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Terceira Parte

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Capítulo 25

 

Era já tarde da noite, e a imprensa da cidade ainda se amontoava em frente ao prédio da delegacia, em uma confusão de vozes, câmeras e flashes. Aguardavam a partida do criminoso. O homem que estuprara e matara seis crianças não parecia ameaçador ali, naquele momento, um sujeito albino bem acima do peso e muito mais baixo que os policiais que o escoltavam, mas durante quase dois anos espalhara o terror pela cidade, uma espécie de fantasma sem nome e sem rosto que aguardava em cada beco escuro.

 

Houve um grande alvoroço quando o criminoso deixou o prédio. Ele parecia gostar da popularidade repentina. Um sorriso desafiador surgiu em seus lábios finos e se petrificou ali, mesmo enquanto os policiais o arrastavam com certa violência até o banco traseiro de uma das viaturas. A algazarra inicial foi substituída por uma avalanche de fotografias e perguntas soltas. O sujeito encarava as câmeras, gostava delas.

 

–O cara é um idiota. –afirmou o delegado Braga, enquanto observava a cena do lado de fora através das persianas entreabertas da janela de sua sala. –Ele acha que venceu.

 

Guilherme Braga era um homem forte, um tanto baixo, com postura e jeito de ex-militar. Apesar do terno caro lhe vestir bem, não apagava de todo seu aspecto um tanto rude de soldado.

 

–Ele é um narcisista. –respondeu o homem sentado na poltrona, pouco antes de se levantar.

 

Mesmo debaixo da precária iluminação da sala, seus olhos se destacavam. Eram de um verde intenso, quase fosforescente. Repousavam em um rosto claro e fino, de contornos quadrados e traços bem marcados.  Pertenciam a um homem alto e magro, que passava um pouco da casa dos quarenta, dono de cabelos escuros e curtos, sobrancelhas grossas, lábios finos e de um maxilar forte e alongado.

 

–Quero ver ele manter esse sorriso na cadeia. –disse o delegado, depois de uma risada curta e rasgada, pouco antes de abandonar a cena do lado de fora e se voltar para o homem na sala. –Suponho que não nos veremos mais.

 

–Parto em algumas horas.

 

–Então, deixe-me agradecê-lo, em nome da cidade. –disse o delegado, estendendo uma mão muito forte.

 

Os dois trocaram um bom aperto.

 

–Só fiz o meu trabalho.

 

–Não, fez bem mais do que isso. Foi um prazer conhecê-lo, senhor David Wasser.

 

O delegado partiu. Em segundos, surgiu do lado de fora e embarcou em seu automóvel. Depois de uma manobra simples mas incrivelmente bem executada, partiu rispidamente, acompanhado pela viatura que escoltava o preso e por outros dois veículos da polícia civil. Pouco a pouco, a imprensa fez o mesmo. Em minutos, o pátio da delegacia estava deserto.

 

Agora, só restava um repórter ali, no silêncio da noite fria. Através do vidro da janela, David Wasser o viu acender um cigarro. Era Caio Eing, o responsável pela coluna policial do mais importante jornal do estado, um sujeito alto, grisalho e bastante calvo. Vestia-se com certo desleixo: a face como que amargando uma eterna ressaca, a camisa ligeiramente amarrotada. Mas um desleixo, apesar de tudo, elegante, efeito dos pequenos detalhes, como a roupa sob medida e os poucos fios de cabelo penteados com cuidado. Da rua, ele acenou para o policial. David Wasser vestiu seu casaco pesado, atravessou a meia escuridão do corredor, passou pela recepcionista da delegacia e deixou o prédio. O lado de fora estava gelado como a morte. Wasser atravessou o pátio e se aproximou do jornalista.

–Você não deveria estar com seus colegas agora?

O repórter deu de ombros.

–Sou um jornalista investigativo, e não há mais nada para investigar lá.

O repórter fez uma pausa, durante a qual deu sua última tragada e esmagou a xepa com a sola do sapato, então prosseguiu.

–Você, detetive, no entanto, daria uma bela investigação. Aliás, eu tenho acompanhado você há um bom tempo... Como você faz isso?

–Não sei do que você está falando.

–Um assassino de crianças perseguido por dois anos, por uma equipe inteira, investigadores, peritos, perfiladores, e nada. Então você aparece, e três dias depois o homem está atrás das grades.

–Uma palavra: sorte!

–E da última vez, e da penúltima... Eu investiguei seu histórico e devo dizer que ele é impressionante. Você poderia ser famoso, se quer minha opinião. Poderia ter um daqueles programas de TV a cabo, ganhar muito dinheiro.

–Não, obrigado. –respondeu Wasser. –Não estou interessado. Não gosto de popularidade. Meu trabalho depende do anonimato, em grande parte. E não gostei da matéria de dois dais atrás.

–Eu nem citei seu nome.

–Colocou minha foto na capa. Colocou muita atenção em mim. E eu não gosto disso.

–Eu sei. E isso é o mais estranho. A maioria das pessoas que são boas em algo gostam de ser valorizadas, mas você não. Você não faz isso por fama, não o faz por dinheiro. Honestamente, acho que há alguma coisa anormal com você. E eu vou descobrir o que é.

–Então, boa sorte para você nisso. –disse o policial, antes de dar meia volta e partir novamente para a delegacia. –Tenho um relatório para escrever.

–Espere! –interrompeu o repórter, enquanto tirava um pequeno envelope do bolso do casaco. –Eu já estava esquecendo.

–O que é isso?

–Uma carta, endereçada a você. Chegou à redação do jornal hoje à tarde.

O envelope trocou de mãos.

–Como pode ver, está endereçada ao "homem que prendeu o assassino das crianças". Creio que seja você.

–Está dizendo que não abriu? –perguntou Wasser, desconfiado.

–O envelope está lacrado, não está?

–Algum palpite sobre quem me mandou isso?

O repórter fez uma pausa para pensar.

–Há mais ou menos sete meses, uma garota foi morta e esquartejada em uma cidadezinha do estado vizinho, a oito horas daqui. Acho que alguém está precisando da sua ajuda para encontrar o assassino.

–Bom palpite para alguém que não leu a carta.

O repórter sorriu e partiu. Enquanto caminhava na direção de um sedan muito velho, ele respondeu:

–Não disse que não li a carta, disse que não a abri. Não é a mesma coisa. E você conhece a lei.

–É eu conheço.

O repórter entrou no automóvel e tomou seu assento. A porta fez um barulho estranho quando ele a bateu. A lataria do veículo estava muito amassada, e o branco brilhoso que um dia cobrira a coisa agora se transformara em um pardo fosco. O motor roncou alto no silêncio da noite, acompanhado por um ruído estalado que não parecia normal.

–Pensei que um editor-chefe ganhasse o suficiente para comprar um carro novo. –afirmou o policial.

–É, as pessoas costumam superestimar nosso salário na imprensa. Além disso, gosto deste carro. Foi do meu avô.

–Dá pra perceber.

O jornalista riu baixo. Ficou mais sério em seguida.

–Escute, detetive... Falando sério, boa sorte para você lá! Acho que vai precisar. Eu cobri aquele assassinato, e foi a coisa mais horrível que já vi. E eu já vi muitas coisas horríveis.

O repórter acelerou. O carro se moveu devagar por alguns metros e golfou uma quantidade absurda de fumaça, só então arrancou de verdade. Wasser observou o envelope em suas mãos: "ao homem que prendeu o assassino das crianças". Parecia a letra de um adolescente. Mas era bonita demais para ser de um menino.

 

As horas seguintes, David Wasser gastou lendo com extremo cuidado a carta enviada, que por sinal era rica em detalhes, não apenas sobre o crime em si, mas também sobre a rotina da vítima e sobre a geografia da cidade. Uma hora depois, quando os ponteiros do relógio de seu quarto no hotel já se aproximavam da meia noite, ele já havia conseguido agendar um horário com o delegado responsável pelo caso. Depois veio a pesquisa. Era impossível apanhar um assassino sem ela. Ele pesquisou notícias de jornal e os relatórios da polícia da cidade, todos que o delegado responsável teve tempo de enviar por fax, para a recepção do hotel. Antes de finalizar a pesquisa, Wasser já sabia que os perfiladores da polícia estavam errados. O número de desaparecimentos na cidade era incomum, fora do padrão. Era um desvio pequeno, pouco se afastava do padrão das cidades vizinhas, mas era perceptível: algo ou alguém estava forçando os números para cima, ele pode perceber. Não era um crime passional, era um assassinato em série, ele tinha certeza, e os policiais nunca conseguiriam apanhar o culpado se continuassem na direção errada. Contudo, pouco podia ser descoberto sem que ele tivesse mais informações, sem que tivesse a chance de analisar melhor todos os casos relacionados. Então ele partiu.

Algumas horas de sono e pouco mais de dez horas de viagem, com direito a duas paradas para o almoço e o jantar, e ele chegava à cidade na qual o crime ocorrera. Era uma cidade com pouco mais de oitenta mil habitantes, mas com um território imenso. Vinte anos antes, a região era um dos polos nacionais na produção de lã, até o fatídico dia em que uma praga misteriosa atingiu os rebanhos: toneladas de corpos de ovelhas incinerados em poucas semanas, muitos desempregados e milhares de pessoas se mudando. A pecuária foi substituída pela indústria de tecido, e a cidade se modernizou, à medida que a população novamente se expandia. Um lugar muito antigo, mas cheirando a novo. Agora, os bairros mais modernos no centro da cidade estavam cercados por pequenas e médias propriedades rurais, centenas delas, quase todas abandonadas. Wasser pode vê-las, quando seu carro chegou ao topo de um morro muito alto, a escuridão densa sufocando as muitas luzes da cidade, e a escuridão ainda maior da floresta sufocando a primeira. A escuridão, sempre ela. O policial suspirou, preocupado. Aquilo daria muito trabalho. Era um bom lugar para um assassino se esconder. O carro desceu até a cidade.

 

David Wasser conhecera poucos homens em sua vida que poderiam de fato ser chamados de gigantes, mas o delegado Carlos Dias era certamente um deles. Um sujeito ruivo, sardento, volumoso, forte e muito alto. Parecia capaz de levantar um caminhão carregado e arremessá-lo do outro lado da rua. Até sua voz era rasgada, e havia em seu rosto de bebê gigante algo que lembrava um daqueles ogros de contos de fadas. Wasser o observou enquanto ele se sentava. Debaixo dele, a grande cadeira giratória parecia frágil e chegou a gemer. 

–Então, Sr. Wasser, estou curioso. –afirmou o delegado –Por que esse caso?

–Porque acho que posso ajudar. –respondeu o policial. –Apenas isso.

–Pesquisei suas recomendações com seu último chefe, e ele foi enfático. Nas palavras dele, você é o melhor investigador que eu poderia arranjar. Mas ele também falou sobre alguns problemas, embora não tenha especificado quais.

–Nada que possa atrapalhar, eu garanto. –afirmou Wasser. –Apenas prefiro trabalhar sozinho.

–Por mim, tudo bem.

O delegado jogou uma pasta em cima da mesa.

–Todo o resto que temos sobre o caso. Quase nada, na verdade. Em minha opinião, qualquer ajuda é bem vinda.

–Obrigado, delegado.

 

–Mais uma coisa: Isabela Hasse era minha afilhada. Se encontrar quem fez isso a ela, terá minha gratidão eterna.

 

–Eu vou me esforçar. –afirmou Wasser, enquanto se levantava da cadeira.

 

Por alguma razão que não soube explicar, pela primeira vez desde o começo daquilo tudo, Carlos Dias sentiu uma ponta de esperança.

Capítulo 26

 

A noite avançava quando a campainha da casa dos Hasses ecoou. De sua poltrona, na sala, Marcos Hasse conferiu os ponteiros do relógio de parede. Definitivamente, não era uma boa hora para visitas. Contrariado, ele ergueu o corpo cansado, caminhou até a porta e a abriu.

No lado de fora, Carlos Dias esfregava os braços para espantar o frio. Sobre seus ombros, Marcos enxergou outro visitante. Não era um conhecido da família: alto, magro, rosto fino, queixo alongado e olhos bastante claros. Ao contrário do delegado, o outro não parecia se importar com o ar gelado, em parte por causa do casaco pesado que lhe cobria o corpo, mas havia algo mais. Marcos conhecia aquilo, aquela tolerância natural ao frio que surge após longas noites de vigília. O sujeito era certamente um policial, e Marcos Hasse podia apostar que ele sempre fora um.

Margaret surgiu na porta no momento seguinte.

–Oh, por favor, entrem! –disse ela. –Está muito frio aí fora.

Os homens obedeceram. Caminharam até a sala, onde era mais quente, mas permaneceram de pé.

–Fiquem à vontade. –disse a dona da casa. –Eu vou passar um café forte.

–Não é necessário. –afirmou o delegado. –Nós apenas precisávamos trocar umas palavras. Quero que conheçam o investigador David Wasser. Ele se ofereceu para ajudar a investigar o assassinato de Isabela.

–Se ofereceu? –perguntou Margaret.

–Exatamente. –respondeu Wasser.

–Tipo esses detetives dos comerciais.

–Não, senhora. Não sou um investigador particular.

–Então, se você não é um investigador particular...

-No momento, sou apenas um investigador aposentado da polícia. Era um perfilador. Só quero ajudar a pegar o homem que fez isso.

Marcos soltou um riso seco e nasalizado, quase uma fungada. Parecia irritado, Wasser percebeu.

–Eu investiguei durante meses, percorri cada canto desta maldita cidade. Não há nada. O desgraçado não deixou uma única pista. Se houvesse algo, eu teria descoberto.

–Desculpe, Wasser. –interveio o delegado. –Eu esqueci de falar: Marcos foi um dos nossos. Um dos bons, aliás.

–Eu entendo, Sr. Hasse. Não vim até aqui para pisar as pegadas de outras pessoas. Só quero ajudar. De verdade. Não posso prometer nada, e não vou fazer isso. Só quero a chance de tentar.

Marcos encarou atentamente a face do visitante. Percebeu que ele estava sendo sincero. Percebeu, também, que o sujeito era mais velho do que parecia à primeira vista: tinha quarenta e cinco anos, no mínimo. E havia algo, algo em sua voz, algo difícil de explicar.

–Tudo bem. –disse Marcos, por fim. –Por nós, tudo bem. Mas por que vocês estão aqui? –perguntou ele, ao delegado.

–Bom, a ajuda de David Wasser é extraoficial, já que ele não trabalha mais como policial. Ele está aqui por conta própria, então precisamos de uma autorização escrita da família para colocá-lo como consultor no caso, ou as provas que por caso encontrar não serão aceitas no tribunal. Além do mais, eu quis que vocês o conhecessem antes de vê-lo por aí, fazendo perguntas. Pensei em deixar para amanhã pela manhã, mas Wasser fez questão de começar o mais cedo possível. Eu sei que vocês não dormem muito cedo, então viemos hoje.

–Não se preocupe com isso, Carlos. –disse Margaret. –Nós somos quase sonâmbulos, você sabe disso.  

David Wasser se afastou alguns passos dos outros, que continuavam conversando. Algo chamou sua atenção. No início, foi apenas uma risada alta de criança. Depois, da penumbra da sala, ele viu surgir uma menininha de dois, talvez três anos, correndo pelo corredor e gargalhando. Parecia estar brincando com alguém. Vestia um pijaminha cor-de-rosa e seus cabelos estavam presos em duas trancinhas. Era linda! Ela subiu as escadas, tão rápido quanto as perninhas curtas permitiam, e desapareceu.

Wasser olhou para os outros, que conversavam distraídos. Ninguém parecia ter visto aquilo. E agora: realidade ou memória, presente ou passado?

–Vocês têm outra filha, não é? –perguntou ele, discretamente, a Margaret.

–Sim, nós temos.

–E quantos anos ela tem mesmo?

–Quase treze. É uma menina linda.

Lembranças... Sempre pregando peças! Às vezes, quando eram muito fortes, muito intensas, era difícil distingui-las da realidade.

–Posso usar seu banheiro, senhora? –perguntou Wasser, procurando um pretexto para seguir a visão.

 

–Claro. O de baixo está com problemas. Há outro lá em cima, no fim do corredor.

 

–Obrigado!

 

Quando Wasser se afastou, Marcos Hasse se dirigiu ao delegado. Ainda estava um tanto desconfiado, Carlos Dias percebeu. Não sem razão é verdade. Quando casos como o de Isabela Hasse ocorriam, muitas vezes choviam detetives particulares, a maioria em busca de dinheiro fácil ou pura fama. Chegavam, muitas vezes, a inventar provas, distorcer fatos e inventar histórias. Marcos Hasse fora policial durante muito tempo. Estava acostumado a tipos assim.  

 

–Então, qual é a desse cara? –perguntou ele, ao delegado.

 

–Ele é sério. Isso eu posso afirmar. Pesquisei todas as fontes que consegui. Como ele mesmo afirmou, ele é um ex-agente investigador da PF. Deixou a polícia há uns dez anos, por problemas administrativos, pelo menos ao que parece, e de lá para cá vem resolvendo casos por conta própria.

 

–Tipo um bom samaritano?

 

–Por favor, Marcos! –interveio Margaret, irritada.

 

–Não, tudo bem, vocês têm o direito de saber. –respondeu o delegado. Voltando-se para Marcos, ele perguntou: –Lembra do caso na capital, há seis anos?

 

–O atirador? –perguntou Marcos, mais curioso agora.

 

–Exato!

 

–Foi ele?

 

Carlos Dias apenas meneou afirmativamente a cabeça.

 

–Que atirador? –perguntou Margaret.

 

–O homem aterrorizou a cidade. –respondeu Marcos. –Escolhia vítimas aleatoriamente, matava-as com tiros certeiros, fazia tocaias como um soldado. Foi pouco antes de eu me aposentar. Nós fomos chamados para ajudar a patrulhar as ruas. Estávamos todos muito preocupados, com medo. A polícia investigou por meses.

 

–E, então, o que aconteceu? A polícia o pegou?

 

–O homem se entregou. –respondeu o delegado.

 

–Tudo bem, agora eu realmente estou confusa. –afirmou Margaret.

–Nós também ficamos, na época. –disse o delegado. –O assassino era um pai de família. Pelo que consta, um bom pai de família. A psiquiatra disse que ele sofria de um transtorno compulsivo que o deixava muito zangado em alguns momentos. Então ele saía para extravasar a raiva atirando nas pessoas. O fato é: o sujeito realmente amava a família. Quando se entregou, o assassino confessou o motivo. Disse que, dois dias antes, um homem o procurou em sua casa, quando a mulher e as três filhas não estavam. Esse homem disse que sabia quem ele era, disse que tinha provas. E deu ao assassino dois dias para se entregar, ou avisaria a polícia. Se a polícia fosse avisada, a casa seria invadia, suas filhas...

–Suas filhas saberiam quem o pai era. –concluiu Margaret.

 

–Exatamente. –afirmou o delegado. –Dias depois da prisão, a polícia realmente recebeu as ditas provas, de um investigador privado.

 

–David Wasser? –perguntou Margaret, ao delegado.

 

–Exato!... Escutem, o sujeito é bom. Pelo jeito, ninguém sabe realmente como ele consegue resolver os casos, mas o fato é que ele consegue.

 

–Isso é bom. –afirmou Marcos. –Vamos deixar ele trabalhar.

 

David Wasser subiu as escadas sem pressa. Ouviu as pessoas na sala cochichando mais baixo e sabia que era sobre ele, mas não se importava. As pessoas cochichavam muito a seu respeito, tinham esse hábito. Era algo comum na vida de alguém tão estranho. O que atraía sua atenção agora era a visão de alguns segundos antes. Ele caminhou pelo corredor até alcançar o segundo quarto. A porta se entreabriu, talvez já estivesse assim. Na fresta, surgiu um rostinho bonito. A mesma menina que ele vira subindo as escadas, agora um pouco maior, provavelmente quatro anos.

 

–Ei, pai. –sussurrou ela, como que para não acordar a mãe que, àquela altura, devia estar dormindo no quarto em frente e tinha um sono leve. –Vem aqui um pouquinho!

 

Wasser abriu a porta do quarto alguns centímetros e entrou. Suas mãos não eram mais suas. Eram mãos mais fortes. Seus dedos eram mais robustos.

 

–Estou aqui. –sussurrou ele. Sua voz também pertencia a outra pessoa, a voz do homem no andar de baixo, só que soava mais feliz, mais serena, apesar do cansaço do dia de trabalho.

 

No quarto, uma penteadeira, um roupeiro cor-de-rosa e uma cama de solteiro coberta por um edredom com figuras de pôneis. Havia também duas cadeiras, e um cobertor as cobria. Debaixo do cobertor, o foco de luz de uma lanterna pequena desenhava formas ogivais no tecido felpudo. A menina acenou para ele. Ele entrou naquilo que, imaginou, deveria ser uma tenda. Estavam muito próximos, encolhidos debaixo da proteção de pelos, e ele podia sentir a respiração e o calor da garotinha. Como era bonita!

 

–Eu construí uma cabana pra gente. –sussurrou ela, muito impressionada consigo mesma.

 

–É linda! –disse sua voz.

 

–É boa igual as que você fazia no exército?

 

–É melhor. –mentiu ele. Mas era uma mentira honesta, que bem poderia ser verdade.

 

–Pensei que a gente podia passar a noite aqui, pai. Pra conversar.

 

–A mamãe não vai gostar se você ficar acordada até tarde. –sussurrou sua voz. –Mas eu gostei da ideia.

Ele ficou esperando a conversa com um sorriso nos lábios. Então a menina pediu:

–Conta uma história?

–Claro. Qual delas?

–Aquela do filhote de passarinho que você ensinou a voar.

–Está bem. Vamos lá...

 

Wasser se viu, repentinamente, no quarto escuro e silencioso. O cobertor e as cadeiras haviam desaparecido. A luz da lanterna também. Só havia a meia-escuridão agora, além da estreita faixa de luz vinda do corredor, que era suficiente para iluminar os retratos na penteadeira. A família toda aparecia. Era o quarto de Isabela: uma foto para cada membro da família. No meio de todas elas, um retrato da menina que ele vira há pouco. Estava com pai, na época bem mais jovem e bem mais magro, em uma canoa. A própria dona do quarto havia organizado os retratos daquela forma, Wasser sabia.

 

–Eu conheço você. –afirmou a menina sentada sobre a cama.

 

Aquela estava ali de verdade. Treze anos, cabelos castanhos, magrinha e muito parecida com a mãe. A outra se parecia mais com pai, tanto o rosto quanto os olhos.

–Eu sinto muito pela intromissão! –desculpou-se Wasser, meio sem graça.

–Não tem problema. Eu vi você no jornal. Você é o policial que prendeu aquele assassino, três dias atrás.

–Na verdade, eu não o prendi. Eu apenas descobri quem ele era.

–E o que você está fazendo aqui?

–Digamos que eu recebi um pedido de ajuda.

–Um pedido de ajuda?

–Sim, alguém me escreveu uma carta pedindo que eu ajudasse no caso de sua irmã. Alguém muito inteligente. Mas acho que você já sabe disso.

Wasser olhou para a garota e sorriu. A menina retribuiu o sorriso. Foi a vez de ela ficar sem graça. Os dois ficaram em silêncio por algum tempo. Wasser voltou a examinar as fotos, então perguntou:

–Seu pai e sua irmã... Eles tinham uma ligação especial, não tinham?

–Minha mãe chegava a ter ciúmes às vezes, sabe? Não que ela e minha irmã não se dessem bem: elas saíam muito juntas, conversavam muito. Minha irmã era uma pessoa muito legal. Mas com meu pai era diferente. Eles... –a menina fez uma pausa para escolher as palavras. –Eles não precisavam dizer nada.

A garota encarou o policial, curiosa.

–Mas como você sabe disso? –perguntou ela.

"É que o quarto de sua irmã está repleto de lembranças dela sobre seu pai", Wasser pensou em dizer, mas não disse. Havia outras lembranças também: mãe, irmã, noivo, mas as que envolviam o pai eram as mais fortes.

–Não sei. –respondeu Wasser. –Foi só um palpite.

Ele ajeitou a gravata e as mangas da camisa e se preparou para sair.

–Sinto muito por ter invadido o quarto. Achei que era o banheiro. Desculpe se...

–Você vai encontrá-lo? –perguntou a garota, e o apanhou de surpresa.

–O assassino de sua irmã?

–Sim.

Normalmente, a resposta seria um ponto de interrogação. Mas Wasser olhou para a menina e percebeu a dor em seus olhos.

–Eu vou encontrar o desgraçado! Nem que seja a última coisa que farei nesta vida!

Ele não gostava de fazer aquele tipo de promessa. Da última vez que fizera algo parecido, a coisa não havia terminado bem. Mas, às vezes, era inevitável.

–E quando ele estiver preso, ou...

–Morto.

–Morto... Esta dor vai desaparecer? –perguntou a menina, esmurrando delicadamente o próprio peito. Estava prestes a chorar.

Wasser sentiu um aperto no coração. Tudo na vida era uma constante repetição: a dor, o luto... Um círculo interminável. Ele pensou em mentir, mas não teve coragem, então inspirou fundo para tomar fôlego.

–Não. A dor vai diminuir por um tempo. Mas serão semanas, talvez dias... Então ela vai voltar, mais forte do que antes. No fim, você vai ter de aprender a conviver com ela: a viver, mesmo com ela. E vai perceber que não há como escapar dela. Mesmos nos momentos mais felizes da sua vida, ela estará lá, gravada em sua carne como fogo.

A garota escutava com atenção. O homem falava como alguém que entende do assunto.

–Obrigada pela sinceridade! –disse ela.

–Queria dizer algo diferente, mas não posso. Você mesma terá de enfrentar isso, mais cedo ou mais tarde. Foi um prazer conhecê-la, Srta. Hasse.

–Posso dizer o mesmo. Mas ainda não sei seu nome.

–David Wasser.

–Foi um prazer conhecê-lo, David Wasser.

Wasser partiu, mas deixou sua imagem ali, e sua voz. No andar de baixo, o delegado já se despedia do casal e lhe fez um gesto para partirem. Margaret acompanhou Carlos Dias até a porta. Wasser ainda se despediu do anfitrião com um aperto de mãos.

–Peço desculpas pelo tom de antes. –disse Marcos. –Eu vou ficar muito feliz se você o encontrar.

"Para quê?", Wasser pensou em perguntar. Viu o mesmo brilho nos olhos do homem que já havia visto uma vez, anos antes, no espelho. Não gostou daquilo.

–Vou fazer o meu melhor. Adeus, Sr. Hasse.

Capítulo 27

 

Faróis amarelados rasgavam a escuridão da estrada deserta. Era uma madrugada limpa e extremamente fria. Até o ar parecia congelado. Estrelas brilhavam no céu, mas ali, no coração da floresta, reinavam as trevas. A estrada, em si, não passava de uma trilha marginal, uma reta de asfalto que não levava a lugar algum, mas era extremamente longa. David Wasser estacionou seu carro e deu uma última olhada nas fotografias do caso. Em uma delas, um sedan verde-escuro aparecia cravado em uma árvore. Era difícil, mesmo sob a luz forte dos faróis, distinguir aquela árvore alta e deformada das outras milhares iguais a ela, mas enfim ele a encontrara. A ferida na casca ainda era visível.

Wasser desligou o motor, apanhou sua lanterna e saltou. A escuridão da noite o envolveu no mesmo instante. O cheiro de terra gorda era mais forte naquela parte da mata, por alguma razão. A floresta parecia observá-lo. O ar gelado da madrugada queimou suas narinas e fez seu rosto arder, e bastaram alguns passos para seus dedos adormecerem dentro dos sapatos. Fora em uma noite gelada como aquela que Isabela Hasse fora assassinada. Wasser observou o local a sua volta com mais atenção, o foco da lanterna esculpindo formas fantasmagóricas por onde passava. Ele deu mais alguns passos.

 

Um martelo se ergueu diante de seus olhos. Tudo estava diferente agora: havia marcas escuras no chão e cheiro de borracha queimada, e uma garoa gelada caía sobre sua cabeça. A lanterna desaparecera, e suas mãos agora vestiam luvas de lã. O sedan verde parecia cinza na escuridão. Ali estava a coisa de metal, cravada na árvore, fumegando. A lataria estalava. Dentro do carro, presa às ferragens, a garota chorava. Ele se aproximou perigosamente. O interior do veículo estava salpicado de vermelho. A garota implorou: havia pavor em seus olhos, em sua face, em sua voz. Mas ele não hesitou.

 

Era tudo... A imagem foi embora, mas, em sua mente, Wasser ainda ouviu o barulho de algo sendo golpeado e, segundos depois, arrastado. Seu cérebro se recusou a associar a garotinha que ele vira subindo as escadas à garota ferida e apavorada no interior do carro. Ficava um pouco mais fácil assim. A lanterna estava novamente em suas mãos. O foco de luz repousava ainda sobre a marca na árvore.

Havia certamente algo de estranho naquele cenário: o carro da garota fora descoberto fora de seu percurso. Isabella Hasse não costumava andar por ali. Aquela estrada não fazia parte do trajeto habitual entre a casa dos pais e a casa do noivo, mas não estava longe da rota principal. Wasser caminhou lentamente pela estrada escura, com a lanterna em punho. Chegou ao trevo que separava a rodovia mais movimentada, que a garota costumava percorrer, das estradas quase desertas que levavam a centenas de fazendas abandonadas. Wasser não se dera conta de que gastara quase meia hora na caminhada. Estava concentrado demais para perceber.

De fato, aquilo não fazia sentido. A garota só entraria na estrada menos movimentada se precisasse fazer um desvio. Mas por que faria isso? A resposta, àquela altura, parecia óbvia: o próprio assassino tratara de criar o obstáculo. Ficaria mais seguro interceptar o carro da vítima em uma rota menos movimentada. Isso significava, dentre outras coisas, que o assassino conhecia a rotina da garota e os caminhos que ela costumava seguir. Foi por esse motivo que a perfiladora da polícia pensara em crime passional, por que tudo indicava alguém que estava habituado aos movimentos de Isabela Hasse. Mas e se não fosse passional, e se o assassino tivesse simplesmente observado a vítima por um longo tempo?

Wasser partiu pela rodovia principal. Era mais movimentada que a primeira, mas, ainda assim, estava longe de ser uma estrada de fluxo intenso, ainda mais àquela hora, de forma que ele não se deparou com um único veículo. A solidão ajudava a refletir. A resposta estava ali, em algum lugar. Ele sabia que procurava algo, apenas não sabia muito bem o quê, até que descobriu. Na verdade, não passava de uma pequena clareira em meio ao matagal e às árvores, mas com espaço o suficiente para esconder um carro dos grandes. Um local de onde se poderia enxergar a estrada sem chamar a atenção. Um refúgio cercado por arbustos e galhos.

Bem ali, no meio da clareia, Wasser encontrou uma placa coberta pelo mato sinalizando o trevo à frente. Algo arranhara aquela placa, algo que deixara um vestígio de tinta vermelha no alumínio pardo. Mais que isso, não fora apenas uma vez. Era uma rotina. Aquilo era a tinta de um automóvel. Talvez pertencesse ao carro do assassino. Precisaria ser um veículo muito alto para arranhar uma placa fixada a um metro e setenta do chão. E havia aquele turbilhão de lembranças intensas e desconexas que certamente pertenciam a alguém bastante desequilibrado: ovelhas mortas, uma sombra, uma mulher de cabelos grisalhos e saia comprida gritando "largue essa coisinha suja", uma bíblia muito grande e velha, uma marreta ensanguentada e uma mão gigantesca saindo da terra. E aquelas eram apenas as lembranças que ele era capaz de discernir. Havia outras ali, pairando no escuro, lembranças e pensamentos ainda mais confusos. O assassino havia passado um bom tempo ali certamente. O suficiente para deixar seu rastro de ódio e desequilíbrio. Era o lugar correto.

A claridade da manhã já surgia no horizonte. Quando ergueu os olhos, Wasser pode enxergar ao longe, no topo de um morro íngreme, por trás das copas das árvores mais altas, o telhado de uma bela casa. Era a única por ali, a única em quilômetros. Se o assassino observara a vítima por tanto tempo, certamente havia deixado vestígios.

 

Pouco mais de uma hora depois, David Wasser estava sentado em um sofá confortável, diante de um casal simpático de meia idade. Mal o dia amanhecera, e eles já estavam de pé, com suas roupas de caminhada. A casa era aconchegante, toda construída em madeira, e tinha um toque rústico, apesar da decoração moderna. A mobília mesclava cores claras e escuras e não parecia haver ali um só móvel desnecessário. Da cozinha, vinha o cheiro familiar de bolo de milho e café forte.

–Bela casa! –afirmou Wasser, enquanto seus anfitriões se acomodavam.

–Obrigada! –respondeu a mulher. –Tem certeza que não quer uma xícara de café?

–Sim, não vou incomodá-los por muito tempo. E vou direto ao assunto. Estou investigando o assassinato da garota, uns nove meses atrás.

–Aquilo foi muito triste. –afirmou o homem.

–Mas eu não entendo. –disse a mulher. –Nós já falamos com os outros policias, na época. Nós não vimos ou ouvimos nada.

–Sei disso. –respondeu Wasser.

 

–Nós nem estávamos em casa na época. –completou o homem. –Estávamos com nossa filha e só voltamos para casa uma semana depois do ocorrido.

 

–Sei disso também.

 

–E então? –perguntou a mulher, curiosa.  

 

–Não estou aqui para tomar o depoimento de vocês. Isso já foi feito.  

 

–E o que quer de nós? 

 

–Fotos. –respondeu Wasser. 

 

–O quê? --perguntou a mulher, curiosa.

 

–Vocês tiram fotografias, certo?

 

–Sim. –respondeu o homem, ainda mais curioso que a mulher. –Algumas. 

 

–Gostaria de vê-las, se não se incomodam. 

 

–Claro que não. –respondeu a mulher, já se erguendo do sofá mas ainda bastante confusa. –Precisa de todas?

 

–Só as mais recentes, dos últimos dois anos ou menos.

Dois álbuns grandes, um pequeno e algumas fotografias soltas foram largados sobre a mesinha de centro minutos depois. O casal parecia não compreender o motivo pelo qual o policial dedicava tanto tempo a alguns poucos retratos e simplesmente ignorava a maioria. A penúltima fotografia de um dos álbuns grandes parecia a mais importante, mas ele acabou por rejeitá-la também.

–É só isso? –perguntou Wasser. --Tem certeza?

–Espere... –respondeu a mulher, caminhando até uma espécie de estante. –Esqueci deste. Eu o guardo separado porque são as fotos que tiramos com minha filha e meu neto.

Um álbum pequeno, com uma infinidade de fotografias, a maioria delas soltas. E, novamente, a mesma coisa. O policial se detinha de forma espantosa em algumas fotografias e ignorava a maioria. Eram realmente muitos retratos para serem analisados. Até que um deles, aparentemente, chamou a atenção do sujeito.

–Esta foi tirada ali, certo? –perguntou ele, apontando para uma das varandas.

Na imagem, o casal aparecia abraçado a uma mulher de trinta e poucos anos e a um adolescente. Como pano de fundo, as árvores que cercavam a casa.

–Sim. –respondeu a mulher.

–Quando?

Ela e o marido se olharam buscando uma data precisa.

–Mais ou menos um ano atrás. Estávamos no começo do inverno, como agora. Nossa filha nos visitou com nosso neto. Nós tiramos muitos retratos naquela semana.

–Eu percebi. –afirmou Wasser.

–Mas não me recordo do dia exato em que essa foi tirada.

–Não importa. Vou precisar da foto por uns dias. Mando alguém devolver quando terminarmos.

–Claro. –responderam os dois, quase em coro.

A mulher ainda tentou questionar o motivo, mas era tarde. O policial já atravessava a porta.

 

 

Minutos depois, David Wasser parava diante de um balcão na maior loja de fotografias da cidade. 

 

–Preciso que amplie aqui! –pediu ele, indicando um ponto qualquer à esquerda da cabeça de um senhor de barba grisalha.

 

–Quer ampliar as árvores? –perguntou o rapaz magricela de cabelos despenteados atrás do balcão, achando aquilo bastante esquisito.

 

–Não. –respondeu Wasser, e indicou o ponto com mais precisão. –Aqui!

 

O garoto apanhou uma lupa e observou o minúsculo objeto vermelho em meio às árvores.

 

–Isso daí é um Ford 350?

 

–É sim. Um Ford 350 com guincho.

 

 

Nas horas seguintes Wasser analisou as fotografias da casa dos Hasses e da casa do noivo de Isabela, mas não teve sorte. A última parada era o banco onde a garota trabalhava. O lugar ainda estava fechado para clientes. O gerente era um homem magro e grisalho de quase sessenta anos. Sua sala era apertada mas bem organizada. Com exceção do vaso de samambaia na janela, tudo ali era branco. Wasser já havia repassado as fitas de segurança sem resultado.

 

–Então o que mais podemos fazer para ajudar? –perguntou o gerente.

 

–Retratos.

 

–A família já levou as coisas de Isabela. Não há mais nada dela aqui.

 

–Eu sei. Estou falando realmente de todos os retratos, que estiverem a mão, de todos os funcionários. Todos que foram tirados neste prédio. E os cartões de memória também.

 

O gerente convocou o pessoal, e, minutos depois, todos já estendiam as fotografias que possuíam sobre uma mesa grande de metal. Wasser as examinou com a velocidade de uma bala. Sabia exatamente o que procurar agora. E encontrou. Era a confirmação. Num retrato onde alguns funcionários comemoravam o aniversário de alguém que ele não soube distinguir, no estacionamento do banco, do outro lado da rua, lá estava ela: a caminhonete vermelha. Erguia-se majestosa entre os carros menores, mas não chamaria a atenção de alguém que não soubesse que o motorista era um assassino psicótico sádico. Além disso, a coisa estava longe demais para que se pudesse identificar qualquer detalhe. Ainda assim, não era todo dia que se via uma caminhonete rural gigante e muito antiga andando por aí. O veículo ainda aparecia em outro retrato, mas era ainda menos nítido que o primeiro.

 

–Tudo bem. –disse Wasser, no tom de voz firme de alguém que não tem muito tempo a perder. Os funcionários se aproximaram. Ele ergueu a foto e apontou o veículo com o dedo. –Quero que prestem atenção nesta caminhonete e me digam se conhecem o dono.

 

–É do homem que matou Isabela? –perguntou uma garota morena de cabelo curto. Estava assustada. Todos ali estavam.

 

–Possivelmente.

 

–Não é um cliente do banco. –afirmou o gerente. –Eu conheceria o carro se fosse.

"É claro que ele não é", pensou Wasser. Depois de tanto trabalho para se ocultar, não daria as fuças em um lugar onde pudesse ser reconhecido. Ele só estava ali para observar.

 

David Wasser agradeceu e partiu. Minutos depois, estendia as fotografias sobre a mesa do delegado.

 

–Uma Ford 350 com guincho... É o carro do assassino. Ele estava seguindo Isabela o tempo todo.

 

–Por quanto tempo?

 

–Dois meses, no mínimo.

 

O delegado apoiou a testa nas mãos. Parecia subitamente cansado.

 

–Ele a estava seguindo, e nós não...

 

–Não é culpa de vocês. É difícil distinguir o perigo antes que algo ruim aconteça. É por isso que eles estão sempre na frente.

 

–De qualquer forma, depois de tanto tempo, finalmente temos algo.

 

O delegado se ergueu de sua cadeira e caminhou até a janela, como se necessitasse de ar puro.

 

–Então não foi um crime de ódio? Não foi passional?

 

–Não. Estamos diante de um criminoso calculista e que sabe se esconder.

–Vou mandar alguém ligar para o DETRAN e fazer um levantamento do modelo para selecionar suspeitos.

 

–Acha que consegue pegá-lo com isso?

 

–Sem a placa, ou ao menos sem o ano do veículo, levará meses.

 

–Talvez eu possa conseguir mais.

 

–Mais?

 

–Estive pensando sobre o caso e sobre a maneira como esse assassino age...

 

–Prossiga!

 

–Não acho que Isabela Hasse tenha sido a primeira vítima. Preciso analisar outros casos.

 

–Acredite, é perda de tempo. A morte de Isabela foi diferente de qualquer assassinato que esta cidade já viu.

 

–E se não for?

 

–Não estou entendendo.

 

–Sua afilhada foi procurada logo depois de desaparecer, por muita gente. Vocês a encontraram naquele casebre, horas depois. Todos presumiram que o assassino estivesse desovando o corpo quando o colocou lá. Mas... E se aquilo não foi um descarte? E se tudo aquilo fosse apenas uma espécie de ritual? E se o descarte do corpo nunca tiver ocorrido justamente porque vocês o encontraram muito rápido?

 

O delegado sentiu uma pontada de dor na fronte esquerda. Seu cérebro estava prestes a fritar.

 

–Desculpe, eu não estou acompanhado você.

 

–Não quero repassar os casos de assassinatos, quero repassar os casos de desaparecimentos.

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