo dissolvido em cem miligramas de cocaína pura. A noradrenalina ajuda a… Deixa pra lá! O importante é o efeito...

―O que está acontecendo comigo?

―Você está dopado. Pode sentir quase tudo, pode até falar, com alguma dificuldade, mas seus membros estão perdendo os movimentos. Você vai conseguir movê-los com certa normalidade em algumas horas.

―Horas? Meu Deus! Por quê?

―Guilherme Azevedo… Ele era seu namorado, amante, ou sei lá o quê, segundo cochicham por aí as más-línguas. Vocês não se veem mais, se eu estiver certo, há uns dois anos. Mas ele gostava de você de verdade, não gostava?

―Estava apaixonado. Mas queria que eu parasse de fazer o que faço. Eu até cheguei a tentar, ele me arranjou um bom emprego, mas…

―Você é preguiçoso demais para trabalhar.

―Não era o trabalho que me irritava, era a necessidade de levantar cedo. Eu detestava…

―Segundo consta, seu ex-namorado gosta de boates e de festas, mas nunca mais se envolveu a sério com ninguém. Dizem que ele ainda fala em você o tempo todo. Mas estou curioso. E você? Você gostava dele, de verdade?

―Não, eu gostava da segurança que ele passava. Tão poderoso e tão decidido. Ele até é bonito, se cuida bastante, mas não tem aquela pegada que a gente quer em um homem de verdade. E ele não era muito animado. O sexo com ele era um saco, eu tinha de fazer tudo o que era bom e, só de imaginar passar o resto da minha vida sem poder fazer sexo com outra pessoa, eu quase entrei em depressão. Mas… Droga, porque estou dizendo essas coisas para você?

―O medicamento que você tomou. Isso é parte do efeito.

―Ah, agora faz sentido. Eu ainda não entendi: o que quer de mim?

―No momento, espero que você me conte tudo que quero saber a respeito de seu namorado. Cada detalhe…

―Depois…

―Depois quero que me ajude a atraí-lo para cá. Preciso ter uma conversa com ele, como estou tendo com você agora.

―Você vai matá-lo?

―Provavelmente.

―Ele me ajudou. Ele me amava. Por que eu faria algo assim? Por que o trairia?

A simpatia desapareceu da face do homem estranho. O sujeito se aproximou perigosamente dele e o encarou com olhos frios.

―Por que você não terá escolha. ―respondeu. E parecia saber o que dizia.

O estranho abriu a pequena maleta que havia trazido consigo e estendeu cinco pequenas seringas sobre a mesa. Todas estavam prontas para a aplicação, com as soluções preparadas e suas respectivas agulhas. O sujeito então apanhou uma sexta seringa e aplicou o líquido em seu braço sem que ele pudesse reagir. A coisa se espalhou por suas veias como se fosse feita de brasas e gelo, uma sensação incômoda e ao mesmo tempo bastante dolorosa. Ele começou a chorar, mas não conseguia esboçar nenhuma reação. Nem seus lábios se moviam mais.

―Acabei de aplicar em você uma solução bastante tóxica. ―afirmou o sujeito. ―Uma hemorragia severa vai começar a se espalhar por todos os seus órgãos em cerca de nove horas. Em menos de um dia, você estará morto. Se procurar o hospital, eles terão de fazer exames, para descobrir o que apliquei. Os resultados levam de trinta e duas a setenta e quatro horas para ficarem prontos. Você morrerá, de forma muito dolorosa, muito antes disso. E eu estou falando de realmente muita dor. Uma dessas cinco agulhas contém o antídoto. Ele vai neutralizar a substância que apliquei em algumas horas, com apenas alguns pequenos efeitos colaterais. As outras quatro agulhas contêm tipos diferentes de veneno, e todos eles vão matar você de forma muito rápida. O líquido em todas as agulhas é transparente e sem cheiro. Não há forma de saber o que há em cada uma, a não ser por uma análise bem detalhada, ou pela etiqueta colorida que coloquei em cada uma delas. Uma dessas cores vai salvar você. As outras vão matá-lo. Só eu sei qual a cor correta.

O estranho fez uma pausa e se recostou no sofá.

―Agora vou dizer o que você vai fazer. Está me ouvindo?

―Sim. ―ele disse. Ou ao menos tentou dizer.

―Seu antigo namorado vai estar naquela boate onde vocês se conheceram hoje à noite, em cerca de quatro horas. Quando o efeito do sedativo começar a passar, você vai tomar um belo banho, vestir sua roupa mais provocante e vai dar um jeito de trazer seu antigo namorado para cá. Depois, no tempo que achar mais conveniente, mas não esqueça que você tem pressa, você vai colocar isso na bebida dele ―o estranho colocou um pequeno saquinho com uma substância amarelada sobre a mesa. ―Tem de ser algo líquido, de preferência algo com álcool. Por fim, quando seu antigo namorado estiver apagado, você vai abrir a janela. Será seu sinal.

―Como vou saber? ―ele tentou perguntar, mas as palavras não saíram da forma esperada. Aliás, não saíram de forma alguma. Tudo o que saiu de sua boca foi um conjunto estranho e mastigado de sons desarticulados e sem sentido. Ainda assim, o sujeito parecia tê-lo entendido, provavelmente porque já esperava por aquela pergunta.

―Não há garantia alguma, para você. Sua morte não me interessa. É seu namorado que eu quero. Se consegui-lo, tenho tudo o que preciso, e você estará livre. Se não conseguir, terei de tentar de outra forma, e você vai morrer. Você pode confiar em mim e tentar sobreviver, ou pode não confiar e morrer. São suas escolhas. Decida! E, lembre-se sempre: nove horas!

Com muita elegância, o sujeito se ergueu do sofá, ajeitou sua roupa, então simplesmente partiu. Ele ficou ali, sozinho. Tentou se erguer, tentou mover o braço, tentou gritar. Tudo em vão. Nem piscar era mais possível. Aquele homem realmente entendia de drogas...

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Um Bom Amigo

 

O dia já terminava. Ele havia acabado de finalizar a reunião com o último grupo de investidores. Aqueles perderiam mais dinheiro do que ganhariam, por alguns anos, mas no final seriam homens mais ricos do que já eram. E seu chefe, esse sim, sairia do negócio mais rico do nunca. Quanto a ele, estava mais orgulhoso de si do que jamais estivera e precisava reconhecer que era realmente muito bom com tudo aquilo, sabia transformar produtos em dinheiro, ideias em dinheiro, opiniões em dinheiro, dinheiro em dinheiro. Seu salário de nove dígitos, mais todas as regalias que recebia, era apenas parte de seu pagamento. Ele gostava mesmo era do reconhecimento. Todos as pessoas pelas quais passava, nos corredores, nas salas de reunião, até mesmo na bela praça pública onde os executivos costumavam se sentar no final da tarde, absolutamente todos o conheciam, sabiam quem ele era, reconheciam a qualidade de seu trabalho. Muitos sonhavam em trabalhar com ele, aprender com ele. Ele era simplesmente o melhor. E aquilo era mais do que ele jamais havia sonhado.

O patrão, era verdade, fora inigualável. Antes da doença, quando ainda estava na ativa, era o executivo mais importante do país, um dos mais importantes do mundo, simplesmente o homem mais poderoso e mais inteligente que ele já havia conhecido, um dos homens mais inteligentes e poderosos sobre a face da terra. E não se contentava em ser bom nos negócios: era um homem culto, educado, destemido, extremamente bondoso com quem amava. Ele o admirava, queria ser como ele, pensar como ele.

Seu primeiro emprego na companhia, no entanto, foi modesto. Alguém lhe entregou o controle de um pequeno fundo de investimento com alguns milhões. Com muita pressão, algum dinheiro por fora para conseguir informações valiosas e um bocado de persistência, ele conseguiu fechar um ótimo negócio. Alguns milhões se transformaram em algumas dezenas de milhões. Foi o suficiente para chamar a atenção do patrão, embora ele ainda não soubesse disso. Na sequência, veio outro emprego, de maior importância. Um bom grupo de estudos em aplicações, do qual ele logo se tornou o líder. Ele gostava daquelas pessoas, eram inteligentes, educadas, extremamente ágeis no que faziam. Curiosamente, ele acabou se afeiçoando imensamente pelo zelador do prédio no qual funcionava a agência, que aparecia por ali sempre no final do dia para deixar as salas prontas para o dia seguinte. Era um sujeito de sessenta e poucos anos, de cabelos grisalhos e com um belo gosto para arte e para música. Da primeira vez que se deparou com aquele homem naquele prédio, acabou trombado com ele sem querer em um dos corredores e derrubou seu carrinho de limpeza. Sentiu pena do homem e um bocado de culpa por ser tão apressado. Só conseguiu abandonar o sujeito depois de pedir mil desculpas e ajudá-lo a se levantar. Com o tempo, os dois fizeram uma boa amizade. Durante meses, mesmo depois de longas horas de trabalho, ele sempre aguardava pelo homem com paciência, apenas para poderem conversar sobre coisas agradáveis. No fim, aquele emprego havia lhe rendido um cargo melhor, graças aos resultados positivos das aplicações, e um bom amigo.

 

Meses depois, ele acabou convidado para um jantar na mansão do patrão. Estava ansioso para conhecer o chefe, e queria muito agradar o homem, embora não soubesse muito bem como fazê-lo. Quem diria que chegaria àquilo. Seus pais estariam orgulhosos dele se ainda estivessem vivos. A enorme mesa de jantar foi posta e os empregados se retiraram para garantir a privacidade. Minutos depois, o anfitrião desceu para o jantar, enfiado em um elegante roupão de seda. Não parecia muito disposto a formalidades. Estava em casa, afinal. E que surpresa quando percebeu quem era o homem.

—Você! —foi tudo o que conseguiu exclamar. Era o velho zelador do prédio onde trabalhava.

O jantar foi agradável. O patrão era realmente o zelador com quem passava suas noites conversando, nem mais nem menos. Aquela era realmente sua personalidade. Um homem certamente muito rico, mas honesto e bastante simples. Eles conversaram sobre coisas banais, na maioria. Quando tentou falar sobre os negócios, o patrão o interrompeu e o conduziu até uma bela sala de estar, repleta de obras de arte que pareciam bastante caras. Pinturas impressionistas, na maioria, mas também alguns quadros barrocos. O patrão o conduziu até uma das paredes e apontou para uma pequena aquarela que misturava imagens extremamente coloridas e grafite. Nela, um homem elegante repousava sobre uma confortável cadeira de madeira, enquanto a sua volta imagens flutuavam no ar.

—Esse é meu favorito. Está longe de ser o mais caro aqui. Mas é sem dúvida o melhor.

—“Um Sonho de Dickens”! —exclamou o visitante, entre dois longos suspiros. —É incrível!... Ele é...?

—Original? —perguntou o patrão. —As enciclopédias e os manuais de arte dirão que o original está na velha casa vermelha de Dickens, onde hoje funciona um museu. Mas eu posso garantir que isso não é verdade.

Aquilo era certamente fantástico. Era poder demais, beleza demais.

—Oliver Twist ou David Copperfield? —perguntou o patrão.

—Uma história de amor, senhor. —respondeu ele. —É certamente o melhor.

O patrão esboçou um sorriso sincero e extremante cansado.

—Você tem um ótimo gosto, Guilherme. Eu tinha até me esquecido desse. É um livro pequeno.

—Como uma pérola. —ele respondeu.

—Como uma pérola. —repetiu o chefe, antes de suspirar e permanecer em silêncio por um longo tempo. Ele prosseguiu —Estou exausto, Guilherme. Tenho uma doença.

—Sinto muito, senhor! —lamentou ele, com sinceridade. —É grave?

—Sim, é grave, mas os médicos garantiram que podem me fazer viver por um longo tempo. A questão é: estou cansado de não confiar em ninguém, para nada, e ter de fazer tudo sozinho. Preciso de alguém para me ajudar.

—E o que posso fazer para ajudá-lo, senhor?

—Tudo. Quero sair mais, ir a jantares que nunca fui, dançar, talvez encontrar uma namorada. Minha esposa faleceu há mais de quinze anos. Estou sozinho há muito tempo. Não podia fazer nada disso, porque nunca confiei em ninguém a quem pudesse entregar minha fortuna e, especialmente, o futuro de minha família. Mas confio em você. Confiei em você no momento em que o vi naquele prédio.

—Eu fico grato, senhor!

—Então, você aceita?

 

—Ainda não entendi o quê, senhor

 

—Fazer parte dessa família, dessa casa? E administrar tudo o que tenho, para que eu possa descansar?

 

Ele observou a face do patrão por um longo tempo. Era um homem bonito. O cansaço da idade e da doença não afetavam sua força ou seu belo rosto. Alguns diriam que ele era um homem comum. Ele diria que o patrão era um pedaço de mau caminho.

—Claro que sim, senhor.

 

—Muito bem então. Fico muito feliz. Suas roupas novas e suas coisas já estão no seu novo quarto. O quarto fica de frente para o jardim lateral. É minha vista favorita da casa. Você se muda amanhã!

E foi assim que começou.

 

Nos oito anos que se seguiram, ele fez parte daquela família. Era ele quem cuidava da mansão, até mesmo dos detalhes do jardim, quem contratava e pagava os seguranças, os funcionários. Também era ele quem conduzia os negócios. O patrão precisou ensiná-lo, é claro, mas ele era bom com números e apenas precisava administrar e investir os lucros, já que cada rede de negócios tinha seu próprio diretor. Era cansativo, certamente, mas não era uma atividade impossível de ser realizada. Fora todas essas responsabilidades, ele também precisava instruir os empregados da mansão, determinar o papel de cada um, demitir os funcionários de quem o patrão não gostava e promover os empregados de quem ele gostava. E o homem sabia ser generoso. Também era ele quem visitava o filho mais velho do patrão ao menos três vezes na semana, para conversar e descobrir sempre do que ele mais precisava. Era solitário naquele manicômio, por mais belo que fosse o lugar, e ele precisava se esforçar para levar alguma alegria àquela figura desolada. Era como lidar com um menino de seis anos de idade em um corpo volumoso de quarenta anos. A prática fez dele melhor em cuidar das pessoas, tornou-o uma pessoa melhor.

A vida da família era simples. Além do filho mais velho, que só aparecia na mansão algumas vezes no ano, para algumas festividades, só havia mais dois moradores na casa: o avô e a neta. A garota, Ester, era uma verdadeira princesa: bonita, elegante e uma criatura extremamente bondosa. Gastara parte da fortuna que o pai lhe deixara (embora ainda houvesse muito a gastar) para criar uma agência de advocacia de extrema qualidade focada em defender presos sem julgamento ou que pareciam inocentes. Conseguira soltar muitas pessoas pobres. Seu empreendimento contava ainda com uma ONG de assistência social para auxiliar as pessoas libertadas. Um trabalho extremamente digno. Sua atividade não era exatamente muito bem vista pela promotoria do estado, já que acabava revelando muitas falhas do sistema, mas todos a respeitavam, por razões bastante óbvias. E é claro que os bons resultados de seu trabalho se deviam principalmente à fortuna do avô, bastaria apontar quem deveria ser libertado, mas suas defesas no tribunal eram impressionantes de qualquer modo. Assisti-las era um espetáculo aos olhos. Não bastava ser linda, rica e inteligente, a garota era poderosa, quando o queria ser.

E o círculo de amizades da garota... O que era aquilo? Acadêmicos, cientistas, atores famosos, artistas e intelectuais de todos os tipos. Ele mesmo adorava sair na companhia da neta do patrão. A garota não era necessariamente uma intelectual, não estava disposta e despender todo o trabalho que tal atividade exigiria de um mortal, mas gostava da companhia de pessoas inteligentes e elegantes. E como os jantares e as conversas eram agradáveis! A garota saía quase sempre com casais, dois ou três, às vezes mais, enquanto ela mesma aparecia quase sempre sozinha ou com amigos gays, como ele. Estava sempre solteira, aparentemente. Ele chegou a desconfiar que aquilo ocorria por influência do avô, mas percebeu que estava errado. O que o patrão mais queria era um bisneto. Algo lhe dizia, porém, que isso jamais ocorreria. 

 A garota logo se transformou em uma grande amiga. Ela foi a única pessoa, dentro de seu círculo de amizade, a ficar sabendo sobre seus gostos sexuais. Foi também a única a ficar sabendo do sentimento que ele nutria pelo patrão, uma mistura delicada mas bastante violenta de atração sexual e paixão edipiana. A garota sempre lhe deixava um sorriso alegre quando via os dois juntos, conversando. Foi com ela, também, que ele desabafou, quando terminou seu único namoro sério, com o único jovem que o atraíra realmente. Ela o abraçou por horas. O corpo da garota era firme, jovem, e extremamente macio, e ele teria certamente sucumbido ao desejo se gostasse de mulheres. Ela também confessou coisas. Não saída tanto com aqueles casais apenas por gostar da conversa. Estupefato, ele acabou descobrindo que a garota conhecia a fundo o corpo dos homens e das mulheres de cada um dos casais com quem saía. As orgias eram muitas vezes intensas e duravam vários e vários dias. E havia realmente muitos casais em seu cardápio. Com alguns, os programas a três, às vezes a cinco, eram constantes. Relacionamentos sérios, porém, quase não existiam. Seu único namorado até então fora um milionário do ramo do turismo, por quem ela nutrira uma paixão profunda, mas a quem acabou abandonando por ser o sujeito um grande adversário do avô nos negócios. Quando soube do fato, o próprio avô logo tratou de gastar alguns milhões para se tornar sócio do homem, transformando um adversário em amigo, a fim de abrir caminho para a neta. O interesse da garota pelo homem, porém, se esvaiu quase instantaneamente. Foi então que ele percebeu: a garota não gostava de verdade de ninguém, gostava do desafio, da emoção, que logo se esgotava. Era imensamente superficial nos relacionamentos, e gostava de coisas passageiras, para não se prender a ninguém. Uma criatura como aquelas obviamente teria algum defeito, e ela tinha, era frívola nos relacionamentos amorosos. Nas amizades, ao contrário, era imensamente aguerrida e honesta. E ele havia se tornado um grande amigo. A morte da garota o atingiu como um golpe de espada. Não havia um segundo em que não se sentisse culpado por tudo aquilo. De certa forma, realmente era.

Nos anos que se seguiram a sua entrada na casa, o patrão o levou a vários eventos. Ele ficou conhecendo boa parte dos sócios e dos grandes clientes do homem. As festas eram quase sempre cerimônias de negócio: frias, apesar de esplêndidas. Esse tipo de atividade também acabaria transferida completamente para ele, ao passo que o patrão começou a se dedicar a eventos mais divertidos. Isso até a doença derrubá-lo realmente, alguns anos depois. Depois daquilo, o homem quase não saía de casa. Ficava em algum de seus escritórios, ou sentado durante horas a fio no jardim lateral da propriedade, observando as flores e os pássaros, visivelmente muito abatido. Não raramente, eles passavam suas noites de sábado juntos, conversando sobre literatura, filmes antigos e arte, apesar da insistência do homem para ele sair e procurar uma namorada. Se o patrão soubesse!... Ele teria morrido ao lado daquele homem, de bom grado. Apenas adormecido ao lado dele... Os dois juntos, para sempre. Seria como um sonho!

As coisas estavam bem, tranquilas, mesmo com a doença do patrão, até o assassinato da garota. A partir daquele momento, tudo se transformou. O patrão se tornou uma criatura triste, tensa, pesada, apenas uma caricatura de seu velho eu. Ele queria o velho homem de volta, mas não o encontrou mais. Além de tudo, o patrão parecia desconfiar de todos, até mesmo dele, e passou até mesmo a contratar agências particulares de auditoria para conferir sua fortuna, como se ele fosse um maldito rato. Aquilo o magoou imensamente, mas ele aceitou sem hesitação, até por não haver realmente nada a esconder. Alguns meses depois da morte da garota, o patrão o chamou em seu escritório predileto para uma conversa e se desculpou pela rispidez das semanas anteriores. Acabou chorando. Ele teve pena do homem, sentiu vontade abraçá-lo, de afagar seu cabelo já bastante ralo pelos anos e pela doença, mas se conteve e apenas disse que sentia muito.

—Eu perdi tudo! —disse o homem.

—Isso não é verdade! —respondeu ele. —O senhor tem amigos.... Amigos de verdade... E nós vamos encontrar quem fez aquilo. Vamos colocar o culpado atrás das grades.

 Uma mentira... Apenas isso. Uma mentira honesta, que preservaria aquela amizade, mas ainda assim uma mentira. O patrão —como estava envelhecido! —apenas pediu para que ele não se preocupasse, pois logo tudo estaria acabado. Apenas isso, então se calou. A doença fechou seus olhos cansados, como sempre fazia quando ficava de pé ou sentado por muito tempo. Ele cobriu o homem com carinho. Não sabia o que aquelas palavras significavam, e não se importava, contando que o patrão melhorasse, que ao menos parte daquela tristeza fosse embora.

Fazia já duas semanas desde aquela última conversa, e o patrão não o chamou mais para conversar. Todas as conversas importantes do homem agora eram com seu motorista, a segunda pessoa em quem ele mais confiava. O motorista também morreria pelo patrão, ele tinha certeza. Era outro velho amigo da família, e gostava realmente do homem, mais até do que o patrão poderia imaginar. Após a morte da garota, meses antes, ele perdeu a conta de quantas vezes viu o motorista chorando pelos cantos. Ester era apenas uma menininha de dois anos quando o motorista se mudou para aquela casa, e ele conviveu com aquela criatura doce por um longo tempo, afeiçoou-se a ela de forma poderosa. No fim, não contente em esconder a verdade do avô, ele também precisou escondê-la do motorista, e não havia mais ninguém com quem ele pudesse desabafar, explicar porque teve de fazer o que fez. Os segredos dos dois, o patrão e o motorista, porém, já começavam a perturbá-lo. Algo de importante estava prestes a acontecer, ele tinha certeza.

—O que está acontecendo? —perguntou ele, ao motorista. —O que estão fazendo naquele escritório?

—Preparando algo, um contrato.

—Que contrato? Todos os contratos passam por mim...

—Não esse. Sinto muito.

—Do que você está falando?

—Prometi a ele que não contaria. Ele acha que você não iria entender. Eu acho que sim, que você iria compreender por que estamos fazendo isso, mas ele acha que não.

—Entender o quê?

—Sinto muito. Não posso dizer mais nada.

O motorista se foi, com um envelope muito grande nas mãos. E passaram-se mais oito dias, mais de uma semana, desde aquele momento. A situação na mansão, com toda aquela falta de confiança, ficou insustentável, e ele passou a retornar para casa apenas tarde da noite, às vezes nem isso.

 

Depois da reunião com os acionistas, ele se dirigiu até o antigo escritório da neta do patrão. Era ele quem tocava os negócios agora, garantindo que o trabalho que a garota fazia não se perdesse. Seu escritório virou oficialmente uma ONG, e recebeu o nome de sua fundadora. Ela merecia aquilo. Novos advogados foram contratados. Não eram apenas alguns dos melhores, eram pessoas que realmente acreditavam na causa, e ele fez questão de selecioná-los a dedo, depois de uma análise detalhada dos currículos e da leitura de suas teses e de seus livros. Ester teria adorado a companhia daquelas pessoas. Ele fez questão de não colocar um só centavo do avô na instituição, apenas o dinheiro que havia sobrado da herança da garota e alguns punhados de doações. Ele havia colocado até mesmo suas próprias economias naquilo. Era uma forma de diminuir a culpa que sentia, apenas isso, mas ajudava a erguer a cabeça. Na antiga sala da neta do patrão, ele organizou alguns papeis, fechou as contas do mês e acariciou o rosto da garota em uma das fotografias, antes de partir. Estava feito. Quanta saudade ela deixava!

 

A semana havia finalmente terminado. Era sábado, já havia anoitecido, e ele resolveu visitar o único lugar que podia relaxá-lo: sua boate preferida.  A música parecia alta demais naquela noite, mas ele sabia que era apenas a tensão em sua mente reagindo ao medo. Havia um assassino atrás dele, um dos piores. Não, o sujeito jamais o descobriria. Levaria meses se tentasse, dado toda a organização que havia sido montada em torno daquele caso. O delegado havia fugido, para longe, com muito dinheiro, e eles dariam um jeito de abafar o caso. Um policial estava morto por causa de seus pecados, de qualquer maneira, e aquilo só fazia aumentar sua culpa. Ele precisava seguir em frente, esquecer de tudo aquilo. Se fosse morrer, certamente não seria naquela noite. Precisava aproveitar enquanto tinha tempo. Naquela convicção consoladora, sorveu seu conhaque com gosto e engoliu o comprimido que havia arranjado com o barman.

Em poucos minutos, já estava melhor e mais solto. A boate já estava bastante movimentada quando ele chegou, mas em poucas horas não havia um centímetro cúbico que não estivesse ocupado. Aquilo era bom, ver todas aquelas pessoas dançando e agitando seus corpos. Melhor ainda o fato de serem quase todos homens jovens e bonitos. O dançarino no palco, que exibia o corpo firme e o pênis enorme completamente ereto, sorriu para ele. Ele devolveu o sorriso. Gostava daquele poder, precisava admitir, gostava de ser admirado, ainda que todos ali estivessem interessados na fortuna que administrava mais que nele próprio. Era mérito dele, de qualquer maneira. O dançarino se aproximou e se exibiu para ele. Ele até tocou o corpo do rapaz e deixou uma gorjeta generosa, mas não estava realmente interessado. Estava triste, apenas isso. Triste demais. Só havia uma pessoa que ele gostaria realmente de ver naquele momento, e não falava com ela há alguns anos.

A noite ainda seguiu triste por algumas horas, mas o comprimido já fazia seu corpo sentir calores e sensações que não sentia há algum tempo. Ele precisava relaxar. Visitava aquela boate todos os fins de semana, mas naquele dia em especial ele conseguiu realmente sentir algo, algo que não sentia há tempos. Precisava extravasar, arranjar um corpo para colocar junto ao seu. O dançarino? Era bom, mas podia melhorar. Mas quem? Foi quando ele recebeu o bilhete.

—Com licença, —disse o barman. —Uma jovem lhe entregou isso.

Não, não era uma jovem. Mas ele conhecia aquela letra. O bilhete dizia apenas:

 

“Sinto muito por sua amiga! Sei como gostava dela! Não falei com você antes porque tive medo. Estou com saudade de você! Se quiser, sabe onde me encontrar... Ps: estou segurando aquele verde, aquele que você adora!”

 

O sangue em seu rosto ferveu. Ao menos algo de bom, no meio de todo aquele caos. Era exatamente quem ele queria, esperando por ele. Outro dançarino sorriu para chamar sua atenção, mas aquele ficou no vácuo. Ele partiu com muita pressa, embarcou no carro e orientou o motorista. Os seguranças entraram logo depois. Em menos de meia hora, o carro já estacionava diante do prédio. Fazia mais de dois anos que não colocava os pés naquele lugar, mas já era hora de resgatar os velhos laços.

—Vocês esperam aqui! —disse ele, aos seguranças, já no saguão do prédio velho.

—Senhor, não é uma boa ideia. Esse prédio fica fora da rota, e o pessoal de apoio está esperando o senhor na mansão, não sabem que está aqui. Esse lugar é bastante isolado.

—Preciso de privacidade por alguns instantes! —retrucou ele, sem paciência, e começou a subir as escadas. —Vocês podem esperar aqui embaixo!

—Tudo bem, senhor! Apenas tome cuidado!

 

Não, o segurança não acreditava que algo de errado pudesse de fato acontecer. Só estava cansado. Apesar do aviso sobre o contrato que o velho havia assinado, a empresa não cogitou aumentar a segurança, até por não imaginarem que alguém da mansão estivesse realmente em perigo. Era apenas mais um dia comum para eles, e quase todos eram bastante monótonos, um bando de babás tomando conta de uma criança chata e crescida com diagnóstico de hiperatividade. Apesar disso, era preciso manter o profissionalismo. Era por isso que recebiam dez vezes mais que os outros seguranças do mercado, porque eram bons e portavam armas melhores. O segurança lutou para segurar o bocejo. Já estavam no final do expediente e pelo jeito teriam de esperar um longo tempo.

 

Ele chegou ao quarto e tocou a campainha. O ex-amante abriu a porta. Estava fantástico, melhor do que ele podia recordar, com o corpo esguio e firme enfiado em um vestido vermelho curto e apertado e aquela peruca ruiva que ele sempre adorara. Havia caprichado na maquiagem e estava lindo, apesar de parecer um tanto chapado. Ele também estava, e não podia reclamar. Não depois de tanto tempo.

Em segundos, os corpos já se entrelaçavam, depois os lábios, depois as línguas. Eles nem se lembraram de fechar a porta. Ele levantou o vestido e agarrou os glúteos macios do ex-amante. O ex-amante estava um tanto tenso, talvez pela apreensão do reencontro, mas pareceu gostar. Sempre parecia gostar, e era bom nisso. O dono do apartamento despiu completamente o vestido, ficando só de calcinha, depois abriu seu zíper, puxou seu pênis com carinho e o massageou com uma das mãos, de forma delicada. Aquilo era muito bom, e ele apenas aproveitou o momento o quanto pode, até não resistir mais, então virou o amante e o ajeitou sobre o sofá.

Ele era um grande homem de negócios, bonito, charmoso, elegante, carinhoso, mas não era bom no sexo. Ele havia até esquecido do porquê o havia abandonado, mas recordou de tudo muito rapidamente. O amante sabia causar dor, um bocado dela, mas nenhum prazer, era afoito e pouco delicado. Com as costas esticadas e o quadril apoiado sobre o braço do sofá, as nádegas completamente erguidas e as partes íntimas expostas, ele pode sentir a coisa dura penetrando seu corpo. O negócio o rasgou por dentro, causou um grande estrago, mas aquele era o menor dos problemas agora. Cinco ou seis estocadas poderosas, e ele já podia sentir o amante se aliviando, e se aliviando ainda mais, e ainda mais. No fim, o amante apenas caiu pesadamente sobre a poltrona, ainda com o pênis para fora da calça. Ficava elegante, mesmo daquele jeito. E era realmente muito bonito. Quase um príncipe. Por um momento, ele até conseguiu esquecer do veneno que corria em suas veias, enquanto recordava os bons momentos.

—É bom rever você? —disse o ex-namorado, com carinho.

—Rever? —perguntou ele.

Os dois sorriram.

—Somos bons nisso, não somos?

—Somos sim. —ele mentiu.

—Não sabe o quanto gosto de você.

—Não o suficiente para assumir.

—Não posso, você sabe. Não na minha condição.

—Sim, eu sei. E não me importo mais.

 

O formigamento do veneno recomeçou, e ele parou de sentir os dedos de uma das mãos. Foi o suficiente para que o desespero voltasse a percorrer seu corpo, da ponta dos pés aos fios do cabelo. Ele se controlou.

—Acho que precisamos apenas colocar a conversa em dia. E de uma bebida.

—Concordo.

Ele se ergueu e começou a preparar duas doses. O ex-amante o observava com olhos gulosos. Em breve, haveria a segunda rodada, e aquela seria ainda mais rápida que a primeira. O ex-amante caminhou até ele e o envolveu com braços fortes. Era bom com aquilo, bem mais que com o sexo. Ele chegou a sentir uma ponta de remorso pelo que estava prestes a fazer, mas não tinha tempo a perder. A dor do veneno em seu corpo, apenas incômoda no começo, tornava-se mais aguda a cada momento.

 

No saguão do prédio, os seguranças aguardavam, bastante cansados. Era duro passar um dia todo praticamente de pé. E sabia Deus quanto tempo mais ficariam daquele jeito. O cliente não ajudava muito, o dia todo em movimento, sem deixar qualquer lugar para eles repousarem as pernas. E não havia lugar naquele prédio imundo para sentar. Um dos seguranças suspirou fundo. Apesar de trabalharem no mesmo turno, quase não se conheciam porque a empresa insistia em trocar as duplas justamente para evitar amizades indevidas. Ainda assim, eles se conheciam o suficiente para trocar algumas frases. Não mais que isso.

—Como vai a família? —perguntou um deles, que era um pouco mais atlético e bem mais jovem que o companheiro.

—Bem!

—Seu filho já saiu do jardim?

—Já sim. E você? Já concluiu a faculdade?

—Falta só a dissertação.

—Quanto tempo?

—Alguns meses.

—Isso é bom. Vai mesmo deixar o trabalho?

—Não sei. Acho que não encontrarei serviço mais bem pago. Mesmo com o diploma.

—Tem razão. Temos sorte.

—Ele não ajuda muito às vezes, não é mesmo? Nosso cliente?

—Não, mas vai ficar tudo bem. Ele vai estar mais contente e mais sossegado quando sair daquele apartamento.

Os dois sorriram. Podiam ouvir os gemidos, mesmo ali debaixo. E os dois amantes haviam recomeçado, no andar de cima.

 

Ele engoliu tudo daquela vez. Foi intenso e muito rápido. Ele precisava ser rápido. O amante estava realmente excitado naquela noite, e seu tempo estava se esgotando. Ele tinha apenas algumas horas, e as sensações desagradáveis do veneno começavam a evoluir para algo realmente destrutivo, algo que desmanchava seu corpo por dentro. O amante ainda não havia se interessado pela bebida. Estavam nus agora, todos os dois, e trocavam carícias no sofá. Ele se ergueu, apanhou sua bebida e a do amante, tomando cuidado para não misturar os copos, e voltou a se acomodar, um pouco separado agora. Uma tontura intensa tomou conta de seus olhos quando se sentou, mas ele se controlou e conseguiu se conter. Pretendia esperar até o amante tomar a iniciativa com a bebida, mas isso não aconteceu, então ele apenas estendeu o copo e sorveu sua parte. O amante não o acompanhou. Não parecia com muita vontade de beber.

Uma pontada de dor percorreu sua têmpora. Seu nariz sagrou. Ele se apressou em limpar o sangue, mas o amante percebeu.

—Você ainda está usando, não está?

—Não muito! Mas sim!

Não, aquilo não era a cocaína. Era o veneno. O negócio começou a queimar em cada uma de suas veias, e ele precisou se esforçar muito para disfarçar a dor.

—Você precisa parar, ou vai acabar no hospital, ou pior!

—Eu sei... Eu sei...

—Eu vou ajudar você dessa vez. Vamos achar um lugar para nós. Vamos fazer dar certo.

—Eu sei. —disse ele. E começou a chorar.

Sim, havia o remorso, intensificado ao máximo ao ver o ex-namorado completamente entregue diante dele, como um maldito Romeu, mas o que o fazia chorar de verdade era realmente a dor.

—Apenas beba! Vamos relaxar!

—Não se sinta sozinho! Eu estou aqui! Vai dar tudo certo!

—Eu sei, querido... Eu sei... Apenas beba!

O amante ficou sério repentinamente.

—É a terceira vez que você me manda beber.

—O quê?

—É a terceira vez.

Ele largou o copo.

—Por quê?

—O quê? —ele perguntou.

—O que está acontecendo?

O amante se ergueu e começou a se vestir. Se ele chamasse a segurança, tudo estaria acabado.

—Fique comigo... Fique comigo... Apenas beba!

—Eu não sei o que está acontecendo, mas vou ajudar você! Mas precisamos sair daqui agora! Se vista! Vamos dar um jeito nisso!

A dor subiu duas oitavas, e ele teve de se conter para não gritar. Com uma fúria animalesca, alimentada pelo mais profundo desespero, ele apanhou o cinzeiro sobre a mesa de centro. Assim que o amante lhe deu as costas, já preparado para sair, ele golpeou sua cabeça com muita força. No fim, a bebida nem foi necessária. Ele finalmente gritou, gritou de verdade, e só não começou a rolar pelo chão porque já era fisicamente impossível, tamanha a degradação de seu corpo. Seus olhos já não enxergavam o quarto, apenas uma mancha vermelha que cobria quase tudo. Se ele conseguisse se observar no espelho, perceberia que seus olhos haviam sido tomados por uma vermelhidão profunda, reflexo das veias que começavam a estourar em sua cabeça. Seu nariz agora sangrava de verdade. Ele lutou muito para caminhar até a janela e abrir a cortina, conforme combinado, embora cada passo exigisse um esforço descomunal, quase sobre-humano. Quando já não havia restado força alguma em seus membros, ele desmaiou.

 

Alguns minutos antes, no saguão do prédio, a porta de entrada se abriu. Uma velha senhora, de uns setenta anos ou mais, tentou passar, mas era difícil com todas aquelas cestas. Parecia uma dessas vendedoras ambulantes e, pela quantidade de coisas que trazia de volta, o dia não tinha sido muito bom. Havia pipocas doces, sacos de batata frita e até alguns chocolates. A mulher não conseguia passar pela porta estreita, por mais que tentasse. O segurança mais jovem se adiantou e tomou algumas das cestas.

 

—Permita que eu lhe ajude, senhora!

—Ah, obrigada meu jovem!

—Mora em qual apartamento?

—O último do primeiro andar, à direta.

—Tudo bem! Eu levo as cestas até lá.

—Obrigada! Mais uma vez!

A velha destravou a porta do último apartamento e entrou, só depois apanhou as cestas que estavam com o segurança.

—Não quero parecer ingrata, mas não haveria alguma chance de vocês comprarem alguns dos meus doces. O dia foi ruim, e eles não vendem bem no dia seguinte.

O segurança sorriu.

—Claro que sim, senhora! Quanto custa?

—Cinco por dez.

O segurança deixou uma nota de vinte.

—Fique com o troco, senhora!

—É muito gentil da sua parte! Muita obrigada novamente, meu bom rapaz! Pelo menos terei algo para comer amanhã.

Ela entrou. O segurança se colocou novamente em seu posto, com muita pena da mulher.

—Que situação!

—Temos sorte —disse o colega —E você? Não vai comer nenhum desses chocolates? Passe um para cá!

—Estamos em serviço!

—Escute... Você é novo no trabalho. Eu costumava trazer o chefe para cá, há alguns anos. Ele nunca saiu antes das cinco da manhã.

—Porcaria! Eu tinha um compromisso!

—Pode esquecer seus compromissos hoje. Vamos passar um bom tempo aqui.

—Deveríamos avisar os supervisores, para eles mandarem o reforço e substituírem a gente. Nosso turno já acabou.

—O chefe gosta de privacidade. Os últimos que fizeram algo do tipo foram demitidos.

—Droga! O que fazemos então?

—Apenas fique na sua! E vamos comer esses chocolates!

O segurança mais novo lançou um dos doces para o parceiro, que o devorou muito rapidamente. Ele demorou mais para terminar o seu, mas já queria muito provar o segundo.

—Isso está muito bom!

—Está sim!

Eles aproveitaram o sabor em suas bocas por um breve momento. Por mais incrível que pudesse parecer, comer em serviço, naquela profissão, era algo extremamente raro, principalmente quando se trabalhava para uma empresa tão rigorosa. Os dois aproveitaram o momento, de qualquer jeito, e tomaram aquilo como um verdadeiro segredo. O segurança mais jovem acabou lançando outro chocolate ao colega. Daquela vez o parceiro de turno não conseguiu segurá-lo. Ele soltou uma gargalhada baixa.

—Você está precisando realmente de uma folga!

—Não é isso. —afirmou o colega, mais sério agora.

—O quê? O que aconteceu?

—Eu não estou bem.

—Como assim? O que você está sentindo?

A resposta não foi necessária, pois ele mesmo descobriu a sensação. Uma tontura profunda, que logo evoluiu para uma espécie de cegueira estranha, que acabou trazendo consigo um cansaço insuportável e repentino. Quando deu por si, o segurança percebeu que o colega já havia desabado. Ele tentou gritar por socorro, tentou se mover, tentou deixar o prédio, mas tudo o que conseguiu foram dois passos cambaleantes e um tombo doloroso. Seu corpo começou a se debater sem que ele pudesse controlá-lo, um tremor violento que se irradiava por todos os membros. Por fim, uma espuma branca começou a escorrer de sua boca. Mas tudo aquilo parecia estar ocorrendo com outra pessoa, como se ele fosse apenas um espectador fora do próprio corpo. Era uma sensação estranha.

Um homem deixou o último apartamento do primeiro andar, o mesmo no qual a velha senhora havia entrado minutos antes. Cobria o rosto com um gorro marrom de lã. Vestia roupas comuns e não parecia um sujeito muito grande, nem muito forte, nem mesmo perigoso, nada que lembrasse um assassino de aluguel, com exceção da pistola automática que segurava na mão direita. Com muita tranquilidade, o sujeito acoplou um grande silenciador à pistola. Elegantemente, desferiu dois tiros em seu colega de trabalho caído, depois caminhou em sua direção e preparou a pontaria para o disparo mortal. O segurança ainda conseguiu encarar os olhos do homem estranho, olhos frios e indiferentes, por trás de espessos óculos de grau. Depois tudo se apagou.

 

A senhora que havia vendido os chocolates aos seguranças deixou o apartamento segundos depois e caminhou até o sujeito encapuzado. Mesmo com o gorro escondendo o rosto do homem, achou melhor não olhar em sua direção, ou as coisas poderiam não terminar muito bem. Mas ela sabia exatamente o que fazia, conhecia a etiqueta do negócio como poucos, já que era ela mesma uma grande profissional.

—Você foi muito bem, Nilce! O dinheiro já está em sua conta.

—O triplo do valor? —perguntou ela, animada.

—Como combinado.

—Muito bom! Até mais, chefe!

—Até mais! Por favor, tranque a porta quando sair?

—Pode deixar!

 

Ele despertou. Ou ao menos tentou despertar. Seus olhos se abriram, mas logo se fecharam novamente. Ele precisou de muito esforço para abrir novamente as próprias pálpebras, como se aqueles dois míseros pedaços de pele pesassem mil quilos. A primeira coisa que percebeu foi o amante caído no chão, com o corpo nu tomado por espasmos estranhos. A cena era horrível. Ele precisava reagir, mas não conseguia mais sustentar o peso dos próprios olhos e desmaiou mais uma vez. Aquilo durou pouco, em sua mente, mas algo lhe dizia que estivera apagado por um longo tempo daquela vez. O amante agora falava com alguém. Ele custou a localizar o homem, um sujeito franzino, bastante comum, mas bastante elegante, confortavelmente acomodado no sofá, com um horrendo gorro marrom cobrindo seu rosto. Se estivesse inteiro, acabaria com o sujeito por ter mexido com o namorado, e seria rápido. Não antes de dar algumas dicas sobre ternos para o homem. O que ele usava era horrível (três botões, pelo amor de Deus, jamais quatro). No estado em que estava, no entanto, mal conseguia manter os olhos abertos, muito menos dar uma de herói.

—Por favor, a cura!... —implorou o namorado, em meio a uma agonia de dar dó. Parecia um peixe recém pescado se contorcendo sobre a rede assassina. —Por favor!...

—Não há cura. —afirmou o sujeito, friamente. —Nunca houve...

—Você disse...!

—Eu menti!... As pessoas ficariam surpresas se soubessem como é difícil curar um corpo e, ao mesmo tempo, como é fácil destruí-lo. Você precisaria de um milagre para sobreviver.

Do chão, ele viu o amante chorar e chorar, depois gritar, depois vomitar uma quantidade absurda de sangue. A coisa saía pela boca, pelos olhos, pelos ouvidos. Ele queria levantar, precisava levantar, mas não conseguia reagir. Mais uma vez, seus olhos se fecharam. Quando voltou a abri-los, o sol já nascia do lado de fora. O Amante se debatia em uma convulsão violenta. Não havia como alguém sobreviver a algo assim. Com uma fúria animalesca, ele tentou gritar, chamar a atenção dos seguranças, mas nenhum som saiu de sua boca além de um suspiro sem força. Só então ele se deu conta: não era apenas a pancada na nuca. Aquela sonolência era efeito de alguma droga estranha. Uma escuridão severa envolveu sua mente novamente.

 

Ele era uma sombra na escuridão. Não, ele era uma das imagens no sonho de Dickens. Seu patrão, seu bom amigo, sorria. Algo lhe dizia que ele nunca mais veria aquele homem, e isso o entristecia. Ele despertou novamente. Daquela vez, estava sentado. Mais do que isso, estava poderosamente preso a uma cadeira. Ao menos foi isso que pensou a princípio, mas logo depois percebeu que estava apenas dopado. Mover o corpo, daquele jeito, era muito difícil. Nem seu quadril saía do lugar, muito menos as pernas. Ao percorrer os olhos pela sala, ele encontrou o corpo já sem vida do amante, largado no chão como um trapo. A face se contorcia em uma carranca de dor. Estava morto, não havia a menor dúvida, largado sobre uma poça do próprio sangue.

 

Ódio... Não, ele não era uma criatura habituada a nutrir aquele tipo de sentimento. Passara pelo mercado financeiro, pelo ninho de cobras do instituto Marshal, sem nunca conseguir odiar ninguém, mesmo sendo provado todos os dias. Mas observar aquele homem horrível, na cadeira à frente da sua, tranquilamente sentado, como se estivesse na poltrona da própria sala, mesmo depois de torturar e matar seu grande amor, fez com que seu corpo fosse tomado por uma fúria diabólica e selvagem. Ele se preparou para saltar sobre sujeito, arrancar sua cabeça de seu pescoço. Daquela vez, o sujeito não tinha escapatória.

 

Não funcionou. Seu corpo não se moveu. Tudo o que conseguiu foi um pequeno movimento pendular, para frente e para trás. E mais nada. Seu grito, que em sua mente soaria como os tambores do inferno, não passou de um gemido abafado e mal articulado. Que porcaria era aquela? Era humilhante. Ainda assim, ele não desistiria. Tentou cuspir na cara do sujeito, humilhá-lo antes de morrer, mas nem isso conseguiu. Sua saliva apenas começou a escorrer, sem força, pelo canto de sua boca. O sujeito estranho continuava encarando seu rosto. Aparentemente encontrava alguma diversão naquilo. Ele não se conteve e começou a xingar, mas seus lábios não se moviam direito, e o resultado era apenas cômico.

—Eu vou matar você!... —disse ele. Ou ao menos tentou. —Vou estrangular você!...

 

—Verdade? —perguntou o sujeito, com um sorriso cínico. Já não vestia o gorro estranho. Seu rosto não assustava. Pelo menos não à primeira vista. Um olhar mais atento, no entanto, provaria que o homem era definitivamente assustador, frio como uma pedra de mármore e, ele não teve dúvidas, extremamente inteligente. —E com o que pretende me estrangular?

Ele não entendeu a insinuação. Não até olhar para as próprias mãos e perceber que elas não estavam mais ali. No lugar delas, apenas algumas ataduras brancas quaradas de vermelho. Mais uma vez, ele começou a gritar. Daquela vez, seu grito teria sido a encarnação do pavor mais profundo que já havia sentido na vida, mas novamente sua voz não foi além de um gemido abafado.

 

—Por quê?... Por quê?...

 

—Harpias... —disse o sujeito.

 

—O quê? —ele perguntou, completamente confuso.

 

—Você as conhece?

 

—São... gaviões...

 

—Águias, na verdade. As maiores que existem. Imponentes e poderosas. Suas garras são maiores que punhais. E elas têm quatro em cada pata. Quando atacam, elas mergulham de uma grande altura e lançam todo o peso de seu corpo sobre a vítima. O ataque é violento. Elas perfuram a coluna vertebral das presas, paralisam os pobres animais, antes de devorá-los. Como os animais que caçam são quase todos muito perigosos, gatos selvagens e macacos, de modo que podem feri-las se tiverem a chance, elas terminam o serviço arrancando a cabeça das vítimas, antes de devorar o corpo ou levá-lo para o ninho. No meu ramo de trabalho, chamo isso de contenção de variáveis.

O homem fez uma grande pausa e prosseguiu.

 

—Muitos acham que eu mutilo minhas vítimas porque gosto do sofrimento, o que não está de todo errado. Mas o motivo real é outro.

 

—Contenção de variáveis... —ele completou.

 

—Exato! —respondeu o sujeito. —Não me entenda errado, você não me faria mal nem se fosse um urso, tamanha a quantidade de tranquilizantes em seu organismo, mas eu não posso arriscar. Houve uma vez em que não me precavi. Uma de minhas vítimas havia escondido um objeto cortante. Até hoje não sei muito bem o que era. Ela me acertou no pescoço. Digamos que não morri por muita sorte. E o sujeito estava dopado, como você. Foi a partir desse momento que comecei a arrancar os membros de minhas vítimas, antes de terminar o serviço, sempre que precisava conversar sobre algo. Geralmente arranco os braços e as pernas, mas no seu caso eu não tinha todos os meus instrumentos, então tive de me contentar com as mãos e os pés. Entende o que estou dizendo?

 

—Harpias...

 

—Exato! Você entendeu.... Agora, precisamos conversar. Gosto de conversas sinceras com quem está próximo da morte. Posso ser mais honesto.

 

—Vá para o inferno!

 

—Exatamente isso! Honestidade!... Sabe, seu namorado... —disse o homem estranho, apontando para o corpo nu caído. —Ele é bonito. Feminino. Tem até seios. Quando o vi da primeira vez, quase achei que era uma mulher. Então, desculpe a curiosidade, mas preciso perguntar. Se não gosta de mulheres, por que acabou com um cara tão parecido com uma?

 

—Não gosto de mulheres. Gosto... Gostava dele. Sempre gostei. Sempre fui apaixonado por ele! Desde que éramos muito jovens!

 

—Isso é bonito. Uma declaração de amor.

—Você não tem o direito de falar dele!

—Isso é verdade. Eu sou a porcaria de um assassino sem coração. E ele era uma pessoa boa. Cheia de problemas, mas uma pessoa boa. Você também. Não sou a porcaria de um psiquiatra, mas acho essa paixão ardente que você sente tem algo de paternal também: você precisa de pessoas para cuidar. Você cuidava de seu ex-patrão, do filho retardado dele, da filha promíscua dele, e do seu amante problemático. Parece seu jeito, sua forma de ser. É um jeito duro de viver. Você se envolve demais com as pessoas, e parece gostar mais das mais difíceis.

Uma lágrima escorreu pela face do homem amordaçado. Ele continuou seu monólogo. Raramente era ouvido com atenção. Gostava das poucas oportunidades que tinha para desenvolver seu raciocínio que, ao menos ele acreditava, era bastante acurado.

—É aí que está o problema. Você não é uma pessoa violenta. Pelo que me informei, você é uma pessoa bondosa, caridosa. Um... Amigo... As pessoas gostam de você. Seus colegas e seus subordinados de trabalho gostam de você. Até os que querem derrubar você. Os empregados daquela casa gostam realmente de você. Alguns não pensariam duas vezes em se colocar em perigo por você. Você não é um assassino, apenas uma pessoa boa que se colocou em uma enrascada por alguma razão que eu ainda não consigo entender. Você não queria a garota morta, não é verdade?

—Eu a amava... Como...

 

—Uma irmã. Você morou naquela casa por oito anos, quase nove. É compreensível. E a garota tinha a fama de ser alguém por quem as pessoas realmente se apaixonavam, em todos os sentidos.

 

O sujeito se inclinou perigosamente e o encarou com olhos frios.

 

—Sabe que tenho um trabalho a finalizar. Seu patrão foi bem específico. Ele quer o assassino da neta morto. E quer que o culpado sofra, como nunca ninguém sofreu no mundo. Obviamente, é algo muito específico e bem difícil de conseguir. Mas posso realmente causar muita dor. E pretendo cumprir o contrato. Então, vou lhe perguntar: quem matou a garoa?

 

Ele respirou fundo, tentando preparar o corpo para o castigo vindouro. Acabou não conseguindo e caiu no choro.

 

—Eu... —completou.... —Foi um acidente. Eu não queria. Termine o serviço! Apenas me mate, por favor!

 

—Isso foi comovente. —respondeu ele. —Sacrificar-se desse jeito. Você é realmente uma ótima pessoa, meu rapaz! Gosto disso. Mas está mentindo. Quem matou aquela garota?

 

—Vá para o inferno! Não vou dizer! Jamais diria! Jamais trairia alguém desse jeito! Pode me torturar, o quanto quiser!

 

—Corajoso! Mas você entendeu errado. Não vou torturá-lo. Nem preciso. Não estou batendo papo com você esse tempo todo porque gosto de conversar, estou esperando a droga fazer efeito. E ela já está funcionando. Você vai responder tudo o que eu perguntar.

 

—Isso é mentira! —esbravejou ele, em meio a duas gargalhadas nervosas. —Mentira!... Está tentando me enganar!...

 

—Será mesmo? Vamos fazer um teste. Com quantas mulheres já dormiu?

 

—Só uma...

 

—E quem era?

 

—Minha tia Cintia. —respondeu ele, sem acreditar que aquelas palavras estavam saindo de sua boca. —Que droga!... Eu não devia dizer isso!... Não devia!...

 

—E como foi?

 

—Estranho. 

 

—Não foi ruim?

 

—Não. Apenas estranho.... Merda! Eu tenho de parar de falar! Tenho de parar de falar!

—Você prefere chupar ou ser chupado?

—Chupar, mas eu finjo que não... Não pode ser!... Não pode ser!... Eu não posso falar!... Não posso falar!...

—Fique calmo!... Quanto mais seu organismo tentar reagir à droga, mas forte será seu efeito. Você acabará falando, de um jeito ou de outro... Lutar contra isso vai causar um bocado de dor. Agora me diga: quem matou a garota?

Ele se controlou, prendeu a respiração, tentou pensar em outra coisa, mas as palavras insistiam em sair. Aquilo era uma verdadeira tortura, como tentar relembrar a letra de uma bela canção antiga enquanto seu corpo passa por um lento afogamento. Sua mente não conseguia filtrar as palavras que saiam de sua boca, por mais que tentasse. Ele só se conteve por pouco.

 

—Ele não teve culpa!... Ele não teve culpa!...

 

—Não foi isso que perguntei... Perguntei: quem matou a garota?

 

Mas uma vez, a mesma batalha. Era difícil evitar a resposta. Ele pensou no patrão, pensou no quanto o homem sofreria. Tinha de resistir, mesmo com toda aquela agonia. Precisava resistir. Então uma lembrança veio a sua mente: o primeiro jantar na mansão que seria seu lar, o belo quadro na sala de estar.

—Charles Dickens...

 

—Quem diabos é Charles Dickens? —perguntou o assassino.

 

Ele gargalhou.

—Um escritor... Um ótimo escritor...

—Tudo bem... Agora estou perdendo a paciência. Quero um nome! Um maldito nome! E você vai dizê-lo! Olhe para mim! Quem... matou... a garota?

O efeito da droga era verdadeiramente forte. Respirar ficava cada vez mais difícil. Se mover também. Seus olhos ardiam e lacrimejavam, e ele não conseguia mais piscar, por mais que tentasse. Era angustiante. Mas o mais difícil era pensar. A coisa anestesiava sua mente, como se ele tivesse acabado de passar por uma vigília de duas semanas, ou pior. Ele fez um último esforço, quase sobre-humano, para resistir: seu corpo tremia. Ele mordeu a própria língua, quase a ponto de decepá-la, e daquela vez gritou de verdade. Sangue jorrava de sua boca. Seu rosto se encheu de uma vermelhidão profunda, até atingir um horrendo tom de sangue, tamanha a energia demandada para manter a mente focada. Tudo em vão. Não, ele não podia se entregar, não podia desistir. Caso se permitisse tal fraqueza, haveria muita destruição, muita dor. No meio de todo aquele esforço, porém, um nome acabou escapando entre seus lábios. O nome do assassino.

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