Quinta Parte
Capítulo 32
Quando chegou em casa, depois de mais um dia exaustivo de trabalho, Amanda não fazia ideia de que alguém já a aguardava. Ela cumpriu a mesma rotina de todos os dias: tomou um banho quente, vestiu seu pijama favorito, devorou as rosquinhas que havia comprado no caminho e cogitou adiantar a faxina do dia seguinte. Acabou adormecendo no sofá, minutos depois, não antes de examinar todos os canais à procura de algo interessante: havia um programa de pesca, um documentário sobre aves, um programa de auditório, um daqueles canais que só mostravam gado e, finalmente, a novela das oito. No último canal, uma reportagem sobre o assassinato da garota, meses antes. Amanda soltou o controle da televisão. A voz da apresentadora informava que havia se completado o oitavo mês sem que o assassino fosse descoberto. Amanda tentou prestar atenção na notícia, mas estava cansada demais. Simplesmente um intenso e profundo cansaço.
Uma imagem surgiu em sua mente, sangue na carroceria de uma caminhonete vermelha, a caminhonete de Otto. Não, a caminhonete pertencia ao sujeito estranho que ajudava o velho mecânico, mas qual era mesmo o nome dele? Que importância tinha aquilo agora? Foi na mesma época, sussurrou uma tênue voz em sua mente: a morte da garota e o sangue na caminhonete, apenas alguns poucos dias de diferença. Sim, William, era esse o nome do rapaz estranho que trabalhava para o velho Otto: William Glander. Amanda adormeceu, um sono pesado e seco.
Nos minutos seguintes, ela mergulhou em um sonho estranho, algo a ver com ovelhas. No início, Amanda só ouviu o som, o balir característico e ruidoso. Ela estava de pé, no meio de uma campina muito longa. Em todas as direções, um gigantesco tapete verde se estendia até o horizonte. Era um lugar bonito, mas definitivamente estranho, como uma lembrança que não lhe pertencia. O sol brilhava forte, ajudava a espantar o frio cortante da manhã. O céu era de um púrpura só possível em sonhos.
Amanda caminhou. Seus pés descalços esmagavam a grama molhada, uma sensação que não experimentava há tempos. Ela atravessou uma pequena ponte. A madeira estalou sob seus pés. Havia também um riacho e, por todos os lados, seres brancos e felpudos a observavam com curiosidade, como se ela fosse uma intrusa ali. Foi quando ela percebeu algo estranho. No topo de um pequeno morro, uma mão gigante emergia do chão, uma palma imensa e cinco dedos brancos e finos, curvados como se estivessem prestes a agarrar alguma coisa invisível. Algo sangrava sobre aquela coisa estranha, algo branco. Amanda se aproximou.
A curiosidade fez com que a brisa gelada e repentina passasse despercebida. Com ela, vinha o cheiro incômodo de sangue quente. Nuvens pesadas agora deslizavam pelo céu, que foi do púrpura ao vermelho vivo em segundos. Sobre a mão estranha, desmembrada em uma dezena de pedaços, estava uma pequena ovelha. A cabeça, pendida ao lado do corpo, contorcia-se em uma impressionante careta de dor. E os olhos... Que olhos eram aqueles? Amanda não conseguia se desvencilhar deles: olhos de súplica, de medo. Então, aquela cabaça sem corpo falou. E tinha uma voz inacreditavelmente humana:
-Fuja! –disse ela.
Amanda despertou num sobressalto. Que porcaria de sonho era aquela? Ela demorou algum tempo para recuperar o ar. Mesmo quando a respiração voltou ao normal, a sensação de perigo continuou lhe esmagando o peito. Havia algo errado, ela podia sentir, mas o que era? Ela tentou se concentrar, deixar o sonho para trás, mas era imensamente difícil abandonar aquelas imagens. Suas mãos tremiam demais. Mas por quê? Ela precisava abandonar o sonho, deixar o sono para trás. Precisava se erguer rápido. Muito rápido.
Pouco a pouco, porém, ela percebeu o ruído, um bip baixo e agudo. De início, Amanda deduziu que fosse o despertador do rádio-relógio, mas ela estava no meio da madrugada, e o ruído era mais discreto e muito mais agudo que o do despertador. Definitivamente, era um som que ela nunca ouvira até então. Amanda se levantou e tentou acender o interruptor, mas as luzes não funcionavam. Ela caminhou até o corredor na ponta dos pés, procurando a fonte do ruído, e a encontrou. O painel do alarme, fixado na parede, piscava em vermelho. Aquilo não devia ser normal. Amanda se aproximou para checar. O aviso no painel alertava: "desconectado". E não foi preciso procurar muito para encontrar o motivo: um pouco acima do painel, o fio fora cortado.
Amanda congelou. Os objetos a sua volta giraram como se não tivessem peso. Ela não sabia o que fazer. A notícia sobre a morte da garota meses atrás ressurgiu em sua mente. Uma morte horrível. Prendendo a respiração, Amanda levou a mão trêmula até a maçaneta. Trancada... Ela própria a havia trancado quando chegou em casa, mas a chave não estava onde deveria estar. O assoalho estalou em algum lugar da casa. Alguém estava ali dentro, com ela.
Lentamente, Amanda caminhou até o outro lado da casa. No meio do caminho, foi novamente interrompida pelo som de passos. Estavam mais perto agora. Ela estacou, imóvel como uma estátua. Já não sentia o próprio corpo, que formigava de cima a baixo. Amanda precisou reunir toda a sua coragem para continuar. Pouco depois, alcançou a porta dos fundos, mas percebeu que a chave também não estava ali. Era o fim. Ela ainda pensou em gritar por socorro, mas algo lhe dizia que seria pior. Escapar pelas janelas era impossível. As grades, projetadas para manter pessoas do lado de fora, agora a mantinham presa dentro de casa como um animal enjaulado.
Sem pensar muito, Amanda caminhou alguns passos até o telefone, tirou-o do gancho e discou.
–Batalhão de Polícia... Em que posso ajudar?
–Eric...
–Amanda? –perguntou o noivo mal reconhecendo sua voz. –O que aconteceu?
–Tem alguém aqui, Eric. –sussurrou ela, completamente desesperada. –Eu não sei o que fazer. Não sei onde ele está.
–Corra! –gritou o noivo. –Saia da casa!
–Não posso! Ele me trancou.
–Não, não... Escute, tente se esconder. Eu estou indo...
–Não há mais tempo. Eu só quero que você saiba, eu...
As costas de Amanda se chocaram contra algo muito maior que ela, muito mais pesado. Ela se virou. Tudo o que conseguiu fazer, ao se deparar com aquele par de olhos brilhantes, foi gritar. Mas o grito foi sufocado por uma pancada muito forte. A dor foi dilacerante.
Do outro lado da linha, Eric pode ouvir o ruído. Sabia o que aquilo significada: alguém sendo golpeado, um corpo leve tombando. Ele estava em choque.
-Eric! –gritara alguém a seu lado, pela terceira, talvez quarta vez. Era seu parceiro de turno. –O que aconteceu?
Eric se recompôs e partiu. Os outros policiais de plantão o seguiram de perto. Quando chegou em casa, poucos minutos depois, o lugar estava vazio. No chão da cozinha, próximo ao telefone, um rastro fino de sangue que desaparecia próximo à porta dos fundos.
Capítulo 33
A noite chegava ao fim, e o dourado de um novo dia já surgia no horizonte. O sedan escuro cravou diante da Casa. David Wasser saltou. Seis ou sete viaturas já estavam ali. As sirenes reluziam. Era uma casa de madeira discreta, mas muito bonita, com um pequeno gramado à frente e um jardim com rosas e violetas em um dos lados. No portão, um pequeno lance de degraus dava lugar a uma passarela estreita de concreto, que se estendia até a porta de entrada.
O delegado Carlos Dias estava parado na porta da casa. Um homem loiro e alto, vestido com o fardamento escuro da polícia tática, permanecia sentado em uma cadeira ao lado da porta e realmente não parecia bem. Suas mãos tremiam muito e seu rosto era pura apreensão.
–Wasser... –disse o delegado. –Esse é o sargento Eric Schneider, noivo da mulher sequestrada.
O homem mal conseguiu erguer os olhos para cumprimentar o recém-chegado. Uma das policiais lhe trouxe um copo de água, no qual ele mal tocou.
–Pode dar uma olhada? –perguntou o delegado, discretamente.
–Claro! –respondeu Wasser, e entrou.
Era uma casa visivelmente confortável, aconchegante apesar da simplicidade da decoração e dos móveis. Lembranças iam e vinham muito rapidamente, mas era difícil se focar em alguma. A casa estava desbotando, seria a melhor definição. Os sentimentos estavam se perdendo, se diluindo, por alguma razão.
Wasser deu mais um passo. Não, não era mais ele. Estava colado a uma garota muito bonita e cobria seus olhos com as mãos. A casa estava diferente agora, mais bruta, com uma pintura ainda fresca. O espelho refletia seus rostos colados, a garota e ele. Melhor, a garota e o homem que estava parado na porta da casa, só que bem mais jovem. Ele descobriu os olhos da garota e perguntou, empolgado:
–Então, o que acha?
–Está linda! –disse ela, com sinceridade.
O tempo passou. Ele se observava no espelho. Não, não ele, a garota se observava. O rapaz estava sentado no sofá, lendo seu jornal. A televisão estava ligada em um canal qualquer, mas nenhum dos dois parecia muito preocupado com ela. A garota levantou a blusa de lã.
–Eric...
–O que foi?
–Acha que eu estou gorda.
O rapaz se ergueu e caminhou na direção da noiva.
–Bem, deixe eu olhar mais de perto.
Ele coçou o queixo.
–Amor, eu não queria dizer nada, mas você está gorda.
–Verdade? –perguntou a garota. –Você acha?
–Gorda. Muito gorda! Imensa! Como um daqueles bichos que parecem focas gordas. Como é o nome mesmo? Ah, sim: você parece um peixe-boi.
Ele gargalhou.
–Eu estou falando sério, seu cretino.
A imagem se dissipou e voltou. Ele chegava em casa, depois de um plantão muito longo. Estava cansado. Ao acender a luz, teve uma surpresa. A garota estava no sofá, deitada de bruços, completamente nua. O único sinal de roupa era o laço preso à cintura, apertando o corpo macio.
–E então, sargento, não vai abrir seu presente de aniversário? –ela perguntou.
Seu coração disparou.
Mais uma vez, as imagens se apagaram e voltaram a se acender. Ele estava cozinhando algo diferente. Era um cozinheiro bastante razoável, na maior parte do tempo. Quando arriscava algo novo, contudo, as coisas costumavam não dar muito certo. A frigideira quase se incendiou quando ele tentou flambar algo. A cozinha se encheu de fumaça. Ele enfiou a panela debaixo da pia e apagou o fogo a muito custo.
–Você tinha razão quando disse que seria um prato muito especial. –afirmou a garota, às gargalhadas. –A noite ficou emocionante.
–Não ria do minha receita secreta, disse ele, devorando um pedaço de frango que mais parecia um pedaço de carvão. A coisa estava amarga.
–Credo, que nojo! –gargalhou a garota.
A imagem se foi. Eles estavam discutindo agora. Uma discussão pesada. Ou melhor, ela estava discutindo. Ele estava no meio da sala. Ela chorava e caminhava de um lado a outro, bastante irritada.
–Ele não tão o direito de ligar! –gritou ela. –Não depois de tanto tempo! Você devia ter se livrado dele!
–Querida, eu sei. –ele respondeu. Sua voz era quase um sussurro. –Melhor do que ninguém, eu entendo seus motivos. Mas ele é seu pai...
–Não, ele não é. Ele nunca foi. Eu não quero aquele homem na minha vida. Não agora.
Tudo se foi. Ele estava assistindo a um jogo qualquer. A garota estava sentada à mesa, escrevendo alguma coisa. Estaria nua se não fosse pela calcinha de algodão. Ela vinha sentindo muito calor nos últimos dias. Engordara vários quilos. As maçãs do rosto estavam cheias, e a barriga parecia prestes a explodir como um balão que passou do ponto. Ela se contorceu na cadeira e soltou uma exclamação.
–O que foi? –ele perguntou.
–Ele chutou.
–De novo?
–Acho que você devia parar de assistir tanto futebol.
Wasser se apanhou novamente no meio da sala. Queria se livrar das imagens, mas elas continuavam brotando insistentemente, numerosas como gotas de chuva, mas frágeis como aquelas florezinhas brancas que crescem no campo e basta um sopro para desmanchá-las por completo.
Ele estava no quarto agora e sentiu uma pontada de dor no ventre, uma dor mais intensa do que parecia possível suportar. Com muita dificuldade, conseguiu ligar o interruptor ao lado da cama. Sangue... Muito sangue! Espalhava-se por suas coxas, pela camisola, pelo edredom, pelos lençóis.
Depois daquilo, as imagens se desbotaram de vez, perderam força ao passo que ficavam mais escuras, mas frias. Wasser deu mais alguns passos pela casa, então outra presença, bem mais recente e bem mais forte, surgiu. Não era uma boa presença. O ar parecia venenoso agora, e imagens desconexas vibravam no vazio, difíceis de montar como um quebra-cabeça de mil peças, mas muito, realmente muito fortes. Era uma mente perturbada.
Wasser se apanhou diante de uma grande casa de madeira. Um velho desleixado de barba branca e olhar sádico lhe estendia uma marreta muito pesada. "Bata com força, na cabeça!", ordenava o homem. Havia uma pequena ovelha, presa em uma corda. No momento seguinte, ele estava em um extenso gramado verde, com uma bíblia aberta nas mãos, recitando orações diante de uma grande pedra que saía da terra. Não, não era uma pedra, era uma mão enorme e pálida, de dedos finos e compridos, como em uma daquelas pinturas barrocas de Jesus. Então anoitecia, e ele agora estava na sala escura, diante da porta aberta do banheiro, observando, através do vidro estriado do box, o corpo da garota que tomava banho distraída. A imagem o atraía. Ele caminhou lentamente, um passo de cada vez, o coração explodindo em seu peito, imaginando aquele corpo macio sobre a mesa: as facas, os ganchos. O pecado! Havia sombras, ali, no escuro, sombras que flutuavam no vazio. E havia uma cabeça, debaixo da luz do sol. Era uma cabeça de ovelha. Não, era uma cabeça de mulher. Não, era definitivamente uma cabeça de ovelha, mas os olhos e a face tinham inegavelmente algo de humano. Os lábios se abriram e voltaram a se fechar. "Fuja!", disse a coisa sem corpo, e parecia muito assustada. Estava escuro. A garota caminhava para trás, na escuridão. Acabou trombando nele. Ele ergueu o martelo e bateu, cuidando para segurar sua força. Não queria machucá-la tanto quanto a outra, ao menos não tão rapidamente.
O delegado se aproximou de David Wasser discretamente.
–Então?
–É ele.
–Ele quem? –perguntou Eric, arrancando-se do transe em que parecia ter mergulhado.
–Eric, não temos certeza ainda.
–Ele quem?
Carlos Dias ainda relutou.
–Ele?... Quem é ele?
–Acreditamos que sua noiva possa ter sido raptada pelo mesmo homem que matou a filha de Marcos Hasse.
–Isabela? Ela foi... Ela foi...
–Nós sabemos.
Eric chegou muito perto de desmaiar, gemeu como se tivesse levado um pontapé no estomago e se apoiou na parede para não cair.
–Oh, Deus! Oh, Deus!
–Acreditamos que temos algum tempo. –interveio Wasser. –Precisamos manter a calma.
–Calma?... Calma?...
–Eu tentei protegê-la. Eu sempre quis protegê-la, e falhei. Sabe como é isso?
–Acredite, eu sei. –respondeu Wasser, e o delegado percebeu que ele fora sincero com o policial.
–Como ele passou pela porta? Como ele passou pelo alarme?
–É a posição do painel. –respondeu Wasser.
–O quê?
–Você instalou o painel de frente para a janela dos fundos. Alguém com um binóculo, do outro lado da rua, conseguiria descobrir a senha com certa facilidade. Bastaria um pouco de paciência. De posse da senha, fica fácil desligar definitivamente o aparelho e cortar o fio. E as fechaduras não são difíceis de arrombar com as ferramentas certas. Nenhuma é.
–Céus! –sussurrou Eric. –Não pode ser tão fácil... Não pode ser...
–Não havia como saber que ele estava observando. Ele é bom nisso. Faz isso há um bom tempo. Não se culpe! Não havia como saber.
Um dos investigadores se aproximou. Tinha pressa.
–Senhor, o departamento de trânsito terminou de analisar a placa.
–E então? –perguntou Carlos Dias, impaciente. –O que descobriram.
–Segundo eles, o veículo está registrado em nome de um homem: Jonathan Glander.
–Jonathan Glander... –exclamou o delegado, pensativo.
–Você o conhecia? –perguntou Wasser.
–Eu o conhecia de vista. Era um homem bastante reservado. Você tinha razão. Ele está morto há quase vinte anos.
–Acha que o carro foi roubado?
–Não necessariamente. Ele tinha um filho. O rapaz certamente está vivo, mas não sei se ainda mora na cidade. Mas acho que um dos meus policiais estudou com ele.
O delegado correu os olhos em volta da casa.
–Ramos! –berrou ele, quando encontrou quem procurava. –Venha aqui!
O investigador obedeceu. Era um rapaz alto e forte, de trinta e poucos anos.
–Pois não, senhor...
–Você estudou com William Glander, não estudou?
–O maluco? –perguntou o policial, sem se dar conta do conteúdo da conversa. Sentiu-se envergonhado em seguida. Todos ficaram mudos. Aquilo não era bom, Amanda fora levada por um maluco.
–Desculpem! É sobre o rapto? Acham que foi ele?
–O que você acha? –retrucou o delegado.
–Eu não sei. Ele era estranho, mas não acho que ele fosse um criminoso nem nada do tipo.
–E você sabe onde ele vive agora?
–Ele se mudou quando saímos do primário. Foi estudar em um desses colégios de padres, na época. Mas acho que o vi na cidade, há uns dois anos. Não posso assegurar que fosse realmente ele, mas acho que sim. Ele estava acabado. Parecia quase um desses mendigos de rua. Estava vestindo um macacão azul muito sujo, como algum tipo de mecânico, ou algo do tipo.
–De padre, a mecânico? –perguntou o delegado. –Não faz muito sentido.
–Espere! –cortou Wasser. –Aquele carro lá na frente é de vocês? O vermelho?
Eric entendeu o raciocínio.
–É o carro da minha noiva. Ela bateu, há uns nove meses. Ele ainda está amassado. Mas nosso mecânico é o velho Otto. Não acho que ele...
–Não o velho Otto. –interrompeu o delegado. –O assistente dele, William. Eu nunca o associei ao filho de Jonathan Glander, mas podem ser a mesma pessoa. Contudo, não podemos nos dar ao luxo de errar.
Carlos Dias caminhou até a cozinha, apanhou o telefone e discou. No outro lado, Margaret Hasse atendeu.
–Alô... Sou eu, Carlos.
–Olá, Carlos! Alguma novidade?
–Uma pergunta, na verdade. Isabela levou o carro a alguma mecânica antes de tudo aquilo?
Margaret refletiu.
–Uns cinco meses antes do assassinato. O motor não estava arrancando direito.
–Sabe qual foi a oficina?
–Não tenho certeza. Marcos foi com ela. Ele sempre gostou daquele mecânico velhinho, mas eu não recordo o nome dele.
–Eu recordo. –respondeu o delegado. –Obrigado!
Voltando-se aos outros, ele concluiu:
–É ele!
De sua extensão, no escritório, Marcos ouvira a conversa e sentira raiva de si mesmo por não ter pensado nisso antes. O assistente do velho Otto. O sujeito estranho e apagado que parecia uma mistura de morador de rua e guitarrista de heavy metal. Só podia ser ele. A aparência do sujeito era gritantemente suspeita. O investigador se fora da cidade havia realmente conseguido. Agora bastava acabar com tudo aquilo.
Capítulo 34
Corpos mutilados se espalhavam pelo chão. De longe, pareciam humanos, mas, quando se aproximou, Amanda percebeu que não passavam de ovelhas. Se bem que havia algo de humano em seus olhos, talvez em suas faces. Amanda não reconhecia aquele lugar. Por todos os lados, apenas a escuridão. O reflexo de uma lua cheia gigantesca vibrava em uma poça de sangue como um quadro em uma moldura, mas, quando ela olhou para cima, não havia nada no céu. Talvez nem houvesse um céu ali.
Um homem sussurrava uma prece, ajoelhado ao lado dos corpos. Vestia uma batina negra, que, naquela escuridão doentia, tinha quase o efeito de uma camuflagem. Um rosário vermelho escorregava entre seus dedos. Seus óculos reluziam na escuridão, pareciam os olhos de algum animal noturno.
–Que pecado elas cometeram? –perguntou Amanda.
O homem não respondeu. Apenas continuou sua oração. Suas palavras rasgavam o silêncio de forma áspera, machucavam os ouvidos. Então Amanda sentiu uma pontada de dor em seu ventre, e algo quente escorreu entre suas pernas. Era sangue. Manchara sua camisola. Amanda observou seus próprios dedos ensanguentados. O sangue... Como podia ser tão vermelho, mesmo ali, naquela escuridão?
–Ele era inocente. –afirmou ela.
–Não há inocentes. –respondeu o homem estranho. –Todos são culpados.
E os corpos amontoados não eram mais ovelhas, eram corpos femininos, todos horrivelmente mutilados.
As imagens, pouco a pouco, diluíram-se em pura escuridão. Quando abriu os olhos, Amanda percebeu que flutuava no vazio. A primeira coisa da qual se deu conta foi o cheiro sufocante de urina, poeira e sangue quente. Seu corpo estava dormente, e sua face esquerda formigava. Um estreito raio de sol rasgava a escuridão e pousava sobre uma velha mesa de madeira, na qual objetos pontiagudos se amontoavam.
Seus olhos começavam a discernir as formas a sua volta. O lugar estava mais claro do que parecia a princípio, mais claro do que ela gostaria que estivesse. Paredes de madeira se erguiam sobre um chão de terra batida. Por todos os lados, teias de aranha e muito mofo. E havia o sangue. Realmente muito sangue. Escorrera da velha mesa por muito tempo e certamente não pertencera a uma só pessoa. Uma vaga lembrança surgira em sua mente: uma pancada muito forte em seu rosto, alguém invadindo sua casa.
Em um dos cantos do porão, uma cadeira de balanço rangia. Era o único móvel ali além da mesa. Havia alguém sentado sobre ela. Amanda ouviu sussurros. Parecia um diálogo, mas ela tinha certeza de que só havia uma pessoa ali.
–Socorro. –ela tentou gritar, mas o que saiu de sua garganta foi um ruído áspero, um gemido sem significado algum. O homem se ergueu e caminhou em sua direção. Observava-a de baixo, como se fosse um anão. Amanda o reconhecia de algum lugar, mas tudo estava confuso demais: uma caminhonete, uma batida no trânsito.
–Feche os olhos! –sussurrou o homem estranho, visivelmente apavorado. –Não deixe que ele a veja acordada!
–Quem? –perguntou Amanda.
–Feche os olhos! Feche os olhos!
Ela obedeceu. Era realmente difícil mantê-los abertos. Sua cabeça doía de forma inacreditável, como se estivesse partida ao meio. Talvez realmente estivesse. Tudo se apagou mais uma vez.
Capítulo 35
A viatura blindada explodiu o portão de madeira. As tábuas velhas foram reduzidas a poeira e lascas. Seis viaturas seguiram a primeira. Os carros brecaram rispidamente, arrancando tufos de grama. Policiais equipados com coletes pesados e fuzis saltaram e se espalharam pela casa. O líder do grupo tático se dirigiu ao delegado e a seus homens:
–Vocês aguardam aqui fora! Nós chamamos quando for seguro!
–Entendido. –respondeu Carlos Dias!
Tratava-se de uma casa muito velha. As tábuas da parede há tempos haviam sugado a tinta branca, que agora não passava de um vislumbre. Quase todas as janelas estavam quebradas, e boa parte do telhado cedera. Mas era uma casa visivelmente resistente, construída com tábuas de canela que exalavam ainda um cheiro muito forte: uma construção típica, grande, quadrada, com janelas altas e largas nos dois andares. Aparentava ter sido aconchegante em outros tempos. Agora, o mato no lado de fora chegava a uma altura descomunal, e uma quantidade considerável de lixo se espalhava por toda a parte. Ao redor da casa, uma longa plantação de milho se estendia por vários metros, mas tão descuidada que já se confundia com o matagal em volta. Muito além da plantação, surgiam as árvores altas da floresta. Aos fundos, entre a plantação e as árvores, sobre um morro íngreme, uma pilha de madeira escura se aglomerava sobre a grama. O limo de anos cobria tudo.
–Aquilo ali era uma igreja? –perguntou Wasser, apontando para um bolo de madeira torrada.
Havia algo que lembrava visivelmente uma cruz gigante, sob o que parecia uma abobada de madeira. Na cruz, a marca inconfundível do impacto de uma descarga elétrica.
–Era. –respondeu o delegado. –O pai de William, Jonathan Glander, era, pelo que diziam, um homem bastante religioso. Um raio atingiu a capela numa certa noite, quando a família estava rezando. Foi o que matou o pai, a mãe e a irmã de William.
–E onde William estava?
–Estudando. Parece que o pai o havia colocado em algum seminário fora da cidade. Era algo comum na época. Ele não estava em casa no dia do incêndio. Mas ninguém pensou nisso na época, já que todos culparam o raio. Os bombeiros retiraram quatro corpos carbonizados daquela pilha. Àquela altura, já tinham virado cinza. O pai e a mãe de William foram reconhecidos pelas arcadas e por alguns outros detalhes. Um terceiro corpo pertencia a uma adolescente. Era o corpo da filha, ao que parece.
–E o quarto corpo? –perguntou Wasser.
–Boa pergunta. Não foi identificado, de início. Alguns meses depois, a perícia concluiu que a quarta vítima era o padre Daniel Wolg, o presbítero da cidade na época, que havia desaparecido pouco antes do incêndio.
–O padre da cidade resolve fazer uma visita à família Glander justamente na noite do incêndio e morre queimado?
Todos entenderam a insinuação de Wasser. Toda aquela corrente de coincidências era realmente estranha, mas a marca do impacto do raio na cruz gigante era inegável, de modo que, se de fato tivesse havido ali um assassinato múltiplo, o assassino aparentemente havia recebido uma mãozinha do céu para ocultar seu crime, o que só deixava tudo ainda mais sinistro.
Houve um momento de silêncio, no qual se podia ouvir a movimentação dos policiais dentro da casa. Não demorou muito para que o líder do grupo tático aparecesse.
–Tudo limpo, delegado. A casa está vazia. Você e seus homens podem entrar. Nós vamos vasculhar o lado de fora.
–Entendido. Encontram algum sinal da garota?
–Não. Sinto muito.
–Isso não é bom. –sussurrou o delegado. Voltando-se para seus homens, ele concluiu: –Procurem por qualquer coisa que possa nos ajudar a encontrar a garota! E mandem trazer os cães!
Os homens se espalharam pela casa. O delegado entrou em seguida. Wasser ainda gastou alguns segundos observando a cruz chamuscada, antes de acompanhá-los. Qual seria a probabilidade de um raio acertar uma cruz como aquela, justo quando quatro pessoas rezavam dentro daquela igreja? Certamente muito pequena.
A casa tinha um cheiro forte de mofo e poeira. Os quartos eram relativamente espaçosos e muito numerosos. O lugar lembrava o tipo de construção feita em partes, durante muitos anos, por alguém que entende muito de madeira mas muito pouco de arquitetura. Wasser permaneceu no primeiro andar. Ainda no corredor, abriu uma porta que dava em um cômodo pequeno e empoeirado, no qual só havia roupas mofadas e sapatos velhos. À frente e a esquerda, outro cômodo vazio. Havia mais um quarto pequeno. Wasser o vasculhou.
As luzes se apagaram de repente. Ele estava encolhido no escuro, tremendo de medo, enquanto os passos no corredor se aproximavam. A porta se abriu. Olhos vermelhos o encontraram. Ele pôde enxergar o vulto do homem segurando um cão muito grande pele coleira.
–Pega! –grunhiu o homem.
O cachorro avançou. Ele se arrastou pelo chão e se espremeu contra a parede para se proteger.
–Quieto! –berrou o homem.
O animal obedeceu. Ficou ali, parado, com os dentes à mostra e a bocarra a poucos centímetros de seu rosto. O bafo quente era desagradável, tinha cheiro de carne crua.
–Você é um maldito pecador. –disse o homem, e parecia muito irritado. –Eu vou lhe dar mais uma chance de se arrepender. Não me desaponte novamente!
A luz do dia voltou. Havia muita loucura naquela casa, certamente. Wasser saiu do cômodo vazio. Mais à frente, no fim do corredor, estava a cozinha. Nela, havia um velho fogão a lenha, uma geladeira vermelha muito antiga, dois armários grandes roídos por cupins, além de uma mesa quadrada construída com uma chapa de madeira grossa. Na parede oposta, um segundo armário, bem menor que os outros e aparentemente mais inteiro, protegia uma quantidade realmente absurda de medicamentos, quase todos frascos vazios de Haloperidol e Clopromazina. Havia também alguns frascos cheios e outros pela metade. Quase não havia outros remédios ali, apenas alguns analgésicos.
–Parece que alguém anda meio fora da realidade. –sussurrou Wasser, para si próprio.
O cômodo ao lado da cozinha era a sala. Nela a mobília parecia mais conservada. Havia um jogo grande de sofás com estampas florais, uma mesa de centro de vidro e uma estante grande cheia de livros empoeirados. Em um dos cantos, uma velha lareira. Uma bíblia gigante repousava sobre o console.
Apesar da destruição, tudo ali pareceria normal, não fosse o confessionário de madeira depositado no fundo da sala, bem abaixo da escada que levava ao segundo andar. Wasser o analisou atentamente. A coisa parecia fora de seu lugar, largada ali como algo esquecido. Era um móvel bonito, esculpido em madeira escura, coberto de gravuras em relevo representando anjos e santos. Por que aquilo não estava na igreja, onde teoricamente deveria estar? Aparentemente, alguém o havia removido, talvez para protegê-lo do fogo. Wasser abriu a cortina e entrou.
No momento seguinte, quando deu por si, tudo estava diferente. Suas mãos, agora muito sujas, tremiam quase convulsivamente. A luz do sol havia desaparecido. Era noite, e tudo a sua volta se resumia a escuridão, apesar da tênue chama da lamparina em algum lugar da sala. Sua voz surgiu diferente. Era definitivamente a voz de outra pessoa, uma pessoa confusa e amedrontada.
–Perdoe-me padre, porque eu pequei!
–Fale, meu filho! –respondeu a voz do outro lado da tela.
Era uma voz incrivelmente parecida com a primeira, mas soava gélida e sem ondulações, como a voz de uma máquina.
Wasser fechou os olhos por alguns segundos. Quando voltou a abri-los, era dia novamente. Ele não estava mais na casa velha, estava agora no primeiro andar de um prédio antigo, todo construído com pedras negras. Podia divisar o outro lado da construção, além do pátio de grama no qual alguns bancos de madeira se enfileiravam. Mais à frente, o sol de fim de tarde tocava o horizonte. Uma floresta densa se estendia por muitos quilômetros, vários metros abaixo. Eles estavam em um lugar extremamente alto, era possível perceber. Por todos os lados, ele podia ver rapazes uniformizados vestidos com calças escuras, camisas claras, coletes marrons e gravatas azuis. Era a hora do intervalo, ao que parecia, e os garotos formavam pequenos grupos, imersos em conversas animadas, ou pelo menos tão animadas quanto o lugar permitia. Em alguns momentos, homens enfiados em batinas escuras ou ternos surgiam nos corredores para desaparecer no momento seguinte.
–Conte-me seus pecados! –disse o homem do outro lado da tela, dentro do confessionário.
A frase, por alguma razão, soara ameaçadora.
–Há uma mulher. Ela me atraí, como uma mariposa é atraída pela chama de uma vela na escuridão.
–A carne é fraca, mas o espírito é forte. Toda a tentação deve ser combatida. Você sabe o que fazer.
Wasser pode sentir seu próprio coração acelerando. O medo se tornou mais intenso. Suas mãos, agora mais finas e razoavelmente limpas, surgiram outra vez diante de seus olhos e se agarraram como que em prece.
–Por favor, padre, ela é inocente. Eu...
–Não há inocentes. Você sabe o que fazer...
–Mas, padre...
–Faça... Ou eu o farei!
Novamente na sala, dentro do confessionário, David Wasser foi arrancado do transe pela voz do delegado.
–Wasser, veja isso!
Os outros policiais começavam a se reunir na sala, ainda vasculhando a casa em busca de algo que pudesse indicar onde a garota estava. O delegado apontou para um pequeno retrato largado sobre a estante. Nele, um homem de pouco mais de trinta anos, diante da já conhecida caminhonete vermelha. À sua frente, um menino de dez, talvez onze anos. Aos fundos, a fachada de uma casa verde. Jonathan e William Glander: o pai fanático e o menino que, alguns anos mais tarde, pelo que tudo indicava, mataria toda a família. Os dois se pareciam muito: olhos azuis, cabelos loiros e lisos, sobrancelhas quase unidas, lábios finos, rostos magros, ligeiramente quadrados, com malares bem definidos, queixos compridos e narizes aquilinos. O pai era visivelmente alto; o filho seguiria o mesmo caminho.
–Veja o fundo dessa fotografia! –disse o delegado. –Sem plantação alguma, sem morros. E isso aqui ao lado parece um banhado.
–É outra casa. –completou Wasser.
–E não fazemos a menor ideia de onde fica. A situação não poderia ser pior.
Um policial ofegante chegou à porta.
–Os cachorros encontraram algo lá fora, delegado.
–O quê?
–É melhor ver por si mesmo.
Todos partiram. Chegaram ao local menos de dois minutos depois.
–Mandem chamar os peritos! –ordenou o delegado, depois de um longo momento de choque.
–Já chamamos, senhor. –afirmou o policial.
–E precisamos de ajuda para cavar. Muita ajuda.
Uma clareira, no meio da plantação de milho, uma espécie de ferida na paisagem verde e amarela. Cravadas, no chão marrom escuro, algumas dezenas de pequenas cruzes de madeira. O delegado suspirou.
–Bem... Ao menos encontramos as outras mulheres.
Cerca de duas horas depois, os peritos terminavam os trabalhos preliminares. Vinte e dois corpos extraídos da terra. Todas mulheres horrivelmente mutiladas. Descansavam agora nos sacos plásticos negros que se estendiam por toda a clareira, aguardando sua viagem até suas novas sepulturas. Quem comandava o trabalho de exumação era uma mulher muito bonita de trinta e poucos anos, cabelos curtos e escuros, pele morena e olhos cor de mel. O delegado caminhou até ela.
–Eu não quero apressar seu trabalho, Melissa, mas o que você pode dizer?
–Não muito, ainda. –respondeu a legista, enxugando o suor da testa com o antebraço esquerdo. Ainda vestia suas luvas de borracha. –Todas mulheres morenas, pele clara e cabelos negros ou castanhos encaracolados. Todas se encaixam no perfil. Nenhuma delas foi morta há mais de dez ou doze anos. O último assassinato parece ter ocorrido há um ano e meio ou dois, pelo menos. O modus operandi é definitivamente o mesmo do assassinato da garota dez meses atrás. Os cortes são muito parecidos em todos os corpos. É o mesmo assassino, sem dúvida. Os cortes foram bastante precisos para desmembrar, mas são... rudes. Para dizer o mínimo.
–Então, ele não é nenhum médico? –perguntou Carlos Dias.
A legista suspirou, cansada mas também bastante assustada.
–Está mais para um açougueiro.
O delegado se voltou para David Wasser.
–Você estava certo: é um assassino em série. Mas há algo incomodando você.
–Eu esperava um assassino frio, sem sentimentos, mas ele demonstrou respeito com os corpos. Por quê?
–Respeito? –perguntou a legista. –E onde você enxerga respeito nisso tudo?
–Ele as enterrou. Elas não foram mortas aqui. Esse lugar não é o matadouro, é o cemitério. Isso é uma espécie de ritual.
–Ele pode ter tentado simplesmente esconder os corpos. –retrucou a mulher.
–Então por que as cruzes? –indagou Wasser.
A legista não conseguiu responder à pergunta, mas não parecia convencida.
–Elas foram estupradas, torturadas”: facas, ganchos, marcas de queimadura... Isso definitivamente não é respeito.
–Eu concordo.
–Então não estou entendendo onde você quer chegar, policial.
–Nem eu. –respondeu Wasser. –Nem eu.
Mas uma ideia lhe ocorrera. Era pouco mais que uma intuição, mas parecia fazer sentido: tudo não passava de um sacrifício, como nas antigas ofertas levíticas. Só que os animais, por alguma razão, foram substituídos por seres-humanos. Só aquele ritual de enterro não fazia sentido. Faria mais sentido queimar os corpos, ou...
–Esperar o fogo cair do céu. –sussurrou Wasser, para si mesmo, após observar, mais uma vez, a cruz chamuscada no meio da pilha de madeira.
Por sorte, ninguém o ouviu. Era o pensamento de outra pessoa invadindo sua mente, ele teve certeza.
–Vamos fazer um cerco! –ordenou o delegado, a dois de seus policiais. –Quero a cidade inteira isolada. Dividam as equipes e fechem todas as entradas. Os policiais que sobrarem devem iniciar as buscas. Organizem equipes com voluntários para vasculhar a floresta e cada fazenda abandonada da cidade. Um policial em cada equipe. Vamos encontrar essa garota! Não vamos descansar enquanto não a encontrarmos!
Capítulo 36
Quando ela abriu novamente os olhos, o sujeito estanho havia desaparecido. Amanda não sabia ao certo quanto tempo havia se passado. Era difícil distinguir delírio de realidade, de modo que ela se questionou se aquilo tudo não seria na verdade um sonho. Não, certamente não era. Não haveria tanta dor em um sonho. Todos os músculos de seu corpo latejavam, e ela podia sentir as batidas de seu próprio coração no ferimento em sua face esquerda. Sua garganta estava seca demais. A sede era severa, quase angustiante. Isso tudo sem falar no sangue que escorria de seu nariz, sem que pudesse fazer qualquer coisa a respeito.
A manhã se erguia com força do lado de fora, ela podia perceber graças à claridade que chegava tênue ao porão fechado. A mesa de madeira ainda estava ali, bem como os instrumentos cortantes. O sangue seco de fato assustava: transbordara da mesa por muito tempo e cobria quase todo o chão do porão. Quantas pessoas seriam necessárias para conseguir aquela quantidade de sangue, era impossível dizer ao certo. Certamente muitas.
Amanda ainda não conseguia se localizar direito. Estava presa ao teto de forma tão rente que suas costas podiam tocar o assoalho do andar de cima. Dali, o chão parecia muito distante. Suas mãos estavam presas a suas costas há tanto tempo que ela já não podia movê-las, nem mesmo senti-las. Talvez nem estivessem mais ali. Amanda lutou para afastar o pensamento e tentou se mover. Do andar de cima, vinha o som de passos e o que parecia uma discussão. Uma voz submissa, outra autoritária. Mas duas vozes incrivelmente parecidas, embora uma parecesse mais velha.
–Ela precisa morrer! Só assim seus pecados serão perdoados.
A frieza naquela voz era de gelar os ossos. Pela primeira vez até então, Amanda despertou completamente. Só então se deu conta do perigo. O medo encheu seus músculos de força, apesar da dor.
–Você já deveria ter aprendido. Faça, agora!
–O senhor sempre me diz isso. Sempre! Eu já deveria ter sido perdoado. Depois de tantas delas, não deveria mais haver pecado.
–Está questionando a vontade de Deus? –perguntou o homem mais velho, e a pergunta soou assustadora.
–Não... Não... Eu...
–Faça, agora!
O medo se transformou em um pavor profundo. Amanda se sacudiu violentamente, sem qualquer resultado. Precisava sair dali o mais rápido possível, ou acabaria morta. Antes de tudo, precisava se acalmar, ou não conseguiria nada, mas era difícil evitar o desespero.
Com muito esforço, ela girou os pulsos para que as mãos pudessem recobrar os movimentos. Os nós da corda cortaram sua pele, mas aquele era o menor dos problemas. Finalmente, Amanda conseguiu sentir os dedos, ao menos a maioria deles, então tateou a procura do que a prendia ao teto. A corda estava presa a um gancho afiado de metal. Com as costas apoiadas nas tábuas do assoalho, Amanda tentou alavancar o corpo para soltar a corda do gancho. Era impossível. A coisa estava muito bem presa, tão rente que não sobrava qualquer espaço para se desprender. Só havia um jeito: ela precisava cortar a corda.
Amanda experimentou a ponta do gancho com o dedo indicador de uma das mãos: a coisa cortou sua pele na mesma hora, era extremamente afiada. Aquilo era um bom sinal. Ao menos havia uma chance. Ela jogou as costas para trás e movimentou as pernas para conseguir um movimento de ziguezague. Tudo o que conseguiu, de início, foi apertar ainda mais os nós, o que lhe arrancou um gemido de dor. Porém, quando o primeiro fio da corda arrebentou, Amanda percebeu que estava funcionando. Mas tudo era lento demais, e ela sentiu vontade de gritar. E o que não daria para limpar aquele suor ardido dos olhos? Além de tudo, ficar naquela posição tanto tempo era angustiante, e suas pernas já começavam a tremer.
Passos soaram na escada, passos macios e lentos: alguém estava descendo. Amanda soltou o corpo e ficou imóvel, exatamente como estava antes de acordar. Fingiu ainda estar desmaiada, mas não sabia se conseguiria ser uma atriz convincente. Uma sombra se projetou sobre o porão e avançou. Um vulto surgiu no andar de baixo. Ela segurou a respiração e lutou para controlar os tremores. Fechou os olhos apenas quando não havia outro jeito. Antes de fechá-los, enxergou apenas aquele par de olhos brilhantes na escuridão.
Amanda prendeu a respiração e apertou os olhos com força. Não os abriria por nada. O sujeito se aproximou ainda mais, de modo que agora era possível sentir até sua respiração. O bafo quente do homem golpeou seu rosto, ao passo que o cheiro forte de perfume fez suas narinas arderem. Era um perfume caro, era possível perceber, mas o sujeito aparentemente havia esvaziado o frasco de uma só vez. Uma mão a acariciou. Amanda pode sentir os dedos em seu rosto, deslizando por seus cabelos, e teve de lutar para controlar a repulsa e a náusea. Mas o sujeito partiu em um movimento brusco e desapareceu, rapidamente, como um pesadelo muito ruim.
Amanda só abriu os olhos quando voltou a ouvir os passos na escada. Não muito tempo depois, a voz autoritária voltou a surgir no andar de cima.
–Quando voltar, quero vê-la em pedaços. Entendido?
Amanda estremeceu. Não houve resposta.
–Então vamos orar juntos e oferecer nosso sacrifício, exatamente como nos foi ordenado. Posso contar com você?
–Sim, padre.
–Ótimo! Agora, mate-a! Vou voltar em algumas horas.
Era assustador demais, mas aquela conversa bizarra a encheu de energia. Ela recomeçou os movimentos para escapar, com tanta vontade que cortou sua própria carne mais que a corda. Por sorte, a dormência não a deixara perceber. Os passos no andar de cima continuaram, mas agora eram mais agitados e iam de um lado a outro. Alguém voltou às escadas. Ela diminuiu os movimentos para não fazer barulho, mas não parou. Os passos, daquela vez, cessaram repentinamente e voltaram ao andar de cima. Alguém estava muito nervoso, ela percebeu, ou muito irritado. Os segundos se arrastavam. Mais um fio da corda arrebentou, e mais um. Faltava, pouco agora, mas a coisa resistia bravamente. Ela colocou mais força nas pernas para aumentar a velocidade. A corda se transformou em um fio muito fino e finalmente cedeu.
Estava feito. Amanda desabou. A queda foi dolorosa, mas mais silenciosa do que ela poderia esperar. Se não fosse pelo chão de terra batida, seus joelhos estariam esmigalhados. Com dificuldade, ela se apoiou sobre os punhos cerrados para buscar forças. Foi inútil. Seus braços e suas pernas não paravam de tremer. Ela estava tonta demais para levantar. Algo ácido e quente se agarrou a sua garganta, e foi preciso muita força para fazer a coisa sair. Ainda assim, ela conseguiu ser silenciosa.
Agora era preciso respirar fundo. A tontura, pouco a pouco, cedeu. Amanda se pôs de pé lentamente. Foi preciso esperar um pouco para conseguir firmar as pernas, mas meio minuto depois ela já estava forte o suficiente para se arrastar para fora daquele lugar. A porta do porão estava destrancada, Amanda percebeu. Foi fácil abri-la. O sol a golpeou como uma explosão. Seus olhos demoraram para distinguir algo além da claridade cortante. A primeira coisa que percebeu foram as árvores gigantescas que cercavam a casa. O ar gelado feriu suas narinas, mas era um alívio deixar para trás aquela atmosfera fétida. Agora, o que chegava até seus pulmões era o odor de terra molhada e o perfume acre das folhas e do mato, um cheiro que seria agradável em qualquer outra situação, mas não naquele momento. A quantidade de árvores a sua volta indicava que o socorro estava muito longe.
Como era difícil correr! Ela avançou sem olhar para trás. Quando cruzou o pequeno gramado que separava a casa da floresta, caiu sem forças e se arrastou até a proteção das árvores e do mato. Ainda assim, não se sentiu segura. Pela primeira vez desde que acordara, Amanda prestou alguma atenção em seu próprio estado. Alguém arrancara a parte de baixo de seu pijama e a parte de cima estava suja e rasgada. Suas pernas estavam arranhadas. Seu ventre doía imensamente, mas era a cabeça que mais lhe preocupava. Seu nariz ainda sangrava sem parar, e ela nem queria imaginar o estado do próprio rosto.
O cansaço era gigantesco, e a vontade de permanecer ali, estendida sobre o chão úmido e gelado da floresta, era quase irresistível, mas ela sabia que precisava fugir, por isso fez um grande esforço e se arrastou pela floresta até estar o mais distante possível da casa, então se ergueu uma segunda vez, agora um pouco mais disposta, e gastou toda a energia que ainda havia em suas pernas para correr. Mas não conseguiu ir muito longe e precisou se atirar ao chão segundos depois, quando a porta do casarão se abriu violentamente.
Por entre as árvores, Amanda o viu. O ajudante de Otto. Agora ela o reconhecia claramente. O sujeito gritou de raiva, com uma espingarda em punho, e partiu para o mato. Estava na direção errada, mas era difícil acompanhar seus passos através da floresta densa, por isso Amanda decidiu que precisava ser silenciosa. Agachada, com o corpo dobrado em dois, ela partiu. Podia ouvir o barulho de galhos secos se partindo não muito longe dali. Por um momento, tudo ficou completamente silencioso. Até o canto dos pássaros desapareceu. Ela também parou e esperou. Chegou a avistar o sujeito se afastando, olhando para a direção oposta, o que lhe deu alguma esperança. Mas ela própria acabou pisando em um galho fino e precisou se atirar ao chão, quando o sujeito correu em sua direção.
Ele se aproximou. Amanda se abaixou ainda mais, a ponto de formar uma só substância com o mato alto, a lama e as folhas podres. Um arbusto a encobria parcialmente. O sujeito estacou alguns metros a sua frente, olhando em todas as direções. Os olhos do homem vibravam, e sua boca tremia. O sujeito espumava de ódio, como um cão raivoso, mas Amanda percebeu que ele parecia mais assustado que irritado. Então aconteceu: o sujeito olhou em sua direção, direto para ela. Amanda se preparou para fugir, mas percebeu, no mesmo instante, que ele não a havia notado. Parecia um milagre. O sujeito ficou parado, em silêncio, por um longo tempo, observando as árvores e prestando atenção nos ruídos a sua volta. Amanda não fazia ideia da própria aparência naquele momento, nem no quanto estava suja, uma mescla de pó, sangue seco e lama, que servia como uma camuflagem perfeita.
Algo se arrastou pelo mato, alguns metros a sua direita. Era um animal pequeno, Amanda percebeu pelo ruído, mas não teve coragem de virar o pescoço, ou poderia ser notada. O sujeito gritou de raiva e explodiu o animalzinho com um tiro certeiro. O bicho, fosse lá o que fosse, nem teve tempo de gritar. Amanda recebeu uma grande quantidade de sangue e vísceras no rosto, mas se manteve estática como uma pedra. Se se movesse, teria o mesmo fim do pobre animal, talvez ainda pior.
Aparentemente mais calmo, o sujeito partiu novamente na direção da casa. Amanda o observou por um bom tempo: era um sujeito estranho, nervoso e bastante irritadiço, como uma espécie de maníaco-depressivo, mas num grau muito acentuado. Quando ele estava suficientemente afastado, Amanda fugiu na direção oposta, mais escorregando que correndo, silenciosa como um fantasma. No meio da mata, ela ainda se deparou com uma clareira e com um grande barracão de madeira. Havia marretas, martelos e serras de todos os tipos e tamanhos, mas tudo parecia abandonado há um bom tempo. Mais à frente, um aclive surgia na mata. Amanda o escalou com velocidade e voltou a se agachar em seguida, para não permanecer à vista por muito tempo.
A alguns metros de distância, depois de um declive acentuado e uma nova elevação, era possível visualizar a estrada estreita de asfalto que rasgava a floresta. Era o primeiro sinal de salvação. Amanda conhecia aquela estrada: não era movimentada, mas tão pouco era deserta. Dali, ela poderia se orientar até a cidade. No lado oposto, o sujeito se afastava. Daquela distância, já não poderia ouvi-la. Amanda prendeu a respiração e correu alucinadamente. Alguns segundos depois, e ela já subia o morro, com a velocidade de uma bala. Encontrava-se a poucos metros da estrada agora. Em sua mente, uma estratégia era traçada: ela costearia a estrada, escondida, até algum veículo aparecer. Tudo daria certo.
Repentinamente, porém, algo a derrubou, algo que se prendeu com violência a sua perna, a ponto de fazê-la gritar de dor. Pele e músculos foram dilacerados. Era um cão negro absurdamente grande. Os olhos vermelhos a encaravam com muita raiva, enquanto sua perna era sacudida com violência. Amanda nem teve tempo de pensar. Rosnados graves surgiram a sua volta. Vinham de todas as direções. Mais criaturas se arrastavam pelo mato. Segundos depois, outros dois cães a agarraram com fúria pelos braços. Ela gritou ainda mais alto. Não conseguia mais se conter. Estava imobilizada, e nada do que fizesse tinha qualquer efeito sobre os bichos. Não adiantava se contorcer, chutar ou berrar. Dentes poderosos a prendiam e a mastigavam.
Mais cães se aproximaram. Aqueles não a atacaram, apenas rosnaram e mostraram suas presas para deixar claro quem mandava. O último cão a aparecer era imenso, mais robusto e muito mais alto que seus irmãos, que já eram enormes. Aquele não mostrou os dentes, não fungou e não rosnou: apenas se aproximou e a observou com um olhar indiferente, antes de medi-la de cima a baixo, como que calculando as probabilidades de reação.
Um assobio baixo ecoou pela mata, e os cães a soltaram e se reagruparam em meio segundo. Outro assobio, e os animais estacaram como estátuas. Lembravam um batalhão em posição de sentido. Amanda os observou sem acreditar. Tivera um vira-lata, uma vez, e nunca conseguira fazer o bicho dar a pata. Aquilo era surreal demais. Um vulto de olhos brilhantes emergiu da floresta e caminhou em sua direção. Amanda só teve tempo de erguer os olhos. Uma nova pancada, muito mais forte que a primeira, a apagou instantaneamente. Aquela a ferira de verdade. O mundo escureceu.
Capítulo 37
Ela estava flutuando novamente. Seu corpo não tinha peso. O chão passava diante de seus olhos. Havia apenas uma vaga percepção de estar sendo carregada por alguém. A última pancada tivera sobre ela o efeito de uma overdose de calmantes. Até a dor de cabeça desaparecera. Tudo agora era um vazio assolador. Mas a sensação de sentir o próprio corpo morrendo aos poucos era levemente desagradável.
O ajudante do velho Otto a soltou. Estavam novamente no porão escuro. O sujeito se movia de um lado a outro. Estava irritado. Parecia quase magoado.
–A culpa é sua! –gritou ele, indignado. –Sua! Se você não tivesse fugido! Agora... Agora não há escolha.
Amanda teve pena do sujeito. Era medo demais para uma só pessoa. Mas ele parecia estar muito longe. Sua face era um borrão.
–Por favor, me ajude! –pediu Amanda, com a voz muito fraca.
–Não! Não! Você deve morrer.
O sujeito tinha algo nas mãos. Era uma marreta. Parecia pesada. Ele a ergueu. Amanda observou a coisa monstruosa. Em sua mente, havia apenas a sutil percepção de que o sujeito estranho estava prestes a bater em algo, ela apenas não conseguia definir exatamente em quê. Ele suspirou para tomar coragem. Não parecia muito confiante.
–Eu sinto muito!
Ele fechou os olhos e estava prestes a desferir um golpe pesado, mas algo o deteve. Batidas à porta... Ele não conseguia acreditar. Ninguém aparecia ali há décadas. Ele ignorou e tomou fôlego mais uma vez, mas não conseguiu desferir o golpe. Não conseguiria, de qualquer jeito, então resolveu atender quem quer que fosse primeiro, antes de continuar.
Capítulo 38
Aquele era seu último mês de trabalho. O sargento Henrique Borges tinha setenta e dois anos, ossos fortes e uma ficha impecável como policial. Em quarenta anos de trabalho no vigésimo batalhão de polícia, jamais se envolvera em tiroteios, brigas ou intrigas com traficantes, mas também jamais deixara a face à mostra. Essa era sua maior virtude: era o tipo de homem que sabia evitar problemas, ao contrário de alguns de seus colegas metidos a heróis. Tornara-se melhor naquilo com o passar dos anos, enquanto seus cabelos passavam de um tom ligeiramente grisalho ao branco absoluto. Permanecera, durante os últimos vinte anos, batendo carimbos atrás de um balcão, mas o atual caso exigia da polícia tudo o que ela tinha a oferecer, e ele era um dos melhores, segundo seu tenente.
Naquela cidade, nos anos em que esteve na polícia, Henrique Borges vira e ouvira a respeito de tudo: bêbados, ladrões, assaltantes, estupradores e até assassinos, mas daquela vez era diferente. Havia um maníaco a solta, um perigo como a cidade jamais enfrentara. A cidade precisava de sua coragem.
A viatura mergulhou em uma estrada de asfalto bem mais deserta do que a rodovia da qual havia saído e seguiu por quase oito quilômetros até alcançar mais um sítio velho e destruído. A cidade estava cheia deles, mas aquele era certamente o pior de todos. O sargento Borges ainda se lembrava do antigo proprietário daquele lugar: Yuri Barbosa. O velho era de assustar. Entre as crianças, havia a lenda de que o homem era um vampiro, talvez um zumbi. Até ele, que já era mais que crescidinho quando o sujeito morreu, chegou a acreditar na história por um tempo.
A propriedade era a última coisa naquela estrada e ficava realmente no meio do nada. Em volta, apenas árvores muito altas e lodo. Nada, além do mato alto, crescia ali há um bom tempo. Cravado no lodo, estava o casarão de madeira. Uma das laterais parecia incrivelmente fora de prumo. As janelas já não tinham vidro, e o que havia de tinta não passava de um resquício do verde que um dia cobrira a madeira. Ao lado da casa, alguns carros velhos se amontoavam: a maioria deles, de tão destruídos, já não podiam ser chamados de carros. A caminhonete vermelha, porém, chamava a atenção e ainda parecia capaz de se mover, mas o policial não deu atenção ao fato.
O lugar era um cemitério. O sargento duvidava que algo ainda vivesse ali, ainda mais algo humano. Bateu à porta por um longo tempo apenas para se certificar. Ficou surpreso quando alguém apareceu. Era um sujeito alto, jovem, visivelmente forte, vestindo um macacão cinza surrado e cheio de manchas marrons. Um mecânico, certamente. Sua pele era clara, mas o sol a queimara bastante, pelo visto sem muito cuidado, durante muitos anos. Seus cabelos embaraçados tocavam os ombros, e fazia algum tempo que o sujeito não aparava a barba. Enfim, a aparência daquele pobre coitado combinava perfeitamente com o lugar, mas o sargento se sentiu aliviado por ver alguém. A solidão estava começando a incomodá-lo. Lugares desertos eram sempre um tanto assustadores.
–Bom dia, meu jovem. –disse o policial, distraído, enquanto puxava o bloco de anotações. –Estamos procurando uma moça desaparecida, provavelmente raptada. Você percebeu alguma coisa estranha nos últimos...?
–Eu não sei de nada. –grunhiu o homem estranho.
Aquilo não era uma resposta, era uma confissão. Pela primeira vez até então, o policial prestou alguma atenção real no sujeito: olhos agitados, potencialmente violentos, mãos nervosas, respiração pesada. O pior: mais alto, mais jovem e realmente muito mais forte do que ele. Fora o próprio sargento que sugerira que os homens se dividissem a fim de agilizar as buscas. Como se arrependia disso agora! Só então o velho conjecturou que as manchas avermelhadas no macacão do sujeito poderiam muito bem não ser óleo. E havia a caminhonete. Ouvira algo no batalhão a respeito de uma caminhonete grande e vermelha, mas não se recordara disso até aquele momento. Ele estava, evidentemente, diante do sequestrador assassino. Vinte e duas vítimas, pelo menos. Contando com ele, seriam...
O velho policial agora podia ouvir as batidas do próprio coração. Sua testa começou a escorrer como vela quente. Era preciso agir, e muito rápido. Ele ainda pensou em sacar a arma e render o criminoso, mas havia deixado o trambolho no porta-luvas do carro como de costume. A coisa era muito pesada para ficar carregando para cima e para baixo. Nunca imaginou que fosse realmente precisar dela. Então o velho policial fez a única coisa que podia fazer: correu para a viatura. Correu alucinadamente, o mais rápido que a idade permitia, e ainda mais, torcendo para o sujeito não segui-lo, mas sem coragem de olhar para trás. A distância parecia enorme agora, e realmente era. Ele chegou ao carro a tempo de ver o assassino desaparecendo no retrovisor e escorregando como uma sombra para o interior do casarão. A luta agora era contra o chaveiro, que teimava em saltitar entre seus dedos. Ele encontrou a chave com dificuldade. Tentou ligar a viatura, mas o carro falhou. Tentou novamente, e outra vez nada aconteceu. Na terceira tentativa, o ruído reconfortante do motor soou acima do canto esganiçado dos pássaros. Mas o alívio durou pouco. O cano gelado de uma espingarda tocou delicadamente sua fronte. O sujeito era silencioso e muito, realmente muito rápido. Era o fim.
O velho era mais pesado do que parecia. Ele o arrastou até o porta-malas da viatura. O sangue no painel e na janela chamava a atenção, mas o veículo não podia permanecer ali. Carros de polícia eram sempre rastreados, ou ao menos deveriam ser. Era preciso levar aquela coisa para longe. Após guinchar a viatura à caminhonete, ele partiu. A garota não iria mesmo a lugar algum. Não agora, não no estado em que estava. Ao menos agora ele tinha uma desculpa para não precisar esmagar sua cabeça.