Quarta Parte
Capítulo 28
Na silenciosa sala de provas da delegacia, David Wasser recebeu todo o material que havia pedido, além da ajuda da secretária da polícia. Agora sim a investigação poderia avançar. Quase setenta desaparecimentos em pouco mais de vinte anos: não era uma taxa expressiva, mas, em uma cidade tão pacata, tampouco era um índice tranquilizador. Os dois selecionaram os casos de desaparecimentos envolvendo adultos, depois os que envolviam apenas mulheres e, finalmente, mulheres morenas: a pilha de casos agora tinha pouco mais de trinta pastas. Naquele momento, Wasser já havia percebido que o número dos desaparecimentos envolvendo mulheres morenas era assimetricamente superior aos de todos os outros. Era, evidentemente, a direção correta a se trilhar.
–O que mais? –pergunto a secretária, por trás de seus óculos grossos de aros negros.
–Cabelos encaracolados, olhos castanhos, pele clara...
Em poucos minutos, pouco mais de vinte pastas foram selecionadas. Se passassem um pente fino, poderia haver mais.
–No momento é apenas isso. –afirmou Wasser. –Obrigado pela ajuda!
–Tudo bem. –respondeu a moça, que não escondia o interesse no policial bonitão sem aliança. –Qualquer coisa, estou lá fora.
–Está certo.
–Um café, ou algo para comer? –ainda perguntou a secretária, antes de sair. –Você deve estar faminto.
–Não, estou realmente bem. Obrigado!
A garota saiu tentando esconder o desapontamento. O sujeito nem olhara para ela.
Wasser estendeu a fotografia de Isabela Hasse ao lado das fotografias das outras mulheres e voltou a selecionar. Em poucos minutos, a pilha se resumia a cinco casos. Mas a semelhança física entre aquelas mulheres era notável: não só os cabelos e os olhos, mas também o formato oval dos rostos, os narizes finos e os lábios grossos. Todas eram muito bonitas. Mais do que isso, algumas das mulheres naquela pilha passariam facilmente por irmãs de Isabela Hasse. Era coincidência demais.
Então era isso, ele as escolhia pela aparência. A idade aparentemente não contava muito, já que algumas ainda nem haviam chegado aos dezoito anos e outras já eram mulheres com a vida familiar e profissional resolvida. Wasser separou os casos: uma diferença de pouco mais de oito anos de intervalo entre o primeiro e o último deles. Dois anos desde o último.
Cinco prováveis vítimas. A primeira delas se chamava Elisa Mayer. De todas as quatro, foi a primeira a ser procurada após o desaparecimento, ainda assim, houve um intervalo de mais de vinte horas até a polícia ser contatada. Wasser não encontrou nada na casa da mulher. A mãe era uma criatura destruída e viciada em remédios, então ele a poupou dos detalhes.
Já a segunda mulher não tinha família na cidade, o que dificultou a busca. Ainda assim, a câmera de segurança da portaria do condomínio no qual ela morava captou a imagem da caminhonete vermelha estacionada em um dos pátios, como se fosse um objeto inofensivo. Mas era só: sem placa ou qualquer outro detalhe. A terceira mulher desaparecida era uma vendedora que teve de parar algumas semanas na cidade graças a um defeito grave no carro. O hotel só se dera conta do desaparecimento da mulher quase dois dias depois. Não havia qualquer pista.
A quarta mulher desaparecida se chamava Marina Schiller. Mal chegara à cidade e desaparecera sem deixar rastros. Era órfã e vivia sozinha em um pequenino hotel na periferia, um aglomerado de pequenos blocos de madeira com um banheiro coletivo, que fazia divisa com as árvores da floresta. De todas as mulheres, aquela certamente seria a mais fácil de raptar. Aquele lugar certamente não era seguro.
David Wasser estacionou o carro em uma das vagas pintadas no concreto e entrou no que supôs ser o escritório. A noite começava a cair. A temperatura já havia despencado uns seis graus. No lado de dentro, uma mulher negra na casa dos setenta anos levantou os olhos quando ele entrou e lhe lançou um olhar de cima a baixo.
–Pois não, senhor? –perguntou ela, de trás do balcão.
Wasser ergueu a identificação.
–Logo percebi... –afirmou a mulher.
–Não entendi.
–Está bem vestido demais para ser um cliente daqui. O preço é bom, mas é um lugar para quem está desesperado ou começando a vida. Tudo aqui é um lixo.
Wasser sorriu com a sinceridade da mulher. Ela ajudaria, ele tinha certeza.
–Entendi. A senhora é a dona deste lugar?
–Deus me livre! Isso aqui está caindo aos pedaços. Sou apenas uma velha aposentada que precisa completar a renda. O dono não aparece aqui há séculos. Enfim... No que posso ajudá-lo, policial?
–É sobre a garota que desapareceu, três anos atrás.
–Agora? Por que se preocupar com ela agora?
–Achamos que temos algo que pode ajudar a encontrá-la. A senhora a conheceu?
–Ah, sim. Morou no quarto vinte e um por dois meses. Era uma menina muito boa: trabalhadora, quietinha, esforçada. Trabalhava de sol a sol de diarista em várias casas e em vários hotéis. Pagava sempre em dia. Era diferente da maioria dos outros hóspedes, a maior parte deles têm problemas com drogas.
–Ela tinha algum namorado? Talvez alguma amiga?
–Não, realmente não. Como eu disse, ela era muito reservada, e era nova na cidade.
–E a senhora sabe quem prestou queixa do desaparecimento?
–Eu mesma liguei para a polícia.
–Por que achou que ela havia desaparecido?
–Bom, em primeiro lugar, ninguém se muda sem levar as coisas que trouxe. Ela deixou tudo: roupas, roupa de cama, sapatos e até as calcinhas. Foi muito estranho.
–E, em segundo lugar? –perguntou Wasser.
–Em segundo lugar, havia o carro.
–Carro?
–Eu contei à polícia na época. Era um carro vermelho e velho, desses bem grandes. O motorista estava vigiando a pobre menina, tenho certeza.
–Como a senhora sabe disso?
–Bem, em alguns dias, ele surgia na boca da noite e observava de longe. Só uma vez ele se aproximou um pouco mais. No início, eu achei que era algum traficante, então fiquei quieta. Alguns deles são perigosos. Mas então percebi que ele só aparecia nos horários em que a garota estava no quarto. Algumas vezes, só havia nós duas aqui.
–E a senhora marcou a placa, na época?
–Não. Sinto muito! Foi só quando a garota desapareceu e o carro não apareceu mais que eu associei as duas coisas. Uma semana se passou até eu perceber a coisa toda, aí avisei a polícia. Eu me senti muito culpada. Na época, os policiais perguntaram se eu reconhecia a marca do carro, o modelo e coisas do tipo, mas eu sou péssima com carros. Eles disseram que era muito vago. Eu sei que eles tinham razão. Mas a polícia não fez muito esforço na época. As pessoas vivem partindo do dia para a noite para não pagar a conta. Isso acontece muito neste lugar. Mas com aquela garota foi diferente, eu tenho certeza. Algo muito ruim aconteceu com ela. Se eu ao menos visse aquele carro novamente...
Wasser estendeu o retrato sobre o balcão.
–Esse?
Os olhos da mulher vibraram sobre o papel, como se a imagem na folha pudesse feri-la.
–Esse! Com certeza, era esse carro!
A quinta mulher desaparecida sumira poucos meses depois da garota no hotel. Seu nome era Tereza Hausenback. De todas, era a que menos se parecia fisicamente com as demais, mas ainda assim a semelhança impressionava. Tinha quase quarenta anos quando desaparecera e deixara para trás o marido e um filho pequeno.
David Wasser chegou a casa da família. Era uma casa branca e bonita de dois andares, traços retos, telhado oculto e um jardim bem cuidado. Wasser parou diante da cerca de vidro e tocou o interfone. Do portão, pode visualizar a câmera de segurança na entrada da garagem.
Emilio Hausenback, o marido da mulher desaparecida, era um sujeito moreno, ligeiramente acima do peso, de ombros largos, costas retas e cabelos negros raspados à máquina. Junto à babá, um menino de cinco anos brincava com algumas peças de montar. Estavam em uma parte distante da sala, destinada, ao que parecia, exclusivamente àquela função. Era uma sala grande, espaçosa, como tudo naquela casa. Ainda assim, não eram ricos, Wasser podia perceber, embora chegassem bem perto.
–Então. –disse o homem. –Fiquei surpreso.
–É compreensível.
–Por que agora? Minha esposa deu notícias?
O homem parecia certo que a esposa estava viva, não apenas pela pergunta, mas também pelo jeito de falar. Wasser ficou confuso.
–Não posso dar muitos detalhes, Sr. Hausenback, mas faz parte de um caso que eu estou investigando. Gostaria de ver os retratos tirados nesta casa pouco antes de a sua esposa desaparecer. Todos eles: fotos impressas, digitais, cartões de memória.
–E não pode dizer o motivo?
–No momento, é melhor não.
O homem deu de ombros. Voltou minutos depois com o que encontrara.
–São apenas estas? –perguntou Wasser, depois de analisar o que havia.
–Sim. –respondeu o homem. Parecia um pouco incomodado com as perguntas. –O que mais posso fazer?
–Percebi que você tem uma câmera de segurança, na entrada da garagem.
–Tenho sim.
–A câmera já estava ali na época?
–Já.
–Costuma guardar as gravações?
–Tenho algumas em DVDS, depois comprei um HD. Tem bem mais espaço. –respondeu o homem, sem muita vontade.
–Senhor, pode não parecer, mas isso é importante. Tem alguma gravação da época em que sua esposa desapareceu?
–Não tenho certeza. –respondeu o homem. –Posso olhar, se você insiste.
–Por favor, faça isso!
O homem abriu uma gaveta da estante da sala. Havia dois porta-DVDS ali. Ele puxou um dos discos.
–Esse é da época, ou próximo. A qualidade não está muito boa. A resolução é baixa para economizar espaço.
–Tudo bem. Eu vou checar. –afirmou Wasser, enquanto plugava o disco na TV da sala.
O homem estendeu o controle ao policial e se afastou, acomodando-se no que parecia ser uma mesa de trabalho. Wasser avançou a gravação o mais rápido que pode e conferiu a data, em letras brancas, no topo direito da tela. O vídeo, no início, era de pouco mais de duas semanas antes do desaparecimento da mulher.
–Em que você trabalha, Sr. Hausenback? –perguntou Wasser, sem tirar os olhos da tela.
O homem folheava o jornal, no sofá oposto.
–Sou arquiteto.
–Sua esposa era médica?
–Sim.
–Trabalhava no hospital?
–Exatamente.
–Tinha algum outro trabalho?
–Não que eu soubesse. Mas eu não sabia muita coisa sobre minha esposa.
Wasser acompanhava a data no vídeo: um dia antes do desaparecimento da mulher, e as imagens continuavam avançando com velocidade. A sorte estava colaborando.
–O boletim de ocorrência foi feito apenas duas semanas depois do desaparecimento de sua esposa. –afirmou Wasser. –Por que demorou tanto para contatar a polícia?
–Eu não os contatei. A família dela que o fez.
–E por que o senhor não o fez?
Mesmo sem tirar os olhos da televisão, Wasser sabia que aquela era a pergunta que o homem estava evitando. O dono da casa se contorceu no sofá. Parecia mais incomodado agora.
–Porque minha esposa não desapareceu.
–Não entendi.
–Deixe-me ser mais claro: minha esposa estava me traindo com outro homem. Estava me abandonando. Ela mesma me contou alguns dias antes de ir embora. Disse que nosso casamento estava acabado.
–Você sabe quem era o outro homem?
–Não. Ela não me disse. Mas dias depois, ela sumiu. Foi a última noite em que a vi. E ela não levou nada, acredita nisso. Nem as malas. Como se quisesse realmente nos apagar de sua memória.
Wasser pausou o aparelho e observou a face do dono da casa. Havia uma confusão de emoções.
–Enfim, policial, minha esposa não desapareceu. Ela fugiu com outro homem. Ela nos abandonou.
O homem fez uma pausa. Gotas de suor pingavam de sua testa. Agora ele não parecia mais incomodado, parecia triste. Uma tristeza antiga e pouco cicatrizada. Mas ele ficaria mais triste quando soubesse a verdade.
–Sabe, se fosse apenas eu, se ela tivesse abandonado apenas a mim, eu não me importaria. Eu juro que não me importaria. Mas ele...
O homem apontou para o menino, que estava agora prestes a cochilar. A cabeça ia e voltava, enquanto a babá guardava os brinquedos em uma grande caixa de papelão.
–Ele tinha apenas dois anos na época. Pode imaginar, policial, o que é ver seu filhinho perguntando pela mãe dia e noite, durante anos. Às vezes, ele ainda se lembra dela. Ele está crescendo, e eu já não sei como mentir. Como ela pôde fazer isso a ele?
–Não fez. –afirmou Wasser.
–O quê? –perguntou o homem, confuso.
–Sr. Hausenback, eu estava disposto a não revelar o motivo da minha visita, mas acho que merece a verdade.
O homem estava prestando mais atenção agora.
–Estou investigando o assassinato de uma garota meses atrás.
–Eu lembro daquilo. –afirmou o homem. –Foi horrível!
–Sabemos agora que aquela morte não foi isolada. Há um maníaco à solta que está torturando e matando mulheres. Não sabemos ainda quantas nem há quanto tempo, mas eu poderia arriscar que há dez anos, pelo menos.
–Tudo bem, mas o que...
–O assassino é alguém difícil de localizar. Não sabemos ainda quem ele é. Só reconhecemos, até agora, o carro que ele dirige, uma caminhonete vermelha muito grande e bastante antiga com um guincho na carroceria.
Wasser apontou para a tela congelada da televisão, na qual a imagem de uma caminhonete vibrava, e concluiu:
–Aquela caminhonete.
O homem levou as mãos à testa. A confusão em seu rosto se transformou no início de uma crise nervosa. Ele chegou muito perto de chorar, mas se controlou, não sem muita dificuldade.
–Está dizendo que minha esposa... Ela...
–Sua esposa está morta agora. Estou quase certo disso. Sinto muito!
A babá percebeu que a situação na sala estava ficando tensa e carregou o menino para o quarto. Os olhos do homem vibravam sobre a tela da televisão. Havia pânico neles. Wasser voltou o filme e, em seguida, deixou que a imagem seguisse. Agora, era possível ver o sedan longo de Tereza Hausenback deixando a garagem. A caminhonete, que permanecia parada a certa distância, ligou o motor segundos depois e partiu.
–O homem no carro...? –perguntou Emílio Hausenback, apontando para o vulto atrás dos vidros escuros. Era um homem muito grande.
–É o assassino.
–Eu não entendo. Eu não entendo. Ela me disse que tinha outro homem.
–Eu não sei quem era o homem com quem sua esposa estava envolvida, se é que havia mesmo outro homem. Tudo o que sei é que sua esposa não fugiu. Ela deve estar morta agora.
O homem sacudiu a cabeça. Seu corpo tremia.
–Como eu poderia saber? Como eu poderia saber? Esse tempo todo, e a gravação estava bem ali.
–Tudo bem, Sr. Hausenback, quero que preste atenção em mim agora. Faça um esforço!
O homem encarou o rosto do policial como se olhasse para uma paisagem muito distante.
–A culpa disso tudo não foi sua. Mas, se tivesse avisado à polícia na época, assim que sua esposa desapareceu, haveria uma pequena chance de ela ainda estar viva. Mais do que isso, a garota que foi morta nove meses atrás também poderia estar viva.
O homem esfregou os olhos e estapeou a própria cabeça com força. Wasser sentiu pena dele.
–Eu sou um idiota! Eu sou um idiota!
–Acalme-se, agora!
Wasser chamou a babá, que acabava de chegar à sala.
–Leve ele até o quarto e o faça deitar um pouco, tudo bem? Arranje um copo de água com açúcar e chame algum parente, se ele tiver algum na cidade.
–Tudo bem. –disse a garota, assustada depois de perceber o estado do patrão.
–Mais uma coisa, Sr. Hausenback, vou precisar da gravação.
–Pode levar. –disse o homem, enquanto deixava a sala na companhia da garota. –Não precisa devolver.
Wasser os observou até que eles desapareceram nas sombras do corredor. Quando já estava sozinho na sala, voltou a imagem até o ponto em que o carro da vítima deixava a garagem, então pausou a imagem. O veículo colossal era apenas um borrão à distância. O vídeo avançou. A caminhonete se aproximou e fez um ligeiro movimento de zig-zag enquanto dobrava a rua. Parecia despropositado à primeira vista, mas não era. O sujeito estava protegendo a placa do veículo das câmeras, sabia que elas estavam ali. Não era à toa que nenhuma das imagens haviam conseguido captar a placa ou qualquer detalhe do veículo. Não era apenas falta de sorte. O sujeito era esperto e escorregadio, apesar da mente perturbada.
Seria preciso mais... Wasser checou novamente todas as imagens nas quais a caminhonete velha aparecia e as distribuiu em ordem cronológica no quadro da sala de investigação da delegacia. O veículo aparecia oito vezes, em várias cenas ligadas a pelo menos três desaparecimentos. Isso sem contar o assassinato de Isabela e o testemunho da recepcionista do hotelzinho barato. Aquela altura, não havia mais dúvidas: aquele era o carro do assassino. O sujeito certamente não andava por todos os lados com uma caminhonete daquele tamanho todos os dias. Por isso ninguém era capaz de reconhecer o veículo. O assassino tinha ao menos mais um automóvel, e seria certamente um veículo bastante comum. Ou talvez andasse de ônibus ou mesmo caminhasse para o trabalho todos os dias. De qualquer modo, a caminhonete era exclusiva para as atividades de perseguição e vigília, ou quaisquer outras atividades que aqueles crimes demandassem. O sujeito seria esperto demais para ser visto nela em seu dia a dia.
Por outro lado, porém, havia certamente algo naquele carro que o poderia ligar ao assassino, ainda que indiretamente. Talvez fosse o carro de alguma empresa falida, ao menos era isso que o guincho parecia indicar, ou talvez pertencesse a algum parente morto. O fato é que o sujeito não queria deixar pistas. Em resumo, era isso: alguma ligação palpável, mas indireta. Por isso ele havia escolhido aquele carro, ao passo que insistia em ocultá-lo.
Mas o que mais impressionava em tudo aquilo era a forma como o assassino fora capaz de ocultar o carro. Wasser analisou mais uma vez a filmagem da casa de Tereza Hausenback, depois as duas filmagens que ele havia descoberto em um condomínio e mesmo no caixa eletrônico de uma agência bancária. O carro sempre permanecia a distância e, quando por questão de logística, a aproximação era essencial, uma manobra precisa ocultava a placa ou qualquer detalhe do interior do automóvel das câmeras. Parecia quase automático, à primeira vista, mas não: aquilo demandava planejamento e estratégia. O mesmo valia para as fotografias, tanto a descoberta no banco onde Isabela trabalhava quanto as que envolviam os demais casos. Não era sorte. Contar com a sorte contra aquele sujeito seria despropositado. Ele sabia o que estava fazendo. Wasser segurou a fotografia que havia descoberto com o velho casal, na casa bonita no topo daquele morro. Mais uma vez, nenhum sinal da placa ou de qualquer detalhe. Seria sorte do assassino? Ele mesmo só havia descoberto aquela fotografia por acaso. Wasser ponderou: não, novamente não era sorte. O assassino havia colocado aquela casa e sabe Deus o que mais nos seus planos, havia calculado tudo.
O assassino era inteligente: um tipo estranho e raro de inteligência. Ele já havia se deparado com assassinos mais inteligentes, era verdade, mas nunca com um tão metódico. Um psicopata organizado, capaz de gastar meses elaborando seus planos, mas com distúrbios psicóticos. Uma combinação rara e perigosa. Os pensamentos desconexos eram compensados por um acurado senso matemático. Devia ser o tipo de pessoa ótima em geometria e aritmética, mas péssima em poesia: Pitágoras mais que Dante. Apesar disso, as mortes tinham um claro teor religioso: uma religião distorcida e que só existia em sua cabeça, é claro, mas ainda assim uma religião. Isso indicava que o assassino se considerava um sacerdote ou algo do tipo.
Wasser sabia: só havia uma maneira de pegar um assassino como aquele. Era preciso encontrar seus erros, e seriam poucos. Um psicopata psicótico... Pessoas assim tendiam a apresentar longos quadros de distúrbio maníaco-depressivo e surtos violentos de bipolaridade. O sujeito devia perder a cabeça com frequência. Mesmo com uma incrível capacidade de autocontrole, em algum momento aquela fúria toda deveria ter explodido. Ele havia investigado os crimes que deram certo: assassinatos violentos disfarçados de inofensivos desaparecimentos. Deviam haver outros ao longo de todos aqueles anos: os crimes que não deram certo. Era preciso encontrá-los.
Capítulo 29
Era uma agradável manhã de primavera, clara e fresca. O céu revelava seu azul mais sereno, salpicado por pequeninas nuvens brancas que pareciam ter sido pintadas à mão. Fazendas e plantações surgiam dos dois lados da longa estrada de terra. Por toda parte, árvores que decoravam o caminho com suas folhas esvoaçantes, estendendo pelo chão um verdadeiro tapete de cores vivas e perfume acre. Em pontos isolados, um ou outro rebanho podia ser avistado. Havia gado também, mas as ovelhas se destacavam, verdadeiros exércitos felpudos deslizando pelas grandes pastagens como chumaços de algodão com pernas, respingando de branco o cenário verde e quebrando o silêncio da estrada com seus balidos esganiçados. Havia algo de gracioso em suas carinhas desconfiadas, mas também algo de muito macabro.
As rodas da carroça velha cantavam. À frente, dois cavalos crioulos baixos mas incrivelmente fortes puxavam a geringonça de madeira e o homem sobre ela. Era um jovem de vinte e tantos anos, loiro, magro, de corpo alto e um tanto desengonçado, temperamento visivelmente dócil e olhar estrábico. Vestia um terno negro bem ajustado, sapatos bem engraxados e um casaco de lã bastante grosso para se proteger do ar gelado. Seus óculos eram redondos e espessos. Tão espessos que seus olhos, por trás do vidro, pareciam esbugalhados. A única coisa que identificava o homem como um padre era a gola clerical. Se bem que um olhar mais atento encontraria uma bíblia grande e pesada no fundo do banco e um rosário sobre ela.
O caminho era extenso, e ele o percorrera por semanas, sempre atravessando o mesmo cenário deserto e uma ou outra cidadezinha. Poderia fazer o trajeto de trem ou mesmo de ônibus, mas ele se recusou a abandonar seus animais, companheiros de tantos anos. Poderia tê-los doado a alguma fazenda, mas queria se certificar de que seriam bem tratados, por isso trouxera-os consigo. Agora, a romaria estava muito perto de terminar. Ao fim de mais um dia de viagem, estaria acabado.
Ele passou uma merecida noite de descanso em um hotelzinho à beira da estrada, tomou seu café com bolo de milho e ovos mexidos e partiu às cinco da manhã, antes do canto dos primeiros galos. Agora, quatro horas mais tarde, aproximava-se já da reta final. Alguns quilômetros à frente, era possível visualizar a majestosa serra que teria de subir até o final do dia, um paredão rochoso que, visto à distância, assombrava e arrancava assobios dos passantes. Depois de uma última parada e um almoço rápido, ele seguiu viagem. Não antes de pagar a conta e ouvir de um caminhoneiro bêbado o antigo questionamento sobre quantos deuses havia na trindade.
Às duas da tarde, o jovem padre já chegava ao pé da serra. Ali, as fazendas davam lugar à mata fechada, mais verde e mais escura que a vegetação esporádica que encontrara pelo caminho, também mais sinistra. As árvores, a partir daquele trecho, ficavam mais altas, mais tortas e exibiam formas assimétricas. Algumas vezes, traziam à lembrança a imagem de algo conhecido: uma delas até lembrava uma velha corcunda de chapéu. A estrada, em si, não era exatamente íngreme, só ligeiramente inclinada, mas era estreita e muito longa. Do lado esquerdo, a mata, após algumas centenas de metros, fazia fronteira com o altíssimo paredão rochoso, que parecia prestes a desabar sobre os transeuntes como uma parede de tijolos sobre um bando de formiguinhas; do lado direito, por sorte, as árvores da encosta cobriam a visão do precipício, já bastante alto naquele ponto, apesar de se tratar apenas do início da subida. Ao longe, o tempo mudava: nuvens espessas se aglomeravam rapidamente, e relâmpagos tremeluziam no horizonte. Na estrada, porém, o sol ainda iluminava o caminho e pássaros distraídos alegravam a caminhada.
Foi naquele momento que ele encontrou o outro padre. Aquele era um homem alto, esguio mas visivelmente robusto, dono de ombros largos, cabelos loiros amarelados, olhos azuis muito claros e um rosto quadrado e forte. Sua postura era firme, como a de um militar, e seus passos pareciam pesados. Mas caminhava com tranquilidade, como alguém que não confere os ponteiros do relógio há um bom tempo. Não tinha muita pressa, ao que parecia. Vestia a tradicional batina negra e nem um casaco sobre os ombros, o que parecia muito pouco em um dia tão frio, ainda mais naquele lugar alto e úmido.
–Bom dia, padre! –cumprimentou o dono da carroça, com um aceno.
–Bom dia! –respondeu o andarilho.
–Está indo para o Mosteiro do Sagrado Coração?
–Sim. É a única coisa nas redondezas.
–Quer uma carona?
–Claro. Meus pés estão me matando.
O andarilho embarcou. O dono da carroça estendeu uma mão de dedos longos e finos.
–Saimon Becker... –disse ele.
O outro respondeu com um aperto firme.
–Daniel Wolg. É um prazer encontrá-lo por aqui, padre!
–O prazer é todo meu.
Os cavalos voltaram a acelerar. Os dois homens ficaram em silêncio por alguns quilômetros. Era difícil encontrar assunto para debater com um recém-conhecido, mesmo alguém com as mesmas crenças. Agora, pelo caminho, os pássaros começavam a se alvoroçar, enquanto as árvores sacudiam suas copas com mais vontade. Mas ainda era apenas um pequeno prelúdio da tempestade que se aproximava.
–Parece que o tempo está trocando. –disse o dono da carroça.
O tempo era sempre um bom assunto para começar uma conversa. Deu certo.
–É verdade. –respondeu o outro. –O tempo é sempre meio louco por estas bandas. Você é novo por aqui, não é verdade?
–Sim, eu sou.
Os cavalos diminuíram ainda mais o ritmo quando a subida ficou mais severa. Pareciam já cansados pela dificuldade da estrada cheia de cascalhos.
–E você, padre? –perguntou o dono da carroça. –Mora por aqui?
–Sempre fui um filho do lugar. Minha família está na região há um bom tempo. É uma terra velha.
–Eu ouvi dizer.
–Mas me conte um pouco de você. –pediu o andarilho. –De onde vem?
–Sou de fora do estado. Fui transferido para o mosteiro. Vou lecionar para os mais jovens.
–Então, é professor?
–Sim. Leciono filosofia, literatura e gramática. Mas resolvi me dedicar à teologia.
–Interessante. E deixou tudo para trás: família, amigos? É uma escolha corajosa.
–Na verdade, não. Não tenho família. Meus pais morreram quando eu era muito pequeno, e minha irmã mais velha faleceu há alguns anos, de câncer. Era a única pessoa que me restava. Eu não tinha mais ninguém em minha terra natal.
–Sempre temos nossos amigos.
–Eu não tinha ninguém. Ninguém, de verdade.
–E os fiéis de sua igreja?
–Eu não rezava muitas missas lá. Nunca comandei uma paróquia. Dei aulas em seminários algumas vezes, mas nunca criei raízes. Então, quando soube da vaga para professor nesse mosteiro, eu me candidatei.
–É uma boa escolha. Sabe, os jovens...
–Exato! –disse o dono da carroça. Havia vontade e admiração em seu rosto. –Sempre achei que podemos ensinar algo útil a eles. Ensiná-los a viver.
–É verdade. –exclamou o andarilho, com uma ponta de revolta em sua voz. –Eles precisam aprender.
A frase soou estranha para o dono da carroça, ambígua, mas ele acabou ignorando. Havia também algo de estranho na voz do homem que ele encontrara na estrada, uma pausa estranha entre as palavras. Era algo sutil, mas perceptível, como naquele filme recém-lançado do sujeito fortão que parecia um homem mas era na verdade um robô. O filme era de apavorar. Mas algo no padre andarilho também incomodava
.
–Você também faz parte do mosteiro, padre? --perguntou o dono da carroça.
–Não, mas estudei lá durante toda minha adolescência.
–E agora, o que você faz?
–Sou padre de uma paróquia, três cidades à frente.
–É um grande dom, pastorear as ovelhas de nosso senhor.
–É verdade.
Havia algo realmente estranho naquilo. Um padre de uma paróquia não muito próxima, subindo uma montanha daquelas a pé. Deveria haver um motivo para aquilo.
–E o que vai fazer no mosteiro, se não se importa que eu pergunte.
–Não, de forma alguma. Vou visitar alguém que estuda lá. Meu filho, na verdade.
–Filho? –perguntou o dono da carroça, surpreso. –Então já foi casado?
–Sim. Mas foi há muito tempo. Meu filho também resolveu trilhar a estrada da fé.
–E sua antiga esposa?
–Ela... Está morta.
–Sinto muito! Você tem outros filhos?
–Não. Somos apenas eu e ele no mundo agora.
–Ao menos você tem alguém.
–É verdade. Mas acho que meu filho não ficará muito contente em me ver. Nós andamos meio afastados nos últimos anos.
–É uma pena! Mas tenho certeza que dará tudo certo.
Sobre a estrada, caíam os primeiros pingos, mas ao longe, na direção oposta à tempestade, raios de sol iluminavam a bela imagem do topo da serra e do mosteiro sobre ela.
–Veja! –disse o andarilho, enquanto apontava para a bela construção no alto do monte. –O mosteiro... É lindo, tanto de longe quanto de perto.
De fato, era uma bela vista: as árvores, o riacho que cortava o morro, a construção que se erguia sobre a montanha como se fosse parte dela e as pedras escuras da fachada contrastando com o azul do céu. Ainda tinham muito a subir para alcançar o topo e mais alguns quilômetros para chegar ao destino.
Gotas mais pesadas caíram repentinamente sobre a estrada, mas o dono da carroça permanecia concentrado na imagem e não dera atenção ao fato. Não percebera, também, que os cavalos chegavam a uma depressão acentuada, a única naquela estrada, e desciam com mais velocidade agora, arrastando a carroça com eles.
Houve uma pancada forte, e o barulho de madeira se partindo soou alto no monte. O dono da carroça levou um susto e soltou uma praga. O andarilho não parecia preocupado. Na verdade, parecia ter previsto o infortúnio, embora seus olhos também estivessem concentrados no mosteiro.
Uma pedra, de uns trinta quilos, bem no meio da estrada. Uma das rodas passara sobre ela. Os cavalos não conseguiram mais sair do lugar, apesar do esforço: bufaram com vontade, e um deles arranhou o chão com os cascos. Era o sinal para o descanso. O dono da carroça saltou, preocupado. O outro o acompanhou.
–Essa não! –disse o proprietário da carroça, depois de levar as mãos à cabeça. –É um desastre. Nunca mais vamos sair daqui.
–Não é tão ruim assim. –respondeu o outro.
–Tem certeza?
–Você tem martelo e pregos?
–Sim. Debaixo do banco. Tenho um serrote também e um machado.
–Pode deixar comigo. –determinou o andarilho, antes de desaparecer na mata. Voltou, minutos depois, trazendo uma tora longa e fina de madeira, que cortou em duas com a machadinha. Em poucos minutos, o serrote, guiado pelas mãos hábeis do padre, transformou as duas metades da tora em uma peça curta e reta e outra longa e curvada. O dono da carroça olhou para tudo embasbacado.
–Você é muito bom nisso. –exclamou ele, contente.
–Obrigado! Herdei o ofício de meu pai.
–Então, seu pai era marceneiro?
–Sim. E criador de ovelhas também. Todos na região são.
–Isso é ótimo! –bradou o dono da carroça. –Que coincidência você estar aqui! –disse ele, por fim, mal se dando conta do perigo que havia naquelas palavras. Só o que importava agora era chegar de uma vez ao topo do monte e tomar um banho quente para espantar o frio. O andarilho coçou o queixo enquanto pensava em uma maneira de adaptar as novas peças. Havia outra tora, mais curta e bem mais grossa, a poucos metros da estrada. Ele a apanhou e voltou para a carroça.
–Preciso da sua ajuda agora.
–Certo, é só dizer.
–Sou mais forte que você. Quando eu levantar a carroça, você coloca esta tora em pé debaixo dela.
O dono da carroça duvidou que o homem sozinho conseguisse erguer algo tão pesado, mas ele se enganou.
–Rápido. –grunhiu o outro, entre dentes, e suspirou quando soltou a geringonça.
Então a chuva chegou, uma pancada forte acompanhada por uma rajada de vento que quase desequilibrou o dono da carroça. A tempestade os encharcou em segundos. Parecia uma cachoeira. Do chão, ergueu-se uma camada grossa de pó, que se dissolveu em seguida, para então se transformar em lodo. Os pássaros partiram com pressa e reclamaram alto. No chão, o espelho d’água que já escorria da parte alta da estrada engrossou. As árvores agora se sacudiam com muita força.
O dono da carroça parecia preocupado com o tempo, principalmente com os raios que rasgavam o céu com toda a fúria divina. O andarilho, ao contrário, parecia nem estar ali. Sem se importar com a chuva, arrancou a roda da carroça, cortou a parte quebrada – mais ou menos um terço – e adaptou as duas novas peças para recuperar o raio. O resultado era uma roda híbrida, com um remendo de madeira clara e nova contrastando com a escura e velha, mas que parecia tão capaz de rodar quanto antes. Tudo não durara mais que dez minutos, como se o homem já soubesse exatamente o que fazer antes mesmo de começar.
–Agora vamos erguer novamente, para tirar o tronco, e então podemos ir. –ordenou ele.
Foi um trabalho conjunto daquela vez. O dono da carroça fez um esforço tremendo, como se o outro não tivesse colocado um só dedo de força, mas a tora fora enfim removida. Os cavalos se sacudiam para se secar, mas seria um trabalho inútil enquanto a chuva não parasse. O dono da carroça se curvou, sem fôlego. Aproveitou para tentar secar os óculos no casaco, mas suas roupas estavam mais molhadas que as lentes.
–Deixa comigo. –disse o andarilho, cordialmente, e retirou um lenço do bolso da batina.
O dono da carroça lhe entregou seus óculos. Ficava difícil enxergar sem eles: as formas se dissolviam e se mesclavam em um grande borrão acinzentado com contornos dourados e brancos. A chuva só dificultava as coisas. Mas, ali, curvado, o dono da carroça teve a primeira oportunidade real de refletir sobre tudo aquilo. Havia algo errado, certamente. Como o padre recém-conhecido havia conseguido arrancar o primeiro tronco se não levara o serrote ou o machado. Além disso, a velocidade com a qual o conserto fora efetuado era anormal, como um plano que é repassado mentalmente tantas vezes que sua execução se torna automática.
–Eu não entendo... –disse o dono da carroça, ainda ofegante. Não estava acostumado com exercícios. –O paredão fica longe da estrada. Como uma pedra daquele tamanho foi parar ali?
–Eu a coloquei ali. –respondeu o andarilho.
Claro! Agora parecia óbvio: a coisa toda não passara de um teatro. Mas qual a razão daquilo tudo? O dono da carroça ergueu a cabeça para observar o outro padre. Não conseguia distinguir as formas do rosto do homem, por mais que cerrasse os próprios olhos. Só o que conseguiu enxergar foram os contornos da face do homem estranho, na qual agora repousava um par de olhos brilhantes. Eram seus óculos na cara do outro. Aquele efeito engraçado do vidro grosso já havia assustado muita gente, principalmente no escuro. Ele sempre achara cômica a forma como as pessoas se assustam por pouca coisa, mas teve de reconhecer que o homem, daquele jeito, ficava realmente assustador. Enfim, o padre tomara posse de seus óculos. Por que razão faria isso?
—O que disse? –perguntou o dono da carroça, tentando ignorar a frase anterior.
—Eu disse que fui eu que coloquei a pedra ali. –repetiu o padre andarilho, com muita calma. Seria realmente um padre?
O coração do dono da carroça disparou. Havia perigo na voz do homem estranho. Um perigo frio e pegajoso, como o limo que permanece grudado nas pedras de um córrego durante anos. Mas era uma sensação incrivelmente intensa, quase pulsante.
—E por que você faria algo assim? –perguntou o dono da carroça.
–Porque eu preciso do seu nome. –respondeu o andarilho.
–O quê?
Aquilo era realmente incomum, pensou o padre Becker. Fez um último esforço para tentar enxergar a face do sujeito forte a sua frente, mas foi em vão. Percebeu, porém, que o estranho segurava algo na mão direita. Era o martelo.
A dor foi dilacerante. Além disso, era estranho ouvir os ossos de sua própria face se quebrando. Tudo a sua volta girou. Ele agora podia ver uma parede cor de chumbo muitos e muitos metros a sua à frente. Era o céu. Ele estava no chão. Devia ter apagado por alguns segundos, talvez um pouco mais.
Não havia muito que fazer. O vulto sem rosto ergueu novamente o martelo e bateu. E outra vez, e mais uma... A cada batida, a dor parecia menor, mas a sensação de morrer era mais desagradável que a dor, uma escuridão fria que o envolvia lentamente, como se estivesse afundando em areia movediça. Ele já não podia se mover, mesmo o menor dos movimentos. Depois, veio a sensação de ser arrastado pelo chão. Pior que tudo isso, foi a terra cobrindo seus olhos, seu corpo. A falta de ar foi ainda mais desagradável. Mas o que mais o apavorou foi estar sozinho, no escuro, debaixo da terra, e saber que ficaria ali para sempre. Ele detestava a solidão. Era o pior dos infernos.
Algumas horas depois, a carroça de madeira cortava o topo da serra rumo ao mosteiro. A tempestade havia se dissipado, embora algumas nuvens pesadas e escuras ainda escorregassem pelo céu, não muito longe dali. O sol ressurgia tímido. O caminho, no topo do monte, era todo de pedra, uma estrada dura e lisa repleta de saliências pontiagudas. Os cavalos reclamaram. Reclamaram também da ausência do antigo dono, que sempre fora um homem gentil. O novo dono era cruel demais.
No outro dia, pela manhã, o abade do mosteiro, um homem gentil de meia idade, dono de olhos azuis tranquilos e de uma cara redonda e vermelha, apresentava o novo professor de filosofia e gramática à turma da oitava série. O recém-chegado apavorou a maioria e fez o sangue de alguns congelar. Havia algo de cômico em seus olhos esbugalhados, era verdade, mas a aparência geral era de um sadismo paralisante, sadismo que apenas os adolescentes, sádicos por natureza, eram capazes de distinguir. O homem retirou os óculos e olhou em volta. Parecia enxergar melhor sem eles, por alguma razão. No meio de tantos pirralhos estranhos, ele encontrou o único rosto conhecido.
–Crianças, quero que conheçam o novo professor de filosofia. –disse o abade, sorridente, enquanto dava tapinhas leves no ombro do recém-chegado. –Este é o padre Saimon Becker. Quero que o respeitem!
Nem seria preciso pedir. Os garotos estavam assustados. Mas um deles estava mais assustado que os outros, tão assustado que suas mãos tremiam convulsivamente debaixo da carteira. Aquele homem era um fantasma.
–Muito obrigado, padre. –disse o recém-chegado, e sua voz carregava mais perigo que seu rosto. –Será um prazer lecionar para homens tão jovens. Eles têm muito que aprender!
Capítulo 30
Wasser apanhou todas as caixas contendo as pastas dos casos arquivados ou não resolvidos e passou a analisar os crimes um a um. Eram mais de cinquenta caixas, e aquilo levaria um bom tempo. Ele deixou seus olhos correrem pelas páginas impressas, enquanto os ponteiros do relógio escorregavam: dez, onze, doze caixas, mais de cem arquivos, e nada. O sol se pôs do lado de fora, os ponteiros do relógio continuavam incansáveis, e nada. Nem um só indício.
Quando deu por si, Wasser percebeu que já passava da meia-noite. Ele apanhou algumas dezenas daquelas caixas e voltou para o quarto de hotel, não sem antes conseguir um hambúrguer e uma garrafa de conhaque. Duas horas e três copos depois, e ali estava ele, apenas de cueca e meias, suando com o aquecedor ligado no máximo, sem nada de palpável para prosseguir. Nada... Ele ficava certamente ridículo daquele jeito, com a derrota e a flacidez da idade como companhia. Sorte não haver ninguém para vê-lo naquela intimidade cômica. Não havia ninguém há um bom tempo, por sorte ou quem sabe pelo destino, e aquilo às vezes o confortava. Mas a derrota era sempre uma possibilidade, afinal. E aquele assassino era um dos piores, um dos mais ardis.
Um pouco mais, e Wasser percebeu que já passava das três da manhã. Não havia nem indício de sono, mas ele precisava se esforçar, não podia desapontar tantas pessoas novamente, então sorveu dois comprimidos e os engoliu com uma boa dose de bebida para intensificar o efeito. Era a única maneira de conseguir dormir algumas horas, era assim há um bom tempo, desde o último incidente trágico, pelo menos. E sua vida estava repleta deles. Muitos e muitos deles. Era a consequência lógica de passar toda uma vida perseguindo pessoas terrivelmente perigosas. Mas não havia nenhum conforto em tal conclusão, apenas a certeza de que ele mesmo havia colocado cada uma das pessoas que amara um dia em rota de colisão com todas aquelas mentes doentias que cercavam sua vida. Tal reflexão não era acalentadora, e certamente não ajudava a dormir. Mesmo com os remédios, o sono era apenas um vislumbre. Ele não queria fechar os olhos, sabia o que vinha com os pesadelos, e seu corpo se recusava a dormir. Mesmo assim, ele se esforçou o quanto pode. A coisa toda piorava quando ele não dormia, muitas das coisas que não deveriam estar ali surgiam para confundi-lo sem que pudesse controlá-las, e ele se transformava em um maluco inútil. Por isso era preciso tentar. Era preciso...
A pior hora do dia: o sono. Sentado no sofá, ele a viu. Era uma garota bonita, esguia e delicada. Os cabelos negros e lisos caíam pelos ombros. Mas estavam sujos e embaraçados, como quando ele a encontrara dentro daquele banhado sujo. Seus olhos eram duas poças de sangue morto e seu pescoço ainda exibia a ferida assassina, mais profunda do que nunca.
–Você está quase lá, pai! –afirmou a garota. Sua voz morta soava apagada e distante, por mais que a mensagem fosse extremamente importante. –Está quase lá....
–O quê? –perguntou Wasser. Aquela frase tinha um duplo sentido, talvez mais que isso. Ele precisava entender, precisava discernir as palavras. –Eu preciso de mais, querida! Preciso de mais!
–Apenas continue! –sussurrou a garota, com sua voz morta, e se foi.
Ele estava completamente sozinho agora, então decidiu que precisava acordar. Talvez já estivesse acordado. Aquilo seria um sonho? Como ter certeza? Wasser sorveu mais um gole generoso da bebida em suas mãos. A coisa queimava por dentro. Um tremor poderoso sacudiu seu corpo. Definitivamente, estava acordado. Mas desde quando? Ele havia realmente dormido? Já não importava.
Wasser levantou: cinco horas da manhã. Se não havia dormido, havia apagado, de alguma forma, o que parecia quase a mesma coisa. Um banho quente e um terno limpo, e ele já estava novamente na delegacia, ainda bastante sonolento, mas já a pleno vapor. O trabalho recomeçou: caixas e mais caixas, casos e mais casos. Uma parada para uma rosquinha com café, e mais pastas, um oceano delas. "Você está quase lá", soava a voz em sua cabeça. “Quase lá”, o que quer que aquilo significasse, se é que realmente significava algo. Mais uma xícara de café, e o trabalho recomeçava. A secretária da delegacia oferecera sua ajuda mais de uma vez, mas Wasser recusou educadamente em todas elas, embora estivesse exausto. Não confiava em ninguém para aquilo, ele mesmo não sabia muito bem o que procurava, mas sabia que não podia permitir que nada escapasse.
Pastas e mais pastas, casos e mais casos. Já passava das nove da manhã, quando ele encontrou a pasta. Um caso de quatro anos antes. Uma garota de vinte e dois anos golpeada com um martelo em uma parada, enquanto aguardava o ônibus da Universidade para a casa. Duas amigas de curso a haviam socorrido. Um martelo... Era coincidência demais. Havia uma fotografia da garota no hospital: cabelos encaracolados, pele clara, lábios grossos, nariz fino, rosto ovalado. O golpe a machucara de verdade. Wasser não teve dúvidas: era o maldito novamente. E, daquela vez, havia perdido a cabeça por alguma razão. E havia deixado uma vítima para trás, por alguma razão.
Daiana Jung, era esse o nome da garota. Ela havia se formado em medicina dois anos antes, mas ainda morava com os pais, o que aliás era bastante compreensível depois de tudo pelo que havia passado. Wasser a encontrou no lado de fora da casa, alimentando dois cachorrinhos. Era uma casa bonita de madeira com uma varanda espaçosa e um jardim com flores coloridas. Havia dois banquinhos de madeira na varanda e uma daquelas cadeiras de balanço trançadas com cipó. Wasser sempre sonhara em ter uma daquelas, mas seria preciso antes arranjar uma casa para esticar as pernas, converter sua falsa aposentadoria em uma aposentadoria de verdade. Então, quem poderia saber, talvez ele finalmente tivesse paz.
–Daiana? –perguntou Wasser, erguendo a identificação. –Nos falamos por telefone...
–Claro, investigador. Falou que tinha novidades sobre o caso.
A garota abriu o portão para Wasser entrar, mas parou na varanda da casa.
–Eu o convidaria a entrar, mas meus pais não estão em casa.
A garota não confiava em homens estranhos, mesmo com uma identificação da polícia. E estava certa. Mais que isso, Wasser podia enxergar, no fundo dos olhos da garota, o medo e o trauma.
–Então, como posso ajudar? –perguntou ela.
–Segundo o relatório da polícia, você viu um carro grande parando, e um homem caminhando em sua direção.
–Exato!
–Então o homem a golpeou com um martelo.
–Isso mesmo.
–Tenho a fotografia de uma caminhonete, e gostaria que você a identificasse.
–Claro! –concordou a garota. Não parecia muito convencida. –Mas devo avisá-lo que os policiais me apresentaram muitas fotografias na época. Não encontraram nada.
–Tudo bem. –afirmou Wasser, estendendo a fotografia. –Não tenha pressa.
A garota apanhou a folha de papel. Seu rosto foi subitamente tomado por uma palidez profunda. A fotografia escorregou entre seus dedos e seus joelhos vacilaram. Wasser a segurou pelos braços e a ajudou a sentar.
–É ele!... –disse ela. Seus lábios tremiam. Seu corpo parecia ter perdido toda a força. –É ele!...
–Tudo, bem! –disse Wasser, bastante preocupado agora. –Tente se acalmar. Talvez possamos chamar alguém para ajudá-la.
–Não! –disse a garota, ainda ofegante, mas já começando a se recuperar. Era uma mulher bastante forte. –Eu vou ficar bem. Foi só o susto.
–Tem certeza que é ele?
–Nunca vou me esquecer. Foram dois meses no hospital, três cirurgias. Os médicos disseram que eu tive sorte por ser pequena. O golpe me mandou para longe. Ele poderia ter me matado. Se eu fosse um pouco mais pesada, estaria morta agora. Mas ele me machucou de verdade. Tudo que eu tive de passar...
–Eu sinto muito. Não posso nem imaginar...
–Por que agora? –perguntou a garota, com certa indignação em seus olhos. –Por que depois de tanto tempo? Não é por minha causa, é?
–Não. –respondeu Wasser, com honestidade. A garota era esperta e sabia que algo de muito errado estava acontecendo. Não merecia uma mentira. –Foi outro caso que me trouxe até você.
–A garota assassinada alguns meses atrás... Foi ele?
–Sim.
–Eu sempre soube que ele faria novamente. A polícia achou que fosse pessoal. Eu sabia que não era. Eu tentei alertá-los. Mas não havia nada que eu pudesse fazer. Aquela pobre coitada.
–E há mais mulheres. Ao menos seis desaparecimentos. E eu acredito que existam mais delas em algum lugar.
–Deus do céu.
–Você foi a única pessoa que o viu. Eu sei que você afirmou em seu depoimento não ter visto o rosto do homem que a atacou muito bem, mas qualquer detalhe é importante.
–Eu só posso repetir o que disse à polícia na época. O sujeito parou o carro a certa distância, parecia irritado, os pneus cantaram, então caminhou muito rapidamente em minha direção e me acertou com força. Era um sujeito muito rápido. Eu apaguei. Quando dei por mim estava sendo socorrida por minhas colegas. Não vi o rosto do sujeito. Ele estava usando uma toca escura, e as luzes dos postes não eram o suficiente para iluminar muito bem seu rosto.
–Conseguiu ver como ele era fisicamente.
–Sim. E disse à polícia na época: o sujeito era alto, um e noventa no mínimo, e muito forte. Enorme...
–Forte ou gordo?
–Não, ele não era gordo. Quando ele desceu do carro, tive a impressão que sim. Mas, quando ele se aproximou, eu percebi que ele era na verdade muito forte. Como um desses caras que usam anabolizantes. Ele estava usando uma blusa de lã muito grossa quando me atacou, mas mesmo assim dava para ver os músculos do sujeito. Ele era enorme.
–Um halterofilista de um metro e noventa? Não deve haver muitos por aí.
–E havia os óculos... Eles eram grandes e redondos e brilhavam no escuro como se o sujeito fosse uma maldita coruja.
–Lentes grossas. –ponderou Wasser. –Ele deve sofrer com alguma falta grave de visão.
–É estranho, mas, antes de ele me atacar, ele tirou os óculos como se quisesse ter certeza de que era eu e como se enxergasse melhor sem eles.
–É realmente estranho. –ponderou Wasser. Ainda gastou alguns segundos refletindo sobre tudo o que a garota havia dito, antes de completar: –O relatório da polícia diz que o sujeito a xingou várias vezes. Por isso eles acharam que era um ataque pessoal. Mas o que afinal ele disse?
–Novamente, foi estranho. Eu estava quase completamente desmaiada. Ele gritou muito comigo, como se eu o tivesse ofendido de alguma forma. Pode ser que eu esteja enganada, mas acho que ele repetiu várias vezes a palavra "impura". Ele disse outras coisas também, mas não consegui discernir mais nada.
–Impura? –perguntou Wasser. –Não é a coisa mais comum a se dizer.
A garota fechou os olhos num grande esforço para tentar se recordar as palavras exatas, mas acabou desistindo.
–Já não sei. Como eu disse, talvez eu esteja enganada.
Ou talvez estivesse certa, ponderou Wasser. Afinal, o cordeiro para o sacrifício precisava ser imaculado.
–Peço desculpas, mas preciso fazer uma pergunta pessoal, para tentar entender o caso.
–Tudo bem, eu acho!
–Você disse, no depoimento, que estudava e trabalhava na Universidade.
–Eu era bolsista, na época. Aquilo foi no final do meu terceiro ano no curso de medicina.
–E você por acaso não teria mais algum emprego? Você não trabalhava como garota de programa, trabalhava?
A pergunta apanhou a garota de surpresa. Uma mescla de vergonha e irritação passou por seu rosto.
–Escute aqui, meus pais nunca....
–Eu não me importo com o que você fazia. –retrucou Wasser. –Só quero entender como esse homem pensa.
A garota se acalmou. A indignação desapareceu, em parte, de seu rosto.
–Garota de programa não, dançarina. O dinheiro que meus pais conseguiram e o dinheiro da bolsa não davam nem para os livros. Eu nunca disse isso a meus pais. Eu dançava em uma boate de luxo perto do centro da cidade. Eles pagavam bem.
–Uma stripper?
–Eu não gosto desse nome, mas sim. Foi como consegui parte do dinheiro para me formar.
As coisas realmente começavam a fazer sentido.
–Você não foi atacada realmente naquela parada, foi.
–Não. Foi perto da boate. Eu pedi para as garotas que me levaram para o hospital dizerem que foi na parada para que meus pais não descobrissem. Meus patrões na época também não gostavam muito de polícia por perto. Foram eles que mandaram as garotas me levarem para o hospital.
–E onde fica essa boate exatamente?
–Ficava perto da saída norte, no centro. Um prédio largo de dois andares. A boate fechou há uns dois anos. Há uma igreja no prédio agora, ou algo assim.
Finalmente, tudo se esclarecia. Agora ele precisava convencer aquela garota a se proteger.
–Você tem algum lugar onde possa passar alguns dias? –perguntou Wasser.
–Por quê? Não posso simplesmente abandonar meu trabalho no hospital. As pessoas precisam de mim. E meus pais também. Eles são velhinhos... –A garota deixou as palavras morrerem em sua boca quando percebeu o real perigo. –Acha que ele pode vir atrás de mim?
–Acho que é uma possibilidade. –respondeu Wasser. –Acho que ele pode estar por aí, procurando sua próxima vítima. Ele pode estar nos observando agora, e nem saberíamos.
–Vou ligar para meus pais. –disse a garota. –Meus tios moram do outro lado do estado. Vou passar uns dias com eles, levar meus pais.
–Faça isso. Vou chamar um policial para vigiar a casa até vocês partirem.
A garota se ergueu do banco.
–Obrigada pelo aviso! Se não for pedir demais, pode ficar aqui fora até os policiais chegarem.
–Claro!
Algo ainda angustiava a garota. Antes de entrar, ela ainda perguntou:
–Acha que ele me escolheu por eu ser uma stripper?
–Pelo contrário. –respondeu Wasser. –Se eu estiver certo, acho que seu antigo trabalho pode ter salvado sua vida.
A boate ficava em um prédio largo de dois andares um tanto afastado do centro da cidade. Havia a placa de uma dessas igrejas protestantes agora, mas não havia ninguém ali para prestar qualquer informação. As portas estavam fechadas. Três ou quatro hotéis naquela rua possuíam sistemas de segurança com alarmes e câmeras, mas seria exagerado esperar que algum deles tivesse guardada a filmagem de quatro anos antes. Mas havia uma esperança: o adesivo da empresa de segurança privada responsável pela segurança da boate ainda permanecia ali, desbotado, na parede lateral. Wasser conhecia aquela empresa superficialmente: a firma havia decretado falência anos antes, depois de onze anos de relativo bom desempenho. Reduzir o salário dos funcionários não havia ajudado, aparentemente. A boa notícia: a antiga cede não ficava longe dali.
Meia hora depois, ali estava ele. A cede da empresa falida de vigilância não passava de uma casa grande de madeira de dois pisos em uma rua marginal. Estava trancada com correntes e cadeados e parecia abandonada há pelo menos dois anos, dado o estado do gramado e do jardim. Um cão pastor enorme fazia guarda. Não havia tempo para mandado. Ninguém estaria seguro enquanto aquele assassino estivesse solto. Então Wasser resolver entrar. Depois de alguns minutos e meia dúzia de afagos, ele fez amizade com o cão. Depois, com dois pedaços de arame retirados de uma caçamba de lixo e um canivete, ele soltou as travas do cadeado principal e da porta lateral, então entrou.
Por sorte, o interruptor funcionou. A energia não estava cortada, o que tornaria tudo mais fácil. Dentro do casarão, caixas cheias de papéis e móveis empoeirados se espalhavam por todos os lados. No chão do que supôs que deveria ter sido o escritório, Wasser encontrou pelo menos uma dezena daqueles terminais de segurança com disco rígido integrado. Os equipamentos custavam uma verdadeira fortuna e estavam ali, jogados, a mercê de qualquer invasor mal-intencionado. Era muita sorte. Agora o problema era encontrar o equipamento correto. Os terminais estavam identificados apenas por siglas. Havia um "BT". Wasser julgou que fosse aquele. Os outros terminais deviam ter pertencido a outros estabelecimentos. Mas só havia um jeito de ter certeza. Wasser conectou o terminal a um pequeno monitor e o ligou.
Várias imagens da boate surgiram na tela. Seis câmeras. Aquele pequeno aparelho permitia a gravação de quase dois anos de filmagem. Era quase um milagre. Wasser procurou a data do ataque. Por sorte ainda estava ali. Mais dois meses de gravação, e tudo teria se perdido. Era preciso localizar a hora do ataque. Seria por volta das onze da noite, segundo o relatório da polícia.
Por volta das vinte e três e vinte, dois seguranças apareciam correndo dentro da boate. Mais dois se juntaram a eles em seguida, e todos correram porta à fora. Uma das câmeras da rua pegava um grande amontoado de pessoas. Embora não fosse possível uma visão muito clara do que havia se passado, era possível inferir que um alvoroço havia se formado em torno da garota depois do ataque. Ela fora atacada quase ao lado da porta de entrada, ao que parecia, mas as câmeras não haviam capturado o ataque em si. Nem sinal da caminhonete em nenhuma das câmeras. Wasser voltou as imagens. Em uma das câmeras laterais, que filmava a entrada do estacionamento, a caminhonete passava as pressas, cantando os pneus e levantando uma nuvem de fumaça. Era uma imagem distante e desfocada. Nada de placa ou qualquer identificação. Wasser retornou ainda mais a gravação. Outra câmera, que cobria o que parecia um portão lateral, captara o vulto do assassino passando por um pequeno grupo assustado de pessoas e embarcando no automóvel gigantesco. Sem mais detalhes, sem um rosto, sem a placa do veículo. Wasser ainda avançou e retornou a imagem inúmeras vezes sem sucesso.
–Desgraçado! –grunhiu o policial, arremessando uma pilha de DVDs e câmeras velhas contra a parede. Não contente, ainda virou uma mesa grande de madeira repleta de caixas de papelão abarrotadas de documentos. A confusão ergueu uma nuvem de poeira que fez seu nariz coçar. Aquilo era sorte. O miserável, além de tudo, tinha muita sorte. E estava sempre um passo à frente. Wasser se controlou, apesar da fúria que parecia não diminuir, e voltou a se acomodar sobre a cadeira giratória. Havia mais ali. Tinha de haver.
As pessoas pelas quais o assassino havia passado antes de embarcar no carro? Valia a pena conferir mais uma vez. Estavam no canto da imagem, todos eles, e era impossível distinguir o rosto de qualquer um naquela multidão. Além de tudo, seria extremamente difícil localizar qualquer uma daquelas pessoas depois de tanto tempo. Ao menos que... Sim. Era um novo caminho a ser seguido, como uma trilha de migalhas. Um dos homens naquele círculo de curiosos aparentemente segurava uma câmera. Era difícil distingui-la em meio a toda aquela confusão, mas não parecia uma câmera amadora. O sujeito era um profissional, ou quase.
Wasser voltou lentamente as imagens até algumas horas antes, até conseguir visualizar o homem mais uma vez. Era jovem, aparentemente, e estava realmente tirando fotografias da boate. Wasser retornou a imagem, e ainda mais... O rapaz havia chegado à boate uns quarenta minutos antes do ataque, no carro com o adesivo de um pequeno jornal da região. Era um fotógrafo. Estava ali a trabalho, ao que tudo indicava. E não fazia ideia que podia estar carregando, em sua máquina fotográfica, a única pista sobre um assassino psicótico perigoso e extremamente inteligente.
Capítulo 31
Localizar o fotógrafo não foi difícil. Seu nome era Daniel Alves, um Freelancer de um pequeno jornal da região. Morava três cidades ao sul, e mesmo o carro que dirigia, apesar do adesivo do jornal, estava registrado em seu próprio nome. Era um tipo de profissão muito difícil, com muitas viagens e sem nenhum tipo de elo empregatício além da marca do jornal. Uma vida difícil e movimentada, que já explicava em parte o que o rapaz fazia em outra cidade naquela noite, mas não explicava muito mais. Com uma simples ligação para o departamento de trânsito, Wasser havia conseguido o nome e o endereço do sujeito. A carteira de motorista estava vencida há quase um ano.
Horas depois, e o policial já tocava a campainha da pequena e confortável casa, localizada em um bairro de classe média da cidade. Era uma casa branca com um cercado vivo, um pequeno jardim com flores e trepadeiras logo à frente e o que parecia um pequeno pomar de laranjas ao fundo. Apesar de ser de longe a casa mais pequena e mais simples daquela rua larga e espaçosa, tinha um certo charme e estava muito distante de ser uma casa barata.
De imediato, Wasser percebeu que o lugar parecia ligeiramente abandonado. Era algo sutil, mas perceptível. As paredes pareciam mais sujas do que as das outras casas da rua, ninguém apanhava ou recolhia as laranjas caídas há algum tempo, e mesmo o jardim não parecia muito bem aparado, em relação às outras casas da rua pelo menos. Não era um abandono total, mas era visível. Quando ninguém atendeu a campainha, mesmo depois de longos minutos, Wasser começou a suspeitar que o sujeito não morava mais ali, o que seria certamente um grande atrasado. Aparentemente, não havia nenhum vizinho nas casas ao lado para se informar, então ele fez a única coisa que poderia fazer: sentou-se ali mesmo, na calçada, e esperou.
O tempo passou. A espera foi mais longa do que ele havia previsto anteriormente, e o sol já começava a se enfraquecer no horizonte. A cidade não era tão fria quanto suas vizinhas do norte, mas a brisa de fim de tarde já começava a incomodar. Mesmo para alguém tão resistente ao frio, aquela região era de matar. Wasser esfregou os dedos para aquecê-los, e sua bexiga começava a sentir os efeitos do concreto gelado. Por volta das cinco da tarde, porém, uma mulher jovem e magra de cabelos curtos e loiros se aproximou com um olhar desconfiado. Aparentemente o fotógrafo havia mesmo se mudado. Aquela devia ser a nova proprietária.
–Pois não? –questionou ela, com um semblante fechado.
Wasser se ergueu e apresentou sua identificação.
–Sinto muito incomodá-la! Só queria fazer algumas perguntas se não for...
–Vocês vão ter mesmo a coragem de aparecer aqui depois de todo esse tempo para fazer perguntas?
Wasser não sabia o que responder.
–Eu não sei do que você está falando.
–Quantas pessoas mais?... Quantas pessoas mais tiveram de morrer para vocês começarem a se mexer?
–Ei, moça! –interveio Wasser, tentando ser gentil. Era difícil, a garota estava mesmo irritada. Aquilo devia ser algum engano. –Eu não faço ideia do que você está falando! Sinto muito!
–Você não é um policial da cidade? –perguntou a garota. Sua expressão foi da raiva à esperança em um piscar de olhos, embora a angústia ainda estivesse ali, marcada em sua face.
–Não! –respondeu Wasser, sem saber ainda muito bem o que estava acontecendo.
–Veio de fora?
–Sim.
–Então, não sabe sobre o assassinato de meu irmão?
–Assassinato? –perguntou Wasser. A palavra fez seu sangue gelar. Então era isso. Aquela devia ser a irmã do fotógrafo. –Não, eu não sabia... Encontrei a imagem de seu irmão nos vídeos de segurança de uma boate, em uma cidade a alguns quilômetros de distância e vim fazer algumas perguntas sobre um incidente que ele pode ter presenciado.
Os olhos da garota se iluminaram. Ela girou a chave do portão e entrou.
–Venha! Vamos conversar!
Wasser obedeceu. Segundos depois, os dois já estavam sentados nos lados opostos da pequena mesa de madeira da sala de jantar. O interior parecia ainda mais gelado que o lado de fora. A casa estava mergulhada em uma meia-escuridão incômoda, mas a garota não parecia disposta a perder nem um só segundo, nem mesmo para acender a lâmpada. Era o efeito do entusiasmo dos muitos anos de solidão e indiferença reprimidas, Wasser ponderou.
–Então, o que descobriu? Descobriu algo?
–Tudo bem, por que você não me familiariza com toda a história, e eu conto a minha parte? –perguntou Wasser.
A garota suspirou, frustrada.
–Tudo bem... Meu irmão, Daniel, era o fotógrafo de um jornal da cidade. Ele viajava muito, passava quatro, às vezes cinco dias por semana na estrada. Trabalhava muito. Mas... Mas amava muito o que fazia.
A garota fez uma pausa para encarar os olhos do policial. Ele estava prestando atenção. Era diferente da maioria dos outros.
–Certo dia, há uns quatro anos, ele recebeu um trabalho do jornal. Uma feira de carros antigos em uma cidadezinha na divisa do estado. Ele viajou para lá, tirou algumas fotos e voltou para casa. Na volta, ele acabou se hospedando em um hotel na metade do caminho para casa, porque já havia escurecido. No hotel, ele ficou sabendo sobre um evento em uma das boates da cidade, uma espécie de Show com um desses DJs que estavam na moda na época. Meu irmão às vezes fazia algumas fotos por fora para incrementar a renda, então resolveu arriscar e tirar algumas fotos do evento para tentar vender para algum jornal da cidade no dia seguinte. O show já havia acabado fazia umas duas horas, quando uma garota foi atacada na boate. Ele não sabia muito bem como nem porque, mas o agressor passou por ele e por algumas pessoas com muita violência e partiu. O sujeito estava carregando um martelo ensanguentado. Uma martelo, dá para acreditar nisso? Enfim, no dia seguinte meu irmão vendeu algumas de suas fotos em um dos jornais da cidade, fez suas malas e voltou para casa. Ele descansou no dia seguinte e voltou ao trabalho. Tudo estava bem, até três dias depois.
–E o que aconteceu?
–Meu irmão havia saído à noite, para tirar o lixo, quando viu a caminhonete no fim da rua. A caminhonete do homem que havia atacado a garota.
Wasser não conseguia esconder o espanto. Ele havia subestimado o assassino novamente. O sujeito era muito mais obcecado e muito mais pragmático do que ele seria capaz de imaginar. E havia seguido uma testemunha por três cidades só porque havia trombado com ela. A garota interpretou equivocadamente a expressão de surpresa do policial como incredulidade.
–Eu sei que parece loucura. –esbravejou ela. –Mas é verdade. Meu irmão tinha certeza de que era o mesmo carro.
–Eu acredito. –afirmou Wasser. –Apenas continue.
–Meu irmão chamou a polícia. Eles passaram a noite ali fora, e fizeram algumas rondas nas noites seguintes, mas apenas isso. Ninguém acreditou em meu irmão. Então as rondas pararam. Eu nunca vi Daniel tão assustado. Meu irmão não dormia mais direito, não tinha mais coragem de sair para trabalhar e até comprou uma arma. Meu irmão não era um homem violento, acredite. Não era do tipo que brigava na escola. E, mesmo assim, ele comprou uma arma. As semanas se passaram e nada aconteceu. Eu mesma comecei a suspeitar que ele estava exagerando. Então, em uma manhã, umas três semanas depois, eu fiz uma visita e encontrei o corpo dele, bem ali. –A garota apontou para um dos cantos da sala.
O policial encarou o carpete escuro da sala como se pudesse ver se o corpo ali, estendido, a garota percebeu. Na verdade, ela ficaria bastante surpresa.
–O que a polícia afirmou? –perguntou Wasser.
–Roubo! –respondeu a garota. –Algumas coisas valiosas foram levadas. Uma grande besteira, se quer minha opinião.
–O que você acha que aconteceu?
–Algumas coisas valiosas foram levadas? Sim. Meu irmão guardava algum ouro em casa. Uma pequena quantidade. Era uma forma de investimento. O assassino levou até os talheres de prata de minha mãe. Os talheres tinham trinta anos.
–Mas? –perguntou Wasser.
–Deixou um relógio de ouro no punho de meu irmão. Não parece algo que um ladrão faria. E levou as fotografias. Todas elas. A máquina, eu entendo. Era uma máquina cara. Mas os filmes, os negativos, as fotografias reveladas, tudo. Aquele homem perigoso que atacou aquela garota na boate fez isso. Tenho certeza. Meu irmão havia pressentido algo. Era como se ele soubesse.
–Não entendo. –afirmou Wasser. –Por que a polícia não deu mais crédito a seu irmão? A história era verossímil, de certa forma, e houve de fato um ataque na boate. Por que eles ignoraram seu irmão tão rapidamente?
–Ah, isso? Nós não tivemos uma vida fácil. Meus pais morreram quando éramos bastante jovens. Tivemos de nos virar sozinhos bastante cedo. E eu me casei com dezessete anos. Acabei me mudando logo depois. Não há um dia em que eu não me arrependa por tê-lo abandonado de forma tão precoce. Mas eu tinha minha vida e... Enfim, você sabe! Ele era um pouco mais velho que eu, mas eu era a adulta da casa. Sempre fui. Meu irmão acabou se envolvendo com algumas coisas ruins, por algum tempo.
–Drogas?
–Cocaína, na maioria. Mas também algumas drogas sintéticas. Anfetaminas e o pior...
–Crack?
–Exato! Ele esteve envolvido com toda essa porcaria durante quase cinco anos. Até resolver se tratar de verdade. A droga tinha alguns efeitos colaterais bastante complicados.
–Quadros de fantasia e paranoia são comuns em usuários desses tipos de drogas. –ponderou Wasser.
Uma lágrima grossa escorreu dos olhos da garota.
–Meu irmão deve ter chamado a polícia umas trinta vezes nos anos em que esteve envolvido com as drogas. Sem falar das vezes em que acabou perturbando os vizinhos. Sempre histórias sobre perseguições, seitas estranhas, sociedades secretas e até...
A garota não se controlou e acabou chorando. Com muito custo, conseguiu dominar as lágrimas.
Deus, teve uma vez em que falou até em alienígenas. Alienígenas... Os policiais da cidade o conheciam bem. Acharam que ele havia tido uma recaída. E eu sei o que parece. Sei o que parece... Mas meu irmão estava sóbrio há três anos quando aquilo aconteceu. Tinha uma namorada muito bacana em uma dessas igrejas novas e tinha o emprego. Ele amava o emprego como nunca havia amado nada na vida. Passava dias, às vezes semanas na estrada, dirigindo, só para fazer o que amava. Estava estudando. Estudando de verdade. Estava melhor. E eu juro que ele estava realmente assustado. Se, ao menos, alguém acreditasse na história.
Wasser encarou atentamente a face da garota. O desespero era de cortar o coração. O irmão fora assassinado por algum motivo que ela não conseguia compreender, por um assassino frio e calculista, e ninguém acreditava nela. Como, enfim, alguém poderia acreditar em tudo aquilo.
A garota viu o policial abrir uma pasta branca e estender cerca de doze fotografias sobre a mesa. Estava mais confusa agora, e também mais curiosa.
–Essa imagem saiu da câmera de segurança da boate onde seu irmão estava no dia em que aquela garota foi atacada. –afirmou Wasser, apontando para a caminhonete vermelha na folha. –Essa... –prosseguiu o policial, apontando para outra fotografia, que exibia a mesma caminhonete em meio a alguns arbustos e algumas árvores muito altas. –Essa foi tirada próxima ao local onde uma garota foi atacada e morta, cerca de nove meses atrás, na mesma cidade. Todas as outras fotografias vieram de lugares que estão relacionadas a uma série de ao menos seis desaparecimentos. Todas as vítimas são mulheres muito parecidas com a garota assassinada. E pode haver mais delas em algum lugar.
Do outro lado da mesa, a garota encarava o rosto do policial sem acreditar.
–Então, é real? Meu irmão não estava louco. Eu não estou louca?
–Não. –respondeu Wasser. –Era tudo real. Os policiais não acreditaram em seu irmão porque não imaginavam que alguém perseguiria uma testemunha por três cidades por conta de um ataque. Não sabiam o que estava por trás do ataque, infelizmente. Se tivessem acreditado em seu irmão, esse homem já podia estar preso há quatro anos. Seu irmão ainda estaria vivo, e algumas dessas mulheres também. O assassino viu a logomarca do jornal no carro que seu irmão dirigia, viu a câmera de vídeo. Talvez seu irmão não tenha capitado nenhum registro sobre o ataque, mas o assassino precisava ter certeza. Assim como eu encontrei seu irmão, outros policiais podiam tê-lo encontrado. Enfim, seu irmão era a principal testemunha, e poderia ter colocado o assassino na cadeia. Se alguém tivesse acreditado nele.
A garota se ergueu e caminhou até a janela da cozinha. Ali mesmo ela chorou, chorou de verdade. Era a angústia sufocada de quatro anos de descrença e incertezas. Aquilo lhe tomou um bom tempo. Quando ela abandonou a solidão das próprias lembranças e voltou para o presente, Wasser percebeu que sua face parecia mais serena, mais tranquila, como se demônios antigos tivessem sido exorcizados naqueles poucos minutos.
–Então, o que fazemos agora? –perguntou ela, como uma nova energia em sua voz.
–Pegamos o desgraçado? –respondeu Wasser.
–É uma ótima ideia. Mas como fazemos isso?
–Eu procurei seu irmão justamente para isso. Por acaso, você não sabe se seu irmão identificou alguma característica marcante do assassino, ou se anotou a placa do carro?
–Meu irmão só viu o carro de longe, uma vez. –respondeu a garota. –E nunca viu nem a sombra do assassino antes de ser morto. Wasser já suspirava desapontado, quando percebeu que a garota tirou um bloco de anotações e uma caneta de uma escrivaninha perto da janela. –Eu, por outro lado, o vi muito bem!
A garota anotou algo em uma das folhas do bloco e a estendeu ao policial. Era o número de uma placa de automóvel.
–Eu não compreendo. –afirmou Wasser.
–Depois da morte de meu irmão, eu costumo vir para cá uma vez a cada duas semanas para organizar a casa. Eu faço o que posso, mas é difícil. Essa era a casa de nossos pais, é a casa onde crescemos, então é duro para mim simplesmente abandoná-la. Eu costumo vir as terças ou as quartas, pontualmente. Faço isso há quatro anos. Geralmente eu venho, ajeito as coisas o melhor que posso, e volto para casa para preparar o jantar de meus filhos, arrumar a minha casa, essas coisas. Houve um dia, mais ou menos três semanas após o assassinato, no qual meus filhos estavam em um desses acampamentos de verão e meu marido estava viajando a trabalho. Quando dei por mim, eu percebi que havia levado mais tempo que o habitual para organizar a casa. Estava separando algumas das roupas de meu irmão para a caridade e acabei me atrasando. Então resolvi dormir aqui mesmo.
A garota encarou os olhos do policial.
–Ele voltou.
–O assassino? –perguntou Wasser, atônito. –Tem certeza.
–Não tinha. Na verdade nem sabia muito bem o que pensar. Até você me mostrar essas fotografias. Era a mesma caminhonete. Tenho certeza. Quando ele parou o carro e percebi que os faróis estavam desligados, eu achei suspeito. Então me aproximei daquela janela, para olhar. –A garota apontou para uma das janelas laterais. –Ele estava lá. Por sorte, ele não me percebeu. Achei que ele fosse entrar. Nunca senti tanto medo em minha vida. Mas ele não entrou.
–E o que ele fez? –perguntou Wasser.
–Posso estar enganada, mas acho que ele limpou a trava da janela com uma flanela ou algo do tipo e um produto que ele borrifou. Então ele se abaixou com uma lanterna e ficou uns cinco minutos observando o chão ao redor da janela. Depois de tudo isso, ele simplesmente partiu.
Conferindo suas próprias marcas, refletiu Wasser. Digitais, fios de cabelo e coisas do tipo. Era bastante improvável que não tivesse conferido tudo isso da primeira vez. Aquilo era um sintoma, uma espécie de TOC, um efeito colateral da psicose aguda. Um raciocínio matemático invejável, uma obsessão doentia e um bocado de sorte e, no fim, foi o perfeccionismo que o traiu. Era a roda do destino girando.
–Você contou aos policiais, mostrou a placa para eles?
–Mostrei sim.
–E o que eles disseram?
–Que o carro pertencia a um homem morto há quase vinte anos. E foi adquirido fora do estado. A placa não ajudava muito. Devia ser um carro roubado. Os policias não acreditaram que fosse realmente o assassino de meu irmão. Eu mesma comecei a duvidar. Mas tudo faz sentido agora. Mas o carro...
–O que tem ele? –perguntou Wasser.
–Não era um carro roubado.
–E por que você diz disso?
–Os policiais falaram em carro velho. Não, ele não era velho. Antigo, sim. Mas velho...
–Era um carro bem-cuidado?
–Bem-cuidado? Não, a coisa estava brilhando, como se ele tivesse acabado de lustrar a lataria. Mesmo no escuro dava para perceber. Os pneus também brilhavam. Parecia um desses carros de exposição. Ninguém rouba um carro para cuidar assim dele.
A garota estava certa, Wasser tinha de reconhecer. Mas havia o mais importante.
–E você viu bem o assassino?
–Quase face a face.
–Como ele era?
–Um rosto comum: branco, uma face meio quadrada, um tanto larga, barba bem-aparada. Bem vestido, com um casaco marrom muito comprido sobre o corpo. E o sujeito era grande. Realmente grande. Quero dizer: enorme. Realmente muito forte. Só agora percebo como isso faz sentido.
–O que quer dizer?
–Meu irmão era um sujeito forte. Ele não era muito grande nem muito musculoso, mas era jovem e estava em ótima forma. Corria quatro ou cinco vezes na semana, dez quilômetros ou mais, jogava futebol às vezes. O assassino quebrou o pescoço de meu irmão. Já imaginou isso. Ele quebrou o pescoço de meu irmão e, quando eu o encontrei na manhã seguinte, não havia nem sinal de luta. Nenhum vaso quebrado, nenhuma sujeira, nenhuma gota de sangue, nem um só móvel fora do lugar. Nada. Eu nunca refleti muito sobre isso. Meu irmão não teve chance. Eu imaginei que o assassino o havia pegado de surpresa, ou algo do tipo. Talvez o houvesse drogado. Contudo, talvez a resposta seja bem mais simples.
–Alguém realmente muito forte. –concluiu Wasser. –Talvez com alguma experiência em lutas, quem sabe alguma experiência militar. Faria sentido.
–Aquelas garotas não tiveram chance. –concluiu a garota, e Wasser sentiu as palavras queimando em seu estômago. A garota estava certa. Ele mesmo não teria qualquer chance contra o tipo de pessoa descrita pelas testemunhas.
–Acha que ele pode voltar? –perguntou a garota.
–Acho que sim. –respondeu Wasser. –Talvez você deva encontrar um lugar para passar com sua família. Se o assassino souber que você o reconheceu, ele pode tentar vir atrás de você.
–Deixe-o vir! –sussurrou a garota, pouco antes de arrancar um revólver enorme de um coldre sob o casaco. Wasser não havia percebido nem sinal da coisa monstruosa, e o sobretudo da garota não era exatamente grosso.
–Não é uma boa ideia. –advertiu Wasser, bastante preocupado. –Ele é um homem muito perigoso.
–Sim, ele é. –retrucou a garota. –Mas, por mais forte que seja, não vai conseguir passar pelas grades da janela do fundo. Então terá de entrar pela porta da frente, pela porta lateral, ou pela janela de algum dos quartos. De qualquer modo, ele vai acabar ali. –a garota apontou para sala. –Tenho repassado isso em minha mente por muito tempo. Como ele pegou meu irmão? Repassei tudo em minha mente centenas e centenas de vezes. Tenho praticado muito nos últimos anos. Muitos e muitos tiros. Não vou errar. O sujeito, ao que parece, não gosta de armas de fogo. Prefere martelos ou... quebrar pescoços. Ele subestima as vítimas. Será o grande erro dele. Ele vai acabar ali, na minha frente, e eu vou estar aqui, esperando por ele.
Wasser ouviu atentamente tudo o que a garota falou. E ela estava realmente certa sobre exatamente tudo o que havia dito, havia realmente repassado cada detalhe em sua mente durante todos aqueles anos. E, pela forma como ela puxou e desarmou o cão, Wasser podia apostar que o que ela disse sobre saber atirar era verdade. Ainda assim, aquilo tudo era uma loucura. Havia perigo demais naquela cena. Quando conheceu a garota, minutos antes, ele havia percebido sintomas claros de distúrbios psiquiátricos, euforia extrema e raiva além do normal. Agora, porém, tudo naquela mulher era pura serenidade, como se ela pudesse começar a flutuar a qualquer momento. E, o pior, não havia nem sinal de medo.
–Eu não vou deixar você aqui. –afirmou Wasser, encarando os olhos tranquilos da garota. Ela apertou sua mão e sorriu. Um sorriso sincero.
–Eu agradeço por tudo detetive. De verdade. Mas agora preciso ficar um pouco sozinha. Não se preocupe comigo. Eu vou ficar bem.
Wasser não sabia muito bem o que dizer, então se despediu e partiu. Ele obviamente teria de avisar a polícia no caminho de volta, era a coisa mais ética a se fazer, mas sabia que a garota realmente ficaria bem, muito melhor agora do que quando a conhecera, pouco mais de uma hora antes. A verdade fizera bem a ela. E o melhor: ele agora tinha a ponta do barbante em suas mãos. Bastava puxar o fio.