Nona Parte
Capítulo 53
O barulho do respirador era extremamente desconfortável, até mesmo a distância. Contudo, mesmo ao lado do aparelho, Amanda nem piscava. Estaria imóvel não fosse pelo movimento artificial dos pulmões. Perdera mais peso naqueles poucos dias do que parecia possível. Era um ser frágil, ali, jogada sobre a cama estreita, bem diferente da mulher que sempre fora. Bem diferente da mulher que ele conhecia tão bem.
Na sala ao lado, pouco acomodado sobre uma cadeira desconfortável de plástico, através da divisória de vidro do quarto da UTI, Eric observava a noiva estendida sobre o colchão. Amanda estava ferida demais. Era difícil alimentar qualquer esperança vendo-a daquele jeito. Ele se sentia impotente, desolado como uma criança que se dá conta da sua pequenez.
Depois de abaixar a cabeça por alguns segundos, rezando pela noiva, ou ao menos o mais perto disso que conseguia, Eric sentiu uma mão pesada sobre seu ombro e apenas ergueu os olhos cansados para descobrir quem estava ali. Era o delegado.
–Como vão as coisas? –perguntou Carlos Dias.
–Na mesma. Quatro dias, e ela ainda não moveu um só dedo. Os médicos disseram... Disseram que ela pode não acordar.
Eric esfregou os próprios olhos com força, estava cansado demais. Seu corpo alto se dobrava em dois. Parecia ter-se enrijecido daquele jeito, como alguma versão pós-moderna do Pensador de Rodin. E ele também não parecia muito bem de saúde: estava pálido demais, suava muito, e uma quantidade considerável de sangue ainda escorria do ombro enfaixado.
–As enfermeiras disseram que você ainda não foi para casa. –afirmou o delegado. –Você não pode ficar nessa cadeira para sempre, rapaz! Precisa descansar.
–Os médicos abriram o crânio dela. O crânio, Carlos...
O delegado lançou um olhar ainda mais atento sobre Amanda e não pode conter um tremor. A garota já parecia morta. Não, ela não podia morrer. Não depois de tudo.
–Ela pode nunca mais abrir os olhos. –concluiu Eric. –Mas, se ela o fizer, quero estar ao lado daquela cama. Não vou sair daqui em hipótese alguma.
–Eu entendo. Mas, se precisar de alguma coisa, por favor, me ligue! E vou mandar alguém trazer uma poltrona para você.
–Eu agradeço...
O delegado ainda suspirou antes de partir. Também se sentia impotente. Era mais fácil lidar com as vítimas quando elas ainda precisavam ser salvas. Eric abaixou os olhos cansados. Sentia-se realmente exausto. Chegou a apagar, não sabia por quanto tempo, provavelmente segundos. Quando voltou a si, percebeu que havia alguém a seu lado, alguém que entrara e permanecera em silêncio, com muito respeito. Supôs que fosse o delegado novamente, ou alguma das enfermeiras, mas se enganou.
–Tenente. –disse ele, e se ergueu num salto.
–Não mais. –respondeu Marcos Hasse. –Sou apenas um civil agora. Você sabe disso, sargento.
–Velhos hábitos, senhor.
Por um momento, os dois ficaram ali, apenas observando a garota do outro lado do vidro.
–O desgraçado a machucou de verdade. –afirmou Marcos.
Eric apenas meneou a cabeça afirmativamente. Marcos Hasse sempre fora um sujeito honesto, e sua honestidade sempre soara branda, natural. Fora a primeira pessoa a admitir o óbvio.
–Eu não posso viver sem ela, tenente. Não posso! Ela vai morrer...
–Não, ela não vai. –afirmou Marcos, e sua voz soou carregada de certeza. –É uma garota forte. Se ela fosse desistir, já o teria feito. E não desista dela antes do fim, sargento! É uma ordem.
–Não, eu não vou desistir dela. –sussurrou Eric, e percebeu um ligeiro tremor nas pálpebras da noiva. –Nunca!
Capítulo 54
David Wasser caminhava mais uma vez pelo corredor úmido e escuro do necrotério. Encontrou a legista em outra sala daquela vez, uma sala fria e muito bem iluminada, com uma grande mesa de metal ao centro. Havia um corpo grande, coberto por um lençol, sobre a mesa. A legista analisava um crânio velho e queimado apoiado em uma espécie de bancada de madeira.
–Mandou me chamar? –perguntou o policial.
–Mandei sim. –respondeu a médica, estendendo-lhe um par de luvas de borracha. –Ponha isto!
Wasser obedeceu. Era difícil não obedecer àquela mulher.
–Sabe de quem é este crânio? –perguntou ela.
–Yorick. –arriscou Wasser.
A médica lhe lançou um olhar sem muita paciência e lhe estendeu a coisa. Wasser apanhou aquela cabeça carbonizada e não pode deixar de se sentir realmente um pouco como Hamlet. Era incrível como todas as pessoas ficavam parecidas depois de mortas. Mas a marca no palato daquele crânio era bastante identificável.
–Jonathan Glander. –concluiu Wasser, devolvendo a caveira à médica. –Você mandou exumar?
–É, eu mandei. Este crânio pertence ao corpo que estava naquela igreja, no dia do incêndio. A questão é que eu percebi algo que não havia percebido pelas fotos.
–O quê?
–Simplificando para você: os outros corpos tinham bastante carne quando pegaram fogo, mas este não. Este quase não tinha mais nenhum músculo ou tecido mole grudado aos ossos. Existem algumas possibilidades para explicar isso. Uma delas...
–Ele já estava morto há algum tempo quando aquele lugar se incendiou.
–Há uns dez anos, no mínimo. –concluiu a médica. –A primeira coisa que eu imaginei foi que Jonathan Glander havia arranjado alguém com o mesmo problema de formação labial para colocar naquela igreja e enganar os peritos. Mas, veja isso...
A mulher caminhou até a grande mesa de aço e descobriu o corpo sobre ela. Era o assassino. Estava diferente da fotografia na casa, mais velho e mais pesado, mas não necessariamente mais gordo. Parecia, na verdade, ter se exercitado bastante em todos aqueles anos. A quantidade de músculos impressionava. Era quase como olhar para o pôster de um daqueles lutadores de luta livre daqueles canais baratos de TV: um homem verdadeiramente grande, realmente alto, forte o suficiente para desafiar até mesmo alguém com o porte do delegado Carlos Dias para uma queda de braço, embora Wasser duvidasse que alguém pudesse vencer o delegado nesse quesito. Mas, diferente do delegado, não havia gordura ali, apenas músculos e mais músculos. A batina falsa ocultara o porte atlético do assassino durante todos aqueles anos, fazia o homem parecer gordo, enquanto os óculos espessos ajudavam a transmitir certo ar de pateta inofensivo e escondiam os olhos verdadeiros. Por falar em olhos, os do falso padre haviam sumido. No lugar, havia agora apenas duas covas escuras e muito profundas. Wasser não tinha nenhuma dúvida sobre quem havia feito aquilo.
–Vá em frente! –disse a médica, apontando para o cadáver. –Levante os lábios.
Wasser ainda pensou em obedecer, mas desistiu. Tocar aquele corpo não era uma boa ideia, não enquanto houvesse outras pessoas no mesmo cômodo.
–Pode fazer você. –respondeu ele, meio sem graça. –Se não se importa.
A médica o analisou por alguns segundos. Não, o policial definitivamente não tinha medo de corpos, ou nojo, ou qualquer coisa do tipo. O motivo para temer aquele corpo devia ser outro, e ela realmente não desejava tirar a prova, não depois da última vez, então levantou ela mesma os lábios do cadáver.
–Nada. –concluiu Wasser. –Nenhuma cicatriz.
–O que me leva à pergunta: se este crânio é realmente de Jonathan Glander, então quem é este homem?
–Eu não sei. –respondeu Wasser. –Mas se esse homem assassinou o padre Saimon Becker e tomou seu lugar durante tempo, não há motivo nenhum para não ter feito isso antes.
–Então Jonathan Glander foi só mais uma vítima? –perguntou a legista. –Talvez a mais antiga.
–Não, eu não acho que ele foi a primeira vítima. –respondeu Wasser. –Mas o homem que tomou seu lugar estava ali há certamente muito tempo, muito antes até mesmo do nascimento de William e da irmã mais velha. Assumiu a personalidade por décadas. E escondeu o corpo do verdadeiro Jonathan Glander para poder usá-lo quando precisasse dele.
–Escondeu o corpo para usá-lo? –perguntou a legista, assustada. –Por quinze anos, talvez mais?
–Não deve ser coincidência este crânio estar quebrado, com um bom pedaço faltando da parte de trás da cabeça? –concluiu Wasser.
–A perícia disse que uma das vigas da igreja caiu sobre o esqueleto e partiu o crânio. Mas tudo pode ter sido armado. Ele pode ter pensado nisso para disfarçar um assassinato anterior.
–O falso padre, fosse quem fosse, era extremamente pragmático. Ele não deixaria pontas soltas em seu plano.
–Ele sabia o que estava fazendo o tempo todo. –concluiu a legista. –Estava prevendo cada passo da polícia. Prevendo tudo o que poderia incriminá-lo ou indicar um crime, mesmo muitos anos depois. É loucura demais.
–Sim, é loucura demais. Mais uma loucura simétrica e planejada. Obsessão, insensibilidade, planejamento detalhado, com um foco muito bem estabelecido. Psicopatia aguda, apesar dos distúrbios psicóticos.
–Seria um quadro extremante raro. –afirmou a médica, observando, extremamente apreensiva, o cadáver sobre a mesa. –Um assassino frio e inteligente, apesar da loucura. Alguém assim poderia matar por muitos e muitos anos sem deixar realmente nenhum indício, nem mesmo as pistas de seus rastros. Ninguém nem mesmo saberia que havia um criminoso, a não ser por uma grande jogada do destino, que parece que foi o nosso caso. Quantos crimes mais esse homem cometeu?
–Eu não sei. –respondeu Wasser, encarando as covas onde estiveram os olhos. –Mas preciso mergulhar até o fundo disso. Preciso descobrir tudo o que aconteceu naquele lugar.
Capítulo 55
Era a primeira vez de David Wasser naquela casa. Ele a observava, ainda no lado de fora, a alguns metros de distância, e não parecia muito disposto a se aproximar. Não sem motivo, é verdade. Mas como explicar aquilo a alguém? A casa se contorcia, chorava, gritava. Brotando das paredes destruídas, fantasmas e espectros feitos do nada, formas sem corpo que desejavam muito fugir, mas estavam condenadas para sempre às próprias lembranças. Um verdadeiro Portão do Inferno de Rodin, feito não de ferro e bronze, e sim de medo e dor. E algo além de tudo aquilo, algo muito pior: o mal. Pura e simplesmente, o mal. Estava entranhado à madeira, enterrado nos alicerces, arrastava-se pelas sombras como algo vivo, algo perigoso. Quantas verdades escondidas, condenadas ao esquecimento? David Wasser se aproximou, um passo de cada vez. Podia ouvir os gritos em sua mente, mas eram tantos e soavam de forma tão caótica que era difícil diferenciá-los uns dos outros. Alguns eram realmente muito antigos. Ele sacudiu a cabeça para afastar todos aqueles sons e avançou.
Mal deu dois passos. No momento seguinte, o dia frio tornara-se quente como uma tarde de verão. Ele estava diante da mesma casa. Não, não era a mesma casa, era a mesma casa anos antes, muito mais inteira, embora o desleixo ainda assim fosse visível. Havia um homem a sua frente: setenta anos, talvez um pouco mais, malcuidado, barba espessa, grisalha, que crescera a esmo, o mesmo para o cabelo, roupa amassada, olhos de bebedeira e a expressão de um psicopata sádico no rosto grande e vermelho. Um sorriso brotou em seus lábios finos, revelando os dentes escurecidos pelos muitos anos de fumo. O homem lhe estendeu uma marreta, então ordenou:
–Bata com força, na cabeça!
Havia uma pequena ovelha ali, amarrada. Parecia tranquila na presença dos dois homens.
–Por quê? –ele perguntou, analisando a face do velho. O homem ainda era um pouco mais alto do que ele, mas em breve isso mudaria.
–Por que você mora na casa de um criador de ovelhas e precisa aprender a matá-las.
O velho soltou uma risada alta e seca:
–O que foi, está com pena do bicho?
–Pena? –ele perguntou. Ouvira aquela palavra muitas vezes, mas de fato não conseguia entender o significado exato. –Não. Mas esse não é o jeito certo. O sangue precisa correr, fluir.
–Você e esses livros da sua mãe!
–É a Bíblia.
–Que seja! A Bíblia manda obedecer aos pais. E eu estou mandando: bata na maldita ovelha!
Ele apanhou a marreta pesada e ainda observou o animal por algum tempo, relutante. O bicho balia baixo, contente com a grama fresca.
–Bata com força! –repetiu o velho. –Na cabeça.
Ele obedeceu. Ergueu a marreta com dificuldade e bateu com muita força. O impacto foi forte, e o ruído característico de ossos se estilhaçando soou alto no meio da manhã silenciosa. O animalzinho sentiu o golpe e foi acometido por um leve tremor, que logo se transformou em uma convulsão violenta. Estava feito! O bicho desabou, já em seus últimos espasmos.
Mas que sensação era aquela que brotava dentro de si. Seu coração parecia querer saltar do peito. Um sorriso espontâneo brotou em seus lábios. Era a primeira vez que sorria de verdade, pelo que conseguia se lembrar.
–E, então? –perguntou o velho. Os olhos alegres ainda exibindo o brilho sádico. –Como se sente?
–Ótimo! –ele respondeu. –Realmente ótimo!
E era verdade.
Wasser se apanhou novamente na mesma tarde gelada. Estar na mente daquele sujeito, envolto em toda aquela loucura, não era algo agradável. Pelo menos não para alguém normal. Ao lado da casa, amontoavam-se os restos do que fora uma edícula, pouco mais que um punhado de tijolos e madeira podre. No meio dos destroços, uma mesa destruída, algumas cadeiras de palha e o aço retorcido de um velho fogão a lenha. Wasser sentiu as palmas das mãos formigando. O formigamento logo se transformou em uma dor intensa. Seus olhos se escureceram por meio segundo.
Era uma manhã de outono, algo fácil de perceber pelas folhas avermelhadas das árvores. Ele era agora pouco mais que uma criança. Uma garota muito bonita, pouco mais velha do que ele, deixou a casa e caminhou até o canto oposto da propriedade com um balde na mão. Ele a observou manobrando a roldana do poço. O vestido florido subiu alguns palmos, revelando as coxas rosadas. Escondido, ele observava cada detalhe. Seu coração palpitou dentro do peito. Era uma sensação estranha aquela.
–Eu sabia. –grunhiu a mulher, inesperadamente, arrancando-o do transe.
Ele se virou. Lá estava ela, na porta da casa, alta e muito magra, com seus cabelos longos e grisalhos e sua pela parda e fosca. Era a megera novamente. Ela nunca o deixava em paz. Os olhos negros faiscavam de raiva. A face enrugada se contraía numa careta do mais puro ódio. A mulher caminhou em sua direção e o ergueu do chão como muita facilidade, como se ele fosse um gatinho. Lutar contra ela era impossível.
–Eu sabia! –repetiu a mulher, realmente histérica, e o arrastou até o fogão. –Foi o diabo que fez você! Foi o diabo! Mas eu vou lhe dar uma lição.
Com uma força quase sobre-humana, ela agarrou seus braços e espremeu suas mãos contra a chapa quente do fogão. O cheiro de carne tostada se ergueu no ar. A sensação foi dilacerante, mas ele não soltou um só gemido. A dor apenas o fascinava, o excitava. Ele encarou a mulher. A expressão de ódio e a falta de qualquer sinal de sofrimento em seus olhos fizeram com que ela o soltasse no mesmo instante. Ele suspirou aliviado, mas não desviou os olhos assassinos.
–Você é um diabinho! –exclamou a mulher, visivelmente assustada, tentando, porém, manter a compostura. Então voltou para dentro de casa.
Wasser a seguiu. Ou, ao menos, tentou segui-la. Dentro de casa, contudo, já era noite. Uma noite bastante gelada, por sinal. Lamparinas iluminavam a sala. O velho e a mulher conversavam, embora fosse mais um monólogo. Escondido nas sombras do corredor, ele os ouvia.
–Eu avisei. –disse a mulher. –Você não devia tê-la trazido para esta casa. O pecado agora está entre nós, entre nossas paredes.
–Ela é nosso sangue. –respondeu o velho, sentado em sua poltrona. Não parecia muito disposto a conversar. –O lugar dela é aqui. E não quero mais ouvir você falando em pecado novamente! O garoto ficou maluco por causa dessa sua conversa. É culpa sua!
Repentinamente, era dia novamente. Um dia morno e ensolarado, com uma ligeira brisa fresca que agitava sutilmente as copas das árvores. O velho o chamou da rua:
–Eiiii, imprestável, venha aqui!
No lado de fora, algumas carcaças de ovelha se esparramavam pela grama. Também havia uma grande mesa de madeira coberta de sangue, apoiada sobre dois cavaletes.
–Me ajude a cortar! –mandou o velho.
Ele obedeceu e jogou uma das carcaças sobre a mesa sem o menor esforço. Estava crescendo rápido, ficando mais forte. As facas começaram a fazer seu trabalho. Ele destrinchava os animais com quase tanta habilidade quanto o velho. A uns duzentos metros, na entrada da propriedade, um rapaz e uma moça conversavam animadamente, parados ao lado de uma caminhonete vermelha reluzente.
–Não entendo, porque ele não trabalha? –perguntou ele, apontando para o rapaz ao lado do carro.
–Porque ele é rico, e nós somos pobres, quase miseráveis. –respondeu o velho. –Ele morar aqui é um favor para nós, não para ele.
–Mas não precisava ter comprado aquele carro. Ele deveria ser nosso, não dele.
–Precisamos agradá-lo, seu idiota. Ele já fez dezoito. Já pode ir embora. Não podemos deixar, ou vamos à falência.
Ele encarou a face do homem, apontou para a garota e completou:
–Então você a ofereceu a ele.
–Eu não a ofereci. –retrucou o velho. –Ela se ofereceu. Isso é bom para nós.
Por um momento, ele apenas observou o rapaz parado ao lado da caminhonete vermelha reluzente. Não sentia inveja ou mesmo raiva. Aliás, não sentia nada além de uma ligeira sensação de injustiça.
–O Senhor vai nos recompensar! –afirmou ele.
–É isso aí! –respondeu o velho, depois de arrebentar um osso com sua faca grande e afiada. –O Senhor vai nos recompensar por sermos servos interesseiros e vigaristas.
–O senhor não acredita em Deus. Nunca acreditou.
–Não gosto da ideia de existir um Deus.
–Por quê?
–E por que você acha, seu idiota? Se realmente existir um Deus lá em cima, estou ferrado. Todos nós estamos.
Ele não entendia os argumentos do velho, eram tortos demais. Observou mais uma vez o garoto e a garota. Estavam mais perto um do outro agora. Os corpos quase se tocavam. Uma verdadeira depravação! Wasser tentou visualizar o rosto do casal, mas foi em vão. Estavam muito longe. Sair do lugar era impossível, afinal a lembrança não era sua. Então tudo desapareceu.
Estava escuro agora. Havia uma fogueira em um dos lados da propriedade, a algumas dezenas de metros da casa, e alguns adolescentes assavam espetinhos no fogo. Fazia muito frio. Havia música em algum lugar, mas era difícil identificar a fonte. Parecia um violão. Alguém cantava algo. A voz desafinada subia e descia tons a todo o momento, mas não chegava a ser uma voz ruim.
Alguns garotos observavam, assombrados, os cães gigantescos presos no enorme canil. Os animais latiam e rosnavam incomodados. Estavam a ponto de arrebentar um dos portões. Ele se aproximou dos outros garotos.
–Ah, cara, esses bichos são enormes! –exclamou um dos rapazes.
Outro deles, que parecia um pouco mais velho que os demais, caminhou até o outro canil. O segundo canil era pouco menor que o primeiro, ficava bastante afastado da casa e tinha grades de aço reforçando as telas, como se algo realmente perigoso pudesse escapar.
–Vejam isso! –berrou o garoto, espantado.
Todos se aproximaram, bastante curiosos. Olhos vermelhos queimavam na escuridão. Formas gigantescas se revelavam nas sombras, exibindo dentes enormes e pontiagudos.
–Eu achei que os outros cães eram grandes. –exclamou um dos garotos. –Mas esses daqui são muito maiores.
–Não são cães. –retrucou ele.
Os garotos o encararam, completamente pasmos com a afirmação.
–Verdade, espertinho? –perguntou o mais velho deles. –Então o que eles são?
–Lobos... Meu bisavô os trouxe da Europa em um navio. Meu avô continuou fazendo cruzamentos. Todos os nossos cães têm algo de lobos, mas esses aí são puros.
Os garotos encararam as feras, completamente boquiabertos. Ele esboçou um meio sorriso, orgulhoso de suas bestas infernais.
Wasser ainda estava ali, no meio da manhã gelada. Em um dos cantos, nos limites da propriedade, havia de fato algo que bem poderia ser um antigo canil, mas os escombros estavam cobertos pelo mato alto. Wasser tentou se afastar um pouco daquelas lembranças efervescentes, mas as imagens grudavam nele.
Meio segundo depois, e a tarde estava quente novamente. Aliás, aquele era o dia mais quente em anos. Um sol implacável lhes queimava a pele. Estavam do lado de fora da casa. Ele ajudava o velho a construir o que parecia a armação de um futuro telhado. A mulher de cabelos grisalhos surgiu no lado de fora e caminhou até eles, completamente furiosa. Estava sempre furiosa
–Veja o que eu achei! –disse ela, erguendo uma calcinha. –Estava no quarto dele. Ele precisa ir embora! Você precisa mandá-lo novamente para aquele maldito mosteiro! Ele precisa aprender!
–Não vou fazer isso. –retrucou o velho. –Ele é o único que me ajuda nesta casa. Ele fica!
A mulher explodiu. Ergueu o dedo indicador a meio centímetro da cara do homem e começou a berrar, acusando-o de todos os pecados do mundo e condenando-o ao inferno. A cena prosseguiu por um longo tempo. O velho parecia paralisado, sem reação alguma. Não contra-argumentou, não se afastou, não ergueu os olhos. Ninguém poderia prever o que estava prestes a acontecer.
Quando perdeu a paciência, em um movimento brusco e completamente inesperado, o homem apanhou seu martelo da bancada e simplesmente arrebentou a cabeça da mulher. Ela já caiu morta. Seu sangue escorreu vermelho sobre o gramado verde. O contraste entre as cores criou um efeito estranho. Ele olhou para o velho com muita admiração. A coisa toda fora incrível. A cena ficou gravada em sua mente.
–Droga! –exclamou o velho, apenas um pouco preocupado, sem o menor sinal de remorso na face vermelha coberta de serragem. –Agora vamos ter de nos livrar dela. Pegue as facas!... Pelo menos, vamos economizar na ração.
Wasser retornou, completamente enojado, enquanto lançava mais um olhar sobre as ruínas dos canis. Os lobos ressurgiram em sua mente, um feixe de olhos brilhantes e dentes afiados. Era possível ouvir até mesmo o som nojento de bocas cheias de dentes mastigando algo macio.
Wasser ainda estava do lado de fora da casa, exatamente no mesmo lugar. Não dera um passo sequer. Estava extremamente cansado, como se estivesse ali há horas, embora soubesse que poucos segundos haviam se passado. Havia loucura demais naquele lugar. Ao lado da casa, dezenas de carros, a maioria deles parcialmente destruídos, amontoavam-se uns sobre os outros. Um deles, um Chevrolet 1416 que aparentemente fora azul, chamava muita atenção. Era o veículo mais velho da pilha e repousava debaixo de muitas peças. O carro, por si só, parecia perigoso, quase vivo, como a caminhonete vermelha resgatada pela polícia. Wasser o observou mais de perto e, com a ponta dos dedos, o tocou.
Quando deu por si, estava dentro do carro. O cheiro característico de cera e óleo de peroba era forte. O veículo estava quase novo agora, e o motor roncava baixo. O velho estava no assento do motorista. Ele o acompanhava, acomodado no banco do passageiro. Estavam parados, diante de uma escola, observando a saída dos alunos. Era um finzinho de tarde nublado.
–Diga qual você prefere! –ordenou o velho.
–Para quê? –perguntou ele.
–Apenas diga qual você prefere!
Ele ponderou por um tempo e acabou apontando para uma garota de uns quinze anos, magra, de pele ligeiramente bronzeada, cabelos negros e compridos e olhos um tanto puxados.
–Aquela ali é muito bonita. –disse ele.
–Muito bom! –exclamou o velho. –Muito bom! Você é um malandrinho!
–Para que tudo isso?
–Você vai ver.
O carro partiu.
Tudo escureceu. As imagens se desmancharam e voltaram a ressurgir. Eles estavam no porão da casa agora. Era impossível saber quanto tempo havia se passado, provavelmente dias. A garota para a qual ele havia apontado estava amarrada sob a grande mesa de madeira, com suas pernas e seus braços completamente escancarados. Vestia o mesmo uniforme: saia listrada e camisa de algodão branca, e gritava com todo o ar de seus pulmões, apesar do pano enfiado na boca.
–O que significa isso? –ele perguntou.
–O que acha? –respondeu o velho. –Você escolheu, agora vamos aproveitar.
Estavam sozinhos ali, certamente. A casa estava silenciosa como um cemitério. O velho arrebentou a calcinha da garota com as mãos. Ela se debateu e se contorceu. O grito subiu umas cinco oitavas.
–Não pode fazer isso. –afirmou ele.
–Verdade? –perguntou o velho, com os olhos faiscando. –E quem disse? Nossa família costumava ser a dona dessa merda de cidade! Éramos quase deuses! Fazíamos o que queríamos! Até meu pai perder quase tudo o que tínhamos! Hoje as pessoas nos olham com desprezo quando caminhamos pela rua! Bastardos hipócritas! Mas eu digo que nada mudou! Eu digo que posso fazer o que eu quiser! Eu faço isso há muito tempo, pirralho! Onde está a polícia? Onde está o seu Deus? Ninguém sabe! Ninguém se importa! Eu tomo tudo o que eles têm!
O velho estendeu um punhal.
–A questão é: você quer participar?
Não, ele não queria. Não daquele jeito. Mesmo assim, dias depois, eles estavam novamente diante do colégio, observando a saída dos alunos. Era noite.
–Acho que você está empolgado. –afirmou o velho, sorridente. –Eu prefiro as mais novas, mas tudo bem. Alias, achei que não ia mais querer fazer isso depois da última vez. Mas tudo bem! Escolha!
–Eu já escolhi.
–Muito bem, muito bem! Então, qual é?
–Aquela. –disse ele, apontando para uma garota de uns dezoito anos, morena, de cabelos encaracolados.
–Está brincando? –perguntou o velho. O sorriso se apagou de seu rosto no mesmo instante.
–Não. Eu quero ela.
O velho lhe deu um soco muito forte, que quase arrancou alguns dentes de sua boca, e outro, e outro. O homem batia e estapeava alucinadamente agora, enquanto gritava advertências furiosas, e só parou muitos segundos depois, completamente sem ar.
–Afaste-se dela, seu imbecil!... Não toque nela!... Entendeu?
–Sim. –respondeu ele. Não entendia de fato, mas achou melhor fingir. Não que ele não pudesse reagir se quisesse, já que era muito mais forte que o velho agora, mas era necessário ter paciência. A saída do colégio se transformou em um grande alvoroço. A garota para a qual ele havia apontado se aproximou de um rapaz bonito e lhe deu um beijo. Os dois partiram de mãos dadas e entraram na caminhonete vermelha.
–Vamos! –disse o velho. E acelerou.
Era um fim de tarde incrivelmente gelado agora. Aparentemente, meses haviam se passado. Eles estavam mais uma vez na casa, no meio da sala. O velho estava irritado.
–Eu já disse: não toque nela! Não a machuque!
–O que você diz não importa mais. –ele respondeu. E era verdade.
O homem não acreditou na audácia e partiu para cima dele. Daquela vez, porém, foi diferente. Ele controlou a situação sem muita dificuldade e segurou as mãos nervosas como quem segura uma criança de colo. O velho se esforçou ainda mais. A raiva era tanta que as veias de seu pescoço chegaram a saltar, mas foi em vão.
O que aconteceu em seguida foi muito rápido. De início, os olhos do velho se encheram de espanto. Logo depois, o susto deu lugar a um tremor agudo, que logo se transformou em uma convulsão violenta. O homem desabou e não parava mais de se sacudir. Ele observava a cena, complacente e curioso. Havia certa beleza naquilo. Uma menina negra, que acabava de chegar à sala, levou um susto muito grande por ver o homem daquele jeito e partiu em busca de ajuda. Mas tudo estava acabado. O velho não poderia mais incomodá-lo.
Era dia novamente. Um dia cinzento, frio e nublado. Ele estava no lado de fora da casa, montando o que parecia um grande armário já quase acabado. Um punhado de ferramentas se espalhavam pela mesa. Um garoto muito bonito de uns dezoito anos o ajudava no trabalho, aparentemente tentando ser prestativo. Era fácil para um desocupado que não fazia nada da vida.
–É uma pena! –exclamou o rapaz. Sua voz soava sincera, mas era uma voz estranha, meio arrastada, como se sua língua estivesse colada ao céu da boca. Ele odiava toda aquela bondade. –Parece que agora você vai precisar lidar com tudo por aqui sozinho.
–Por um tempo. –ele respondeu.
–Sempre que vocês precisarem de ajuda, podem contar comigo. –concluiu o garoto.
–Eu sei.
Eles ergueram uma tábua muito pesada e a colocaram sobre a grande mesa de madeira.
–Escute... –disse ele, então ponderou se deveria continuar. O que tinha a dizer era muito importante para ele, mas o outro poderia não entender. –Eu queria lhe pedir um favor.
–Claro! –respondeu o garoto. –O que precisar.
–Preciso do seu nome.
O rapaz olhou para ele por um longo tempo. Certamente o pedido soara estranho. Era lógico que o outro não iria compreender. Não, alguém tão egoísta não poderia entender.
–Brincadeira. –disse ele, e esboçou um sorriso desbotado.
–Que brincadeira mais idiota. –grunhiu o rapaz. –Às vezes você parece mais louco que o seu pai.
–Tudo bem, desculpe. Apenas me ajude a segurar essas duas partes.
Eles ajeitaram uma das laterais do armário sobre o fundo. O garoto teve de se ajoelhar para segurar uma tábua sobre a outra.
–Assim?
–Perfeito! –respondeu ele, enquanto preparava a pistola de pregos. –Quando eu acabar, vai ficar perfeito!
–Certo! –respondeu o rapaz, sem muita paciência. Estava com o lado do rosto raspando em uma das tábuas. –Apenas ande logo! Isso aqui está muito pesado.
–Só um pouco mais. –retrucou ele. E estourou a cabeça do garoto com a pistola de pregos. –Pronto!
Wasser sentiu uma pontada dilacerante na cabeça. As imagens se escureceram, então ressurgiram lentamente, como uma fotografia sendo revelada. Era um fim de tarde agradável. Eles estavam na rua. Um sol incrivelmente dourado tocava o horizonte.
–Eu não entendo. –disse a garota. –Por que ele partiria assim, sem nem ao menos dizer adeus?
–Ele não partiu. –disse ele, erguendo os braços.
–Como assim? –perguntou ela, o rosto bonito contorcido pelo medo repentino.
–Eu sou ele agora. Agora podemos ficar juntos.
–O que você fez?
–Eu tomei o lugar dele.
A garota correu para dentro de casa aos prantos. Ele a acompanhou, completamente alvoroçado. Seu coração havia disparado.
–Não pode ser... –gritou ela. –Você é louco! Todos sempre me disseram isso, e eu não acreditei.
–Eu sou ele agora. Você tem que me amar como o amava.
–Eu nunca vou ficar com você! Você é nojento! Nojento! Eu vou à polícia.
Ela estava prestes a partir. Ele se adiantou e a golpeou com muita força com as costas da mão. Ela caiu. Depois de algum tempo de confusão, tentou se erguer, mas levou outro golpe muito forte. Acabou desabando novamente, absolutamente tonta agora, e ainda levou alguns chutes violentos. Ele caiu sobre ela, rasgou suas roupas e a violentou. Tudo não durara mais que alguns poucos segundos.
Quando ele se levantou, a sensação de êxtase deu lugar a uma culpa violenta, que deformou seu rosto. Ele se ajoelhou e estapeou a própria cabeça com muita força uma dezena de vezes.
–O que eu fiz?... O que eu fiz?... Perdoe-me, Senhor!... Perdoe-me, Senhor!...
–Tudo bem... –disse a garota. As palavras começavam a se embaralhar. Sua língua parecia solta dentro da boca. Seu corpo estava completamente dormente agora, e seus membros pareciam ter-se desencaixado do resto corpo, como se ela fosse um daqueles bonecos esquisitos feitos com peças de montar. –Eu perdoo você... Sei que você não fez por mal. Mas você precisa buscar ajuda. Por favor! Eu não estou bem...
Ele se ergueu. Seus olhos foram tomados por uma frieza cortante. A culpa deu lugar ao ódio assassino.
–É sua culpa! –grunhiu ele.
–O quê? –perguntou a garota, desesperada, sem acreditar em tudo aquilo.
–Eu pequei. Terei de fazer mais um sacrifício. E talvez... Talvez ele não aceite mais. É sua culpa. Você precisa pagar.
Ele mergulhou sobre a garota com muita fúria. Em sua mente, agora, Wasser só ouvia os gritos abafados e os gemidos de dor.
No momento seguinte, um dia muito bonito havia acabado de nascer. Estavam no início da primavera, e o aroma acre de flores e folhas se espalhava pelo ar. Ele ajeitou o velho sobre a cadeira de balanço, na varanda da casa, e se acomodou na cadeira ao lado. O homem exibia metade da face extremamente flácida. O olho e parte do lábio esquerdo pareciam ter-se desmanchado, como uma vela inclinada que derrete de forma irregular durante toda a noite. Suas mãos tremiam o tempo todo.
O velho o observou por um longo tempo, olhos da mais pura indignação. Ele ignorou. Encheu um copo de uísque ou outra bebida qualquer e sorveu um gole considerável, depois apenas apoiou a garrafa e o copo no parapeito da varanda. Mas ele não gostava de bebidas fortes. Aquilo era apenas uma forma de torturar o outro.
–Você a matou! –disse o velho, ou ao menos tentou dizer. Apenas parte da boca se movia. A fala era arrastada, difícil de definir, como se apenas algumas palavras conseguissem escapar. –Eu mandei não encostar nela, e mesmo assim você a matou!
Ele ignorou o velho e não respondeu a acusação. Em vez disso, apenas afirmou:
–Deus falou comigo. Foi ontem à noite. Fazia tempo que não ouvia sua voz. Ele disse que eu sou um bom filho, disse que tem coisas grandiosas esperando por mim.
O velho esboçou um sorriso sádico com meia boca.
–Se alguém falou com você ontem à noite, certamente não foi Deus.
Ele ignorou o comentário e prosseguiu:
–Mas Deus disse mais. Disse que o seu tempo chegou ao fim, ancião. Que você está acabado. Chega de tanta blasfêmia, de tanta ironia.
Ele se levantou, apanhou a espingarda e encostou o cano na fronte do velho. O homem observara aquilo tudo com desdém. Não parecia muito convencido do perigo, então grunhiu:
–Você não tem coragem!...
Foi a última coisa que disse. Um disparo violento levou embora suas palavras, junto com sua boca e boa parte de seu rosto. O som alto se dispersou pela floresta complacente. Só os pássaros reclamaram.
Wasser voltou a si. Estava parado na escadaria da casa e sentiu que a conhecia muito bem, como se fossem íntimos, como se ele tivesse passado uma vida inteira ali. Ainda assim, a casa o recebeu com um grito muito alto quando ele tocou a maçaneta. As paredes e o chão tremeram. Era um aviso de boas-vindas. Aquele lugar o temia, por alguma razão, ele apenas não sabia qual.
Havia pouca coisa no primeiro andar que de fato valesse a pena analisar. A cozinha e os quartos estavam limpos, metaforicamente falando. Na sala, a mobília velha se espalhava de forma aleatória, beirando ao caótico. Por todos os lados, teias de aranha, mofo e muitos fungos. Em uma das paredes, o casal Barbosa, ainda jovem, aparecia em um desses retratos antigos de meio corpo. Era difícil dizer qual dos dois parecia mais sádico. A loucura daquelas pessoas era perceptível, mesmo nos retratos. Na pequena estante, alguns porta-retratos menores se espalhavam sem muita ordem. Em uma das imagens, o velho Barbosa, agora com uma aparência bem menos saudável, aparecia diante da casa, ao lado de uma jovem muito bonita. Em outra fotografia, a senhora Barbosa aparecia lendo a bíblia para duas crianças negras sentadas no chão. Uma empregada, possivelmente a mãe do menino ou da menina, aparecia no canto da sala, com um olhar extremamente triste. As crianças não pareciam muito felizes. Certamente não se tratava da forma mais agradável de evangelização.
Wasser retirou a foto do porta-retratos. Esperava encontrar uma data no verso do papel, mas encontrou mais do que isso: "pregando o evangelho do Senhor para Kawan e Bilba", alguém anotara à caneta. A letra quase desaparecera com o tempo.
Um pouco ao lado, outra fotografia chamava atenção: dois garotos na casa dos quatorze anos, enfiados no uniforme de algum colégio de padres. Wasser reconhecia o uniforme e reconhecera de imediato um dos garotos, o assassino que fora morto dias antes. O brilho sádico em seus olhos era de arrepiar, mesmo naquela idade. O verso da fotografia dizia apenas: "Dominique e Jonathan no mosteiro". Wasser observou a foto e o verso mais uma vez: a ordem dos nomes parecia trocada.
E não havia mais nada na sala. Wasser ainda pensou em subir as escadas, mas algo o atraiu para o porão, e não era apenas o cheiro forte de sangue coagulado e dejetos humanos, havia algo mais, algo muito pior. As vozes no porão fervilhavam. A porta estava aberta.
Depois de tomar fôlego, Wasser mergulhou na escuridão. Fez isso lentamente, temendo o que pudesse haver ali embaixo. Temia que a fonte do mal que cercava a casa estivesse ali, naquele lugar escuro e assombrado, mas se enganou. Naquele porão frio e imundo, só o que se arrastava pelas sombras era o medo. O lugar era um grande matadouro. Muitas vozes o agarraram, literalmente, no silêncio. Havia choro, gritos de dor e muito desespero. A mesa de madeira estava ali para comprovar tudo aquilo. O sangue seco ainda se espalhava pelo chão como um grande cobertor. Pessoas morriam ali há muito tempo, mais tempo do que qualquer um poderia calcular. Jonathan Glander não fora o primeiro assassino, nem mesmo o velho Barbosa. O lugar era amaldiçoado.
Wasser sentiu uma mão segurando sua perna. Uma garota de uns vinte anos, ensanguentada e ferida, o agarrara em um movimento desesperado.
–Ajude-me, por favor! –implorou ela.
–Não posso. –respondeu Wasser, e percebeu que alguém havia arrancado uma das pernas da garota.
–Eu sinto muito, mas não posso.
–Por quê?
–Porque você não está aqui. Não mais.
A garota o observou, aparentemente sem compreender, e por fim desapareceu. Talvez tenha se desmanchado em pó, talvez não. Wasser não saberia dizer. Havia outros rostos ali, flutuando no vazio, muitos deles conhecidos dos retratos que analisara durante a investigação, mas eram presenças fugazes, esquecidas.
De um momento para outro, porém, o ar ficou mais carregado. A escuridão se intensificou, efeito de alguma nuvem que cobria o sol do lado de fora, mas não apenas isso. As paredes pareceram se fechar. As tábuas estalaram. Uma delas chegou a trincar. Algo se arrastava pelas sombras, apegava-se à própria escuridão, tentava ameaçá-lo.
–Você também não está mais aqui. –sussurrou Wasser. –Goste ou não.
O sol voltou a ganhar vida do lado de fora, e tudo se normalizou. Wasser subiu as escadas e partiu. Ainda havia muito a se fazer, e ele tinha uma pista para começar.
Capítulo 56
Era uma daquelas casas de novela, que pareciam possíveis apenas na ficção, uma verdadeira mansão com uma cachoeira particular, uma quadra de tênis aos fundos e um jardim que era certamente obra de um desses paisagistas malucos que recebiam uma fortuna por hora. O jardim daquela casa fazia Wasser pensar naquelas plantas carnívoras de ficções científicas, capazes de engolir um boi inteiro e cuspir apenas os ossos, um verdadeiro elo perdido no meio de uma cidade tão grande. A casa, em si, era enorme, uma construção branca de dois andares e linhas retas que devia ter uns cinquenta quartos. Aos fundos, por entre as árvores, era possível enxergar o mar enchendo a paisagem.
O velho sedan escuro havia acabado de vencer mais uma viagem das grandes. A maior até aquele momento. O motor estalava. Ele gastara mais de dois dias naquela viagem, mas por alguma razão sabia que precisava estar ali pessoalmente. Wasser tocou a campainha da casa e foi recebido pelo mordomo, um senhor magro de cabelos grisalhos, pele muito clara e jeito de gringo. Alguém no mundo ainda tinha um mordomo. Era certamente uma surpresa. Wasser sempre pensara neles como o tipo de empregado que não servia para nada além de ficar parado no canto da sala segurando uma toalhinha. Mas aquele sujeito, por alguma razão difícil de explicar, parecia ser incrivelmente competente e versátil. Talvez fosse um agente secreto disfarçado. Pelo menos, tinha o rosto e o porte físico de um. Pensando bem, pelo dinheiro que aquelas pessoas possuíam, talvez não fosse nenhum exagero. O homem o conduziu até o interior da casa.
–Sente-se, por favor! –disse ele, com seu sotaque carregado. –A senhora Farias o atenderá em seguida.
Wasser foi largado sozinho naquela sala monstruosa. O lugar era enorme. A mobília e a decoração enchiam os olhos. Os lustres e os móveis eram certamente antiguidades. O teto, todo esculpido em mármore, ficava a uma altura absurda, e cada passo pela casa soava acompanhado de ecos, como se ele estivesse dentro de uma caverna. As paredes exibiam quadros coloridos, a maioria deles impressionistas. Alguns deles, Wasser não tinha dúvidas, eram autênticos. Havia pelo menos um Monet ali. Ou seria um Manet? Ele nunca conseguira diferenciá-los, por mais que seus antigos professores de Artes do colegial se esforçassem. Enfim, era uma casa absurdamente luxuosa, de fazer chorar de tão bonita. Ele acabou soltando uma exclamação espontânea.
–Impressionado, policial? –perguntou a dona da casa, assim que entrou.
Era uma mulher negra e gordinha na casa dos sessenta anos, dona de cabelos curtos e encaracolados, de um sorriso aberto e muito bonito e de um rosto de capa de revista.
–Estou sim. –responde Wasser, enquanto os dois trocavam um aperto de mãos. –Desculpe, mas não pude evitar a impressão. É uma casa fantástica.
–Obrigada! Queira sentar, senhor...
–David Wasser.
Wasser obedeceu e se acomodou. Afundar naquele sofá era como flutuar em um lago cristalino, em uma tarde fresca. Ele poderia passar o dia todo ali sem reclamar.
–Então fiquei surpresa com sua visita. –afirmou a mulher. –O que eu fiz de errado?
–Na verdade, nada. –respondeu Wasser, com um sorriso nos lábios. As pessoas sempre associavam a polícia a problemas de algum tipo. Não sem razão, é verdade. Mas ele sabia que aquela mulher não teria problemas com a lei, não com os advogados que poderia pagar. –Na realidade, eu não sou exatamente um policial. Sou um consultor investigativo da polícia. E acho que a senhora pode ajudar em um caso que estou finalizando. Eu realmente pensei que Bilba fosse um apelido, o que acabaria com o resto de minha busca no mesmo instante. Imagine a minha surpresa quando descobri uma Bilba Farias vivendo em uma de nossas maiores capitais, há alguns dias de viagem. Acho que tive sorte. É um nome muito bonito, diferente, se não se importa que eu diga. E eu só encontrei a senhora por causa dele.
–Obrigada! Mas eu não estou entendendo.
Houve um instante de silêncio, no qual Wasser se pegou observando um pequeno beija-flor no lado de fora da porta de vidro. O passarinho olhou direto para ele por meio segundo e partiu, rápido como um raio. Era um tanto constrangedor estar ali, tanto tempo depois, incomodando uma mulher que não tinha basicamente ligação nenhuma com o caso que estava investigando. Mas ele precisava daquilo, precisava ligar as pontas e compreender o que não estava conseguindo enxergar sozinho.
–Bem, estou aqui para finalizar uma investigação sobre uma série de assassinatos em uma cidadezinha bem ao sul do estado. Começamos com um assassinato, de uma garota de vinte e um anos, e terminamos com vinte e dois corpos.
–Eu soube disso. –disse a mulher. –É horrível, mas eu não entendo no que isso tudo me envolve.
–Tenho algumas perguntas para fazer da época em que a senhora trabalhou para a família Barbosa.
Wasser sabia que o assunto traria certo desconforto, mas não poderia prever que seria algo tão intenso. Os olhos da mulher foram transportados até outra dimensão, outro tempo, seu rosto se entristeceu e se encheu da dor de más lembranças, enquanto seu semblante se dissolvia por completo. Dor... Dor demais... Lágrimas encheram seus olhos. Uma delas escorreu, pesada e fria, por seu rosto.
–Aquela família... No fundo, eu sempre soube que aquela casa me perseguiria até a morte.
–Eu não queria lhe causar mal. –afirmou Wasser. –Me desculpe se...
–Não é você, policial. Sou eu. Eu fugi disso minha vida inteira. Devia ter procurado a polícia há muito tempo. Sabia que alguém acabaria morrendo. Mas sempre tive medo.
Wasser não estava acostumado com tanta sinceridade. As pessoas, de modo geral, eram como cebolas e precisavam ser despidas camada a camada. Mas aquela mulher enterrara segredos por muito tempo e estava bastante disposta a arremessá-los sobre ele de uma só vez. Era uma boa notícia. Seria mais rápido assim.
–Desculpe, estou confuso. –afirmou Wasser. –A senhora trabalhava como empregada naquela casa quando jovem, não é isso?
–Empregada? –perguntou a mulher, um tanto indignada. –Não, eu não era uma empregada, Sr. Wasser. Se eu fosse uma empregada, haveria dignidade. Eu era uma escrava. Minha avó era filha de escravos. Na teoria, a escravidão teve fim há exatamente cento e cinco anos. Mais de um século. Na prática, minha avó e minha mãe continuaram presas àquela família. Eu também nasci presa. Não sabia que tinha direitos. Não sabia que era um ser humano. Tirei minha certidão de nascimento aos trinta anos de idade. Pode imaginar o que é isso?
–Não, eu não posso. Sinto muito!
–Eu fui humilhada, torturada e ferida durante toda minha infância. Eu fugi, escapei de tudo aquilo. Comecei a trabalhar como cozinheira em um restaurante e, cinco anos depois, já era dona de meu próprio negócio. Vinte anos depois, e ergui minha própria rede de restaurantes do nada, do pó. Tenho orgulho de dizer, passei trinta anos da minha vida com o homem que mais amei neste mundo, tenho dois filhos perfeitos, e meu primeiro netinho acaba de completar três anos. É um menino lindo. Mas eu não me envergonho em admitir: eu trocaria tudo isso, tudo, para não ter passado o que passei naquela casa, com aquelas pessoas. Seria melhor nunca ter existido.
A mulher fez uma pausa para respirar e para espantar a angustia, então prosseguiu.
–Perdi a conta de quantas vezes fui estuprada por aquele homem.
–Yuri Barbosa? –perguntou Wasser.
–Sim. O homem era um monstro: tirano, sádico, um autêntico psicopata. Ele me forçava a fazer muitas coisas, coisas que eu não queria fazer. Sempre que me recusa ou que pensava em fugir, ele me contava as histórias gloriosas de seus antepassados e de como eles usavam a carne de seus escravos fujões para alimentar seus porcos e seus lobos de estimação. E ele fazia isso enquanto afiava suas facas.
Wasser sentiu um tremor poderoso nos ossos. Aquilo era realmente de assustar. A anfitriã continuou:
–A mulher, Estela Barbosa, era quase tão ruim quanto o marido: uma narcisista compulsiva que achava que havia sido convocada por Deus para algo que nem mesmo ela sabia o quê. Não se incomodava em torturar e em espancar até mesmo crianças se a desobedecessem. Mas o filho, Dominique Barbosa, era pior que os dois juntos. Aquele garoto era o próprio mal encarnado, acredite em mim...
Wasser acreditava.
–Ele também torturou você?
–Fisicamente? Não, ele não fazia essas coisas. Não era como o pai, era comedido, dissimulado e muito mais inteligente. Muito mais insano também. O pai era um sociopata sádico e torturador; a mãe, uma psicopata narcisista que se achava a filha predileta de Deus. Pode imaginar o que saiu desse cruzamento?... Dominique sempre foi uma criança cruel, desde muito pequeno. A mãe acreditava que ele havia sido enviado por Deus para salvar o mundo, como se ela fosse a própria Virgem Maria encarnada. Quando Dominique completou doze anos, o velho Yuri apareceu certo dia com uma menina um pouco mais velha que o filho. Imagine a decepção da mãe quando descobriu que Dominique sentia certas coisas pela garota. Ela enlouqueceu completamente.
–A menina... Qual era mesmo o nome dela?
–Miriam. Yuri disse à esposa que a garota era a filha de uma prima falecida. Ele estava mentindo, todos percebiam, menos a própria esposa.
–Ela era...?
–Filha dele, certamente. E a filha mais querida, se quer minha opinião. Aquele homem nunca amou ninguém de verdade, mas o que ele sentia pela garota chegava perto.
–E a garota era como o pai?
–Era mimada, petulante, cruel muitas vezes, mas não, ela não era como o pai. Não era muito diferente de algumas meninas da idade dela, para falar a verdade. Lembro-me de uma vez, na qual ela me viu chorando debaixo de um pé de árvore. Tínhamos quase a mesma idade na época, eu era apenas uns cinco anos mais velha. No início, ela ameaçou contar para a dona da casa que eu estava matando trabalho. Mas, quando percebeu que eu estava realmente sofrendo, ela me abraçou e ficou horas comigo ali, em silêncio. Quando eu me acalmei, ela se levantou e partiu. Não antes de me avisar que eu estava fedendo. Ela era desbocada, cínica, mas conseguia ser extremamente boa a maior parte do tempo. E me protegia de verdade, sempre que podia. Aquela garota era a pessoa mais complexa daquela casa. Havia algo de muito bom nela, e também algo de muito ruim. A maldade era uma herança do pai, tenho certeza.
Wasser estendeu a fotografia dos dois garotos enfiados em seus uniformes do internato de padres.
–Pode identificar qual dos dois é Dominique.
A mulher apanhou o retrato e o devolveu em seguida.
–O da esquerda. O rapaz à direita é Jonathan Glander.
–Ele também morou naquela casa?
–Por pouco tempo, na verdade. Tinha a mesma idade de Dominique. Ele morou naquela casa dos dez até os doze anos, quando ele e Dominique foram enviados para aquele colégio de padres, depois mais alguns anos quando eles voltaram para a casa, com dezesseis anos. Foi quando ele e Miriam começaram a namorar. Ele se mudou pouco depois. Estava construindo uma casa na cidade para os dois morarem juntos.
–Como ele era, Jonathan Glander?
–Um endiabrado. Mas um endiabrado no bom sentido, se é que isso existe. Era um capetinha quando era pequeno, adorava pregar peças em todos, principalmente na dona da casa. Ela ameaçou esfolá-lo algumas vezes, mas foram apenas ameaças.
–E como ele foi parar naquela casa?
–Os pais dele morreram em um acidente de carro quando ele tinha dez anos. Estela era a parente mais próxima da mãe, então uma coisa levou à outra. Pelo menos, essa é a versão oficial. Mas, se quer minha opinião...
–Yuri Barbosa estava por trás do acidente.
–Exato. O velho Barbosa precisava desesperadamente de dinheiro. Os pais do menino morreram uma semana depois de fazerem uma visita aos parentes. Yuri fez muitas perguntas ao casal sobre dinheiro, negócios. Era uma oportunidade que um homem como ele não iria deixar passar.
–E por que Yuri precisava de dinheiro? Achei que ele fosse um homem rico.
–Era o que todos achavam. Ele era um faz tudo: criava ovelhas, comercializava lã e carne, trabalhava com madeira. Chegou a construir um pavilhão para isso. Também cultivava milho e fumo, tinha muitas terras, e criava cães. Ganhava muito dinheiro com tudo isso.
–Então?
–O velho estava envolvido com negócios escusos. Não sei muito bem o que era, talvez jogos, talvez drogas. O fato é que alguns homens começaram a cobrar algumas dividas, homens perigosos. As dividas eram altas, isso era óbvio. Quase todo o dinheiro que entrava naquela casa acabava nas mãos daqueles homens, e já não era o suficiente. Os homens só pararam de aparecer quando o velho Yuri sofreu um derrame e Dominique assumiu os negócios. Eu me lembro de ter visto muito sangue sobre o gramado, certo dia, quando cheguei em casa das compras. Pensei que Dominique estava destrinchando algumas ovelhas, mas não vi pelos, pele, ou nada do tipo. Foi pouco antes de os homens não apareceram mais. Os cães da família estavam com suas bocas sujas de sangue, todos eles. Havia uns vinte, na época. Dois deles estavam mortos. Tiros, eu acho... Fui eu que os enterrei.
–Dominique usou os cães para matar os homens.
–É o mais provável. Mais aqueles homens não foram os primeiros a desaparecer.
–Dominique matou mais pessoas?
–Não posso provar. Mas, se você conhecesse aquele garoto. Ele já era mal quando foi estudar naquele mosteiro, mas voltou muito pior. Realmente acreditava que era um escolhido de Deus. Ele tinha uns dezesseis anos quando retornou do colégio, se não me falha a memória. Foi mais ou menos nessa época que ele encontrou a mão.
–Mão?
–Era assim que ele a chamava. Era uma pedra monstruosa, gigantesca, deformada, que parecia uma mão aberta. Dominique começou a sacrificar ovelhas sobre a coisa. Chegou a pagar alguns homens para trazê-la para mais perto da casa. A coisa pesava uns mil quilos. Yuri Barbosa ficou louco com aquilo tudo, mas não falou nada. Já estava começando a ter medo do filho, eu sabia. A mãe ainda não tinha desistido de transformar Dominique em um santo. Queria mandar o filho novamente para o mosteiro. Ela foi a primeira a desaparecer e, para falar a verdade, ninguém se importou muito. Mas foi apenas depois do derrame de Yuri Barbosa, anos depois, que as coisas realmente ficaram feias. Jonathan Glander foi o segundo a desaparecer. Ele sempre visitava a família. Estava namorando Miriam, como eu já havia mencionado. Aparecia quase todos os dias. Então simplesmente evaporou. A casa que ele havia construído, onde ele estava morando, estava vazia. Eu mesmo acompanhei Miriam no dia em que ela esteve lá, procurando pelo namorado. Jonathan conhecia poucas pessoas na cidade e não tinha parentes. Não tinha para onde ir. Miriam ficou arrasada. Cheguei a ficar com pena dela, mas ela também desapareceu tempos depois. Havia dois empregados na casa além de mim na época. Um deles era um garoto da minha idade, que também era uma espécie de escravo. O nome dele era Kawan. Era um rapaz fantástico, muito querido. O outro empregado era um velho sujo e rabugento que trabalhava para a família por um salário ínfimo e algumas carcaças de ovelha. Eles também desapareceram em seguida. Dominique mencionou que os havia enviado a uma propriedade que havia adquirido em outra cidade, mas era óbvio que ele estava mentindo.
Wasser estava atento. Acompanhar aquilo tudo exigia um grande esforço e um estômago forte. Era maldade demais. A mulher prosseguiu.
–Então, certo dia, logo pela manhã, Dominique me mandou comprar algumas coisas em uma mercearia. O caminho era longo, então parti cedo. Quando voltei, a parede da varanda estava salpicada de sangue. Alguém havia morrido, eu tinha certeza, e não encontrei o velho Barbosa em sua cama quando o procurei. Dominique me mandou limpar o sangue. Mandou, também, que eu apanhasse algumas laranjas na floresta quando terminasse com a parede. Ele queria me fazer limpar o sangue antes de me matar, dá para acreditar em uma coisa dessas? Eu cheguei a começar o trabalho. Havia até miolos grudados na parede. Eu enrolei, esperei ele se distrair e corri como uma louca. Não parei. Não até estar muito e muito longe. Cheguei a outra cidade, e continuei correndo. Perdi meus sapatos, e continuei correndo. Minha vida começou naquele dia.
–Não chegou a avisar à polícia, na época?
–Não. Estava apavorada demais. Tinha medo que eles me dedurassem, que me devolvessem para ele. Dominique teria conseguido isso. Teria enganado os policiais. Ele era inteligente demais. E eu não estou exagerando. Eu nunca mais vi uma inteligência como a dele. Era uma inteligência louca, violenta, mas ainda assim uma inteligência sem igual. As coisas que ele era capaz de planejar, com a antecedência que era capaz de prever... Eu muitas vezes levava muito e muito tempo para entender as coisas que ele estava tramando. Não havia como enfrentar aquilo, não naquela época, sem ninguém para me defender. Então só continuei vivendo minha vida. Apenas anos depois, quando já era consideravelmente rica, eu enviei um detetive particular para investigar. Ele não encontrou ninguém na casa. Dominique havia desaparecido. Mas o detetive encontrou Jonathan Glander. Disse que o rapaz estava bem, prosperando nos negócios e que havia se casado há pouco tempo. Então, se eu havia me enganado sobre Jonathan, sobre o que mais não haveria me enganado. Eu não quis mais envolver a polícia. Não quis perturbar Jonathan com aquelas histórias. A esposa dele estava grávida do segundo filho. Eram um casal bastante religioso, segundo o que o detetive conseguiu constatar, e muito queridos na cidade. Fiquei feliz por ele. Até pensei em visitá-lo, mas não queria pisar novamente naquela cidade.
Ainda bem que ela não o visitou, pensou Wasser. Aliás, não estaria falando com a mulher agora se ela o tivesse visitado.
–Então eu segui em frente. –completou a mulher. –E não olhei mais para trás. Sei que deveria ter feito mais, mas não sabia muito bem o que fazer.
–Você fez o que pôde. –afirmou Wasser. –E ajudou muito no caso. Obrigado!
–Mas o que exatamente isso tudo tem a ver com seu caso?
–Honestamente, não acho que você vai querer saber.
–Por favor, detetive, eu contei tudo o que sabia sobre aquela família. Não me deixe curiosa agora!
–Você disse que a esposa de Jonathan Glander estava grávida quando você enviou o detetive particular.
–Sim, oito meses.
–A criança que estava para nascer era nosso primeiro suspeito no caso: Willian Glander. Os pais e a irmã haviam morrido em um incêndio numa capela que o próprio Jonathan Glander havia construído. Então descobrimos que na verdade o pai de Willian era o assassino. Muitos anos antes, ele havia tomado a identidade de um padre que havia sido transferido para um mosteiro da região, em um plano longo e muito doentio, então se mudou novamente para a cidade, agora com outra identidade. Anos antes, ele já havia matado e tomado a identidade de outro padre, o padre titular da cidade, e fugiu com o novo nome. O assassino era um fanático religioso.
A mulher não acreditava naquilo tudo.
–Não, isso é impossível. Jonathan Glander não faria isso...
–E não fez. –afirmou Wasser. –Tenho certeza agora, depois de tudo o que você disse.
Os olhos da mulher foram da descrença ao pavor absoluto.
–Dominique... O homem que o detetive encontrou era Dominique.
–Sim. Dominique matou Jonathan Glander para tomar o lugar dele e matou a meia-irmã, é difícil saber o motivo exato. Depois disso, ele começou a aparar as arestas, uma a uma: os homens estranhos que você mencionou, os empregados, o pai. Acreditamos que ele ainda matou mais dez ou doze pessoas naquela cidade, mortes suspeitas, todos que conheciam ou tinham algum contato com o verdadeiro Jonathan Glander. Só agora eu consegui entender porque ele havia matado aquelas pessoas. Ele só não conseguiu matar uma pessoa.
–Eu. –concluiu a mulher.
–E onde Dominique está agora? –perguntou a mulher, visivelmente assustada.
–Da última que o vi, sobre uma mesa de necrotério.
–Ele está morto?
–Sim.
–Mas esteve vivo esse tempo todo?
–Sim.
–Fico feliz de só saber disso agora.
A mulher sorriu. Parecia mais tranquila agora. Mas parecia triste, apesar de tudo.
–Todas aquelas mulheres mortas. Se eu...
–Não é sua culpa. –interveio Wasser. –A culpa é dele! Só dele!
A dona da casa deixou escapar uma lágrima. Estava terminado.
–Obrigada por me contar a verdade, policial.
–Era o mínimo que eu podia fazer depois de sua ajuda.
Os dois se despediram. A dona da casa ainda acompanhou o policial até o portão. Era uma caminhada de quase um quilômetro. Um longo gramado verde se estendia da casa até a entrada da propriedade. O netinho estava ali, perseguindo um Border Collie brincalhão. Era realmente um menino lindo. Ele e o cão pareciam estar se divertindo bastante. Era bom saber que aquele garoto não precisaria passar por tudo pelo que a avó havia passado. Os tempos estavam mudando, e aquilo era bom.
–Posso perguntar uma coisa um tanto pessoal? –perguntou Wasser.
–Depois de tudo, claro que sim.
–Você realmente ficou tão rica com restaurantes?
–Claro que não.
–Então seu marido era rico, ou coisa do tipo?
–Meu marido era garçom no mesmo restaurante onde eu trabalhava como cozinheira. Construímos tudo isso juntos. Ele morreu há cinco anos, do coração. Sinto falta dele.
–Eu sinto muito... Mas então como você conseguiu tanto dinheiro?
–Quando construí meu primeiro restaurante, descobri que era muito boa com números. Então pesquisei muito sobre como poderia ganhar mais em menos tempo. Uma palavra, detetive: ações... Sou realmente muito boa com ações.
–Entendo... Escute, eu tenho algum dinheiro guardado, algumas economias. Não é grande coisa, na verdade, mas... Tem alguma dica para mim?
A mulher sorriu com vontade.
–Siga seu coração, Sr. Wasser! É o melhor conselho que posso lhe dar.
–Seguir meu coração? –perguntou Wasser. Não era uma dica muito útil, mas não custava tentar. Seu coração mandava comprar uma moto antiga, daquelas que soltam bastante fumaça e fazem muito barulho, talvez uma Davidson WLC ou outra parecida. A ideia era boa: pilotar por quilômetros e mais quilômetros, milhas e milhas, até se desmanchar na paisagem. Ele não tinha realmente mais nada a perder.
Wasser se despediu da dona da casa e partiu. Era um longo caminho de volta. E ele podia pesquisar algumas motocicletas.
Capítulo 57
–Eu não entendo! –exclamou a legista. –Por quê? O caso está encerrado. Até o relatório já foi escrito.
–Eu sei. –respondeu Wasser. –Mas preciso fazer isso.
Eles estavam novamente na grande sala branca do necrotério. O corpo do assassino ainda estava sobre a mesa.
–Antes você não quis nem tocar no corpo e agora quer ficar sozinho com ele?
–Sei que você acha que acabou, mas ainda falta algo, algo difícil de explicar.
–Tudo bem. Legalmente, eu não posso permitir. Mas, se você insiste.
–Obrigado!
Antes de a médica deixar a sala, Wasser ainda advertiu:
–E, aconteça o que acontecer, não entre antes de eu mandar
Era um pedido estranho, mas ela concordou e saiu. A porta de aço se fechou em seguida.
Wasser observou o cadáver sobre a maca. O sujeito estava branco. O corte suturado em forma de Y indicava a autópsia recém-finalizada. Não que alguém precisasse dela para identificar a causa da morte. Poucas pessoas na face da terra poderiam merecer aquele destino mais do que aquele homem merecia. A identidade fora confirmada: era mesmo Dominique Barbosa, o filho psicopata do psicopata Yuri Barbosa. Estava morto agora, mas isso não significava que tudo estava acabado.
A sala de autópsia permanecia incrivelmente gelada. As lâmpadas florescentes brilhavam com muita força. Wasser inspirou fundo para tomar coragem e enfiou os dois polegares nos olhos do assassino.
A legista estava em sua sala e pode ouvir os gritos. Começara com um simples "não...", mas logo evoluíra para um amontoado de grunhidos. Wasser havia se ferido, por alguma razão. Se bem que a voz não parecia dele. Talvez o assassino tivesse se levantado, talvez ainda estivesse vivo. Claro que não estava. Ela mesma abrira o tórax e removera os órgãos internos do sujeito. Mas aquele grito não era bom sinal.
A médica caminhou pelo corredor comprido, parou diante da porta fechada de aço e ouviu com atenção. Wasser falava sozinho, soltava gemidos difíceis de compreender e parecia chorar. O que estaria acontecendo do outro lado era difícil de definir. A legista ignorou o aviso anterior e entrou.
Dentro da sala, as lâmpadas fosforescentes piscavam. Faziam aquilo às vezes. Wasser estava de costas, de pé, ao lado da mesa de aço. Por alguma razão, parecia muito mais forte e até mesmo um pouco mais alto, mas era mesmo ele. Ao menos, as roupas eram suas.
–Tudo bem com você? –perguntou a médica.
–Bem? –retrucou ele, visivelmente irritado. Sua voz soara diferente. –Claro que não estou bem! Como eu poderia estar bem?
Houve um momento assustador de silêncio, então ele continuou:
–Eu nunca perguntei: você tem filhos.
A média pareceu confusa.
–Tenho um menino de quatro anos. Por quê?
–Aceite meu conselho: trate-o com rigor, sempre!
–Tratá-lo com rigor? Ele é um menino muito querido. Por que eu...
Wasser deu um soco forte na mesa e esbravejou:
–Não discuta comigo, mulher! Garotos precisam ser tratados com muito rigor. Eles precisam aprender... Ou algo ruim pode acontecer. Este mundo não tolera o pecado.
–Tudo bem, eu entendo. –afirmou a legista.
–Por que tem de ser tão difícil servir a Deus? Por que ele me abandonou mais uma vez?
As lâmpadas tremeluziram com mais força. A legista caminhou mais alguns passos. Wasser... Ele estava inegavelmente maior, mais alto. E que costas era aquelas, largas como ela nunca havia visto. Como era possível? A legista se aproximou com cuidado, contornando o policial, o mais longe dele que podia, até conseguir enxergar seu rosto.
–Eu mandei você esperar lá fora. –afirmou Wasser. Era ele novamente. As lâmpadas pararam de piscar. O policial encarava o rosto do assassino.
–Eu sei. Eu ouvi... Eu não sei o que ouvi. O que aconteceu aqui?
–Não importa mais. Mas você deveria pensar em queimar esse corpo, queimá-lo de verdade, queimá-lo até os ossos.
–Não é o protocolo. –afirmou a médica. –Não há parentes vivos, e o juiz precisa autorizar. Mas eu posso tentar.
–Tente com afinco! Pelo bem desta cidade.
–Vou tentar! E você? Encontrou o que estava procurando? Descobriu algo importante?
Wasser suspirou. Estava cansado. Mais do que cansado, parecia bastante preocupado.
–Descobri tudo!
Novamente na velha casa, agora com uma picareta nas mãos. Daquela vez, Wasser não entrou, apenas costeou o terreno longo e mergulhou em uma trilha estreita nos fundos da propriedade. Ele nem havia notado aquela passagem da primeira vez, mas sabia exatamente aonde ir agora. A trilha cortava a floresta por alguns quilômetros e se estendia até uma planície descampada extremamente longa e verde. A propriedade era muito maior do que ele havia percebido da primeira vez. Havia morros, riachos e até uma pequena ponte de madeira. Mais à frente, a marca de onde uma pedra fora arrancada da terra, anos antes.
O ar ali, no meio de todo aquele verde, parecia mais puro, tão puro que chegava a ferir as narinas. O frio era cortante, mais intenso e mais áspero que no restante da cidade. O gramado verde se estendia por muitos e muitos quilômetros, até onde os olhos conseguiam enxergar: uma paisagem bonita, meio nostálgica, quase paradisíaca. Mero engano. Ele podia sentir, bem ali: a fonte de todo o mal. Estava perto. A sensação era desagradável, desconfortável, como estar coberto de sangue em águas infestadas de tubarões.
Uma voz o chamou. Era uma voz grave e arranhada, que bem poderia ser o rosnado de algum animal selvagem. Isso se as palavras não fossem tão discerníveis.
–Ouça a minha voz, meu filho!
–Quem fala? –ele perguntou, surpreso, com sua voz esganiçada de adolescente. Em suas mãos, a velha bíblia, grande e pesada. –Quem está aí?
–Eu sou aquele que estava no começo. –respondeu a mesma voz, ainda mais ameaçadora. Parecia o som de um trovão. –Esta terra foi construída sobre os meus ossos.
–Senhor? –ele perguntou, emocionado. –Finalmente! Eu tenho clamado há tanto tempo!
–Eu estou aqui, agora. Eu sempre estive aqui. Venha a mim, meu filho!
Wasser começou a subir um morro longo e inclinado. Pelo caminho, deparou-se com uma rocha estranha e parcialmente enterrada no solo escuro que lembrava uma grande mão fechada. Antes, ele já havia passado por algo que lembrava, com uma semelhança incrível, um pé gigante com apenas um dedo fora da terra. Havia um joelho, um braço inteiro e até costelas.
–Deixe-me ensiná-lo!
-Eu não sou digno, senhor! Sou um pecador! Sou impuro! Impuro!
–Não chame de impuras as coisas que eu purifiquei! –respondeu a voz trovejante, e suas palavras tinham a força da revelação. –Não é este um tição arrancado do fogo?
Wasser finalmente chegou ao topo do morro. A floresta ressurgia naquele ponto e se estendia por vários quilômetros. Era mais densa e mais fechada a partir dali. E, do topo daquele monte esverdeado, ele podia avistar toda cidade: o centro, os prédios distantes, a maioria das fazendas.
–Eu tentei! –afirmou ele, com as mãos cheias de sangue. –Eu juro que tentei!
–Eu sei. Eu tenho visto tudo o que fizestes por mim. Eu o ouvi dos céus, e desci.
–Minhas mãos... Elas não são dignas.
–Tu és meu filho predileto. Nada há de errado com tuas mãos. Tuas ofertas, contudo, são falhas.
–Eu não entendo. Tu mesmo fizeste os mandamentos! Tu os fizestes!
–E o que dizem meus mandamentos sobre o sacrifício de bestas?
–Abolidos! Foram abolidos!
–E o que nos resta agora?
Ele examinou suas próprias mãos ensanguentadas.
–Um novo sacrifício.
–É chegada a hora!
Wasser a encontrou ali, bem no topo daquele morro alto: a fonte, a origem de todo aquele mal. Ele estava diante de um rosto gigante, um rosto esculpido em uma grande rocha escura. Assemelhava-se um pouco a uma daquelas cabeças da Ilha de Páscoa, mas não era obra de mãos humanas. Fora trabalhada pelo tempo, por eras e eras, mas nem por isso se tornava natural. E o formato, os detalhes, tudo era real demais.
Uma brisa gelada soprava do horizonte, cortava a pele como lâmina. Wasser encarou aqueles olhos de pedra. A coisa retribuiu o olhar. Ele já havia se deparado com coisas como aquela antes, mas nunca com uma tão grande nem tão completa. Aquele lugar era amaldiçoado. Gerações e gerações de traficantes de escravos, torturadores e assassinos. O mal estava se erguendo da terra, literalmente. Um mal muito antigo e muito poderoso. Mais do que isso, um mal que precisava ser destruído.
Wasser se aproximou. A coisa o ameaçou, ergueu mãos invisíveis em sua direção, o advertiu. Quando percebeu que não daria certo, tentou seduzi-lo, prometeu-lhe coisas grandiosas, coisas que não podia cumprir. Wasser ergueu a picareta e começou o trabalho: cada golpe contra a pedra ecoava acompanhado por um ruído estranho, um ruído que bem poderia ser o som de gemidos de dor, gritos que emergiam de algum lugar nas profundezas daquela terra antiga. Um líquido escuro e viscoso começou a escorrer daquela cabeça sem corpo. A coisa parecia ferida agora.
E Wasser continuou seu trabalho. Aquilo não resolveria muito no fim, ele sabia, mas precisava ser feito. Golpe após golpe, e o rosto foi se transformando em um pedaço amorfo e inofensivo de pedra. Muito cansado e pingando suor, Wasser contemplou o resultado final: um rosto de pedra furado como um queijo suíço. A coisa não perturbaria mais ninguém, não faria mais promessas que não podia cumprir, não ameaçaria mais aquela cidade. Pelo menos não tão cedo. Agora, definitivamente, seu trabalho ali estava concluído.
No caminho de volta, Wasser fez uma parada na velha casa dos Barbosas e, depois de esvaziar um latão de querosene, a incendiou. Agora era preciso esperar. A coisa monstruosa de madeira se contorceu ao fogo. As tábuas bufaram e gritaram, como se a casa verdadeiramente não quisesse morrer, mas não havia mais espaço para tanto sofrimento e tanta dor naquele lugar.
Da rua, bem longe das chamas, Wasser viu o espectro do dono da casa, do pequeno Dominique Barbosa, dissolver-se nas chamas avermelhadas, até só restarem seus ossos, depois suas cinzas, depois apenas suas lembranças. O garoto o observava com seus olhos frios, até que os olhos também foram consumidos pelo fogo. Então a casa explodiu e desmoronou em um último grito, e tudo estava terminado.
Capítulo 58
–Tudo bem, eu estou confuso. –afirmou o delegado. Estavam em sua sala na delegacia. –Por que não me explicam tudo do começo.
–Está no relatório. –afirmou a legista.
–Eu sei. –respondeu o delegado. –Eu li o relatório e continuo confuso.
–O nome real do assassino era Dominique Barbosa, filho de Yuri Barbosa. –afirmou Wasser. –Ele foi criado com o verdadeiro Jonathan Glander por alguns anos. Os dois estudaram juntos no mosteiro, como boa parte dos garotos da cidade na época. Eram bastante parecidos fisicamente. Retornaram para casa com cerca de dezesseis anos. Eram pessoas bastante isoladas e não tinham muitos conhecidos na cidade. Cerca de um ano depois, Dominique Barbosa matou Jonathan Glander para assumir sua identidade. Logo depois, ele matou sua própria meia-irmã. Ela foi a primeira vítima ritual, eu acredito.
–Então Dominique Barbosa, agora Jonathan Glander, se casou com Lorena, filha de um agricultor local. –continuou a legista. –Os dois tiveram dois filhos. O filho mais jovem era William. Quando, aos doze anos, Willian foi enviado para o mesmo mosteiro no qual o pai havia estudado, o falso Jonathan Glander matou sua mulher e sua filha.
–Tudo bem... –interveio o delegado. –Por que ele fez isso?
–Isso não é fácil de explicar. –admitiu a legista. –Os perfiladores acham que ele sofria de um tipo violento de paranoia, que nunca se sentia bem com quem era, então precisava trocar constantemente de identidade, quase como alguém troca de roupa para se sentir melhor.
–A mulher e a filha foram mais duas vítimas cerimoniais, ainda que o modus operandi ainda não estivesse completamente desenvolvido. –afirmou Wasser.
–Então o falso Jonathan Glander roubou mais uma identidade, a do padre Daniel Wolg. –concluiu a legista.
–Eu lembro do padre Wolg. –afirmou o delegado. –Eu tinha acabado passar no concurso para delegado quando ele desapareceu. A família o procurou por quase três meses depois que ele desapareceu, até descobrirem que o corpo na igreja era o dele.
–Mais que isso. –retrucou a legista. –A família chegou a contratar investigadores particulares para encontrar o padre Wolg. Mais ou menos dois meses depois do desaparecimento, os detetives trouxeram notícias sobre um padre chamado Daniel Wolg em uma cidade vizinha, mas, quando conseguiram localizá-lo, ele já havia desaparecido. Os detetives desistiram de procurar quando o corpo na igreja foi identificado. A descrição das testemunhas, de qualquer forma, não batia com a descrição do verdadeiro padre Wolg.
–Mas batiam com a descrição do assassino. –concluiu o delegado.
–Exato. –confirmou Wasser. –E ele não estava na região à toa, estava se preparando para mudar de identidade mais uma vez. A identidade definitiva para retornar a cidade sem ser notado. Ele deve ter interceptado, de alguma forma, a comunicação entre o abade do mosteiro e o novo professor contratado, o padre Saimon Becker. Saimon Becker era a vítima perfeita: não tinha família, nem amigos e morava muito longe para que alguém pudesse reconhecê-lo por aqui. Mas era um professor muito respeitado, e alguém realmente reconhecido por seus conhecimentos bíblicos. Em outras palavras, tudo o que Dominique Barbosa sempre quis ser. O verdadeiro padre Becker nunca chegou ao mosteiro.
–Algo ainda não ficou claro. –afirmou o delegado. –Como vocês descobriram o corpo do padre Becker antes mesmo de saber quem ele era.
A legista e o policial disfarçaram, o delegado percebeu.
–Sorte! –exclamou a mulher, por fim.
–Tudo bem. –disse o delegado. –Então o falso Saimon Becker foi transferido para esta cidade e, desde então, vinha atormentando seu filho. É isso?
–A ligação entre Willian e o pai era de sadismo. –afirmou a legista. –O pai controlava o garoto, e esse controle apenas aumentou durante os anos em que Willian viveu sobre o julgo do pai naquele mosteiro. Willian tinha problemas psíquicos reais. A freira morreu quando descobriu quem o padre Becker era de verdade. Mas a tortura de Willian continuou por muitos anos.
–E como um falso padre conseguiu enganar todos por tanto tempo? –perguntou o delegado.
–Dominique Barbosa era um homem inteligente. –afirmou a legista. –Um teste de QI feito quando ele estava na quarta série marcou cento e cinquenta pontos, bem acima dos outros colegas de escola, quase um gênio na verdade. Sua capacidade real estava em problemas de lógica matemática. Ele era ótimo nisso. Mas os professores na época avaliaram que o resultado do teste era algum erro, porque o garoto tinha problemas reais para distinguir realidade de imaginação e muitos já o consideravam um tanto desequilibrado. Na verdade, ele sofria de distúrbios psiquiátricos intensos desde pequeno, exatamente como o filho, mas manteve os sintomas sobre controle com muitos remédios por muitos e muitos anos. E não havia motivos para desconfianças porque as credenciais do padre Becker eram muito boas. Ninguém poderia imaginar que eram pessoas diferentes.
–No fim, Willian foi só mais uma vítima do pai? –perguntou o delegado.
–Uma das maiores vítimas. –respondeu Wasser. –Willian morria de medo do pai, e os problemas com a esquizofrenia não tratada não o deixavam raciocinar direito. Mas não acho que ele tenha realmente cometido algum crime. Ele apenas enterrava os corpos que o pai espalhava pela cidade. Aquela plantação de milho era um cemitério. Se dependesse do pai, os corpos seriam destruídos, queimados eu diria, mas Willian os protegia como podia, os escondia. Aquele casebre onde o corpo de Isabela foi encontrado era um dos locais de descarte do pai.
–E por que ele não se livrava dos corpos? –perguntou o delegado.
–Porque deixava o trabalho para o filho, como castigo, eu suponho. –respondeu Wasser. –Creio que os corpos deveriam ser queimados, segundo as ordens do pai. Mas William fingia que os queimava e os enterrava naquele campo. Encontramos alguns barracos e casebres abandonados pela cidade com sinal de fogo. Acho que eram os locais escolhidos pelo assassino para o ritual.
O delegado suspirou, cansado, e se acomodou sobre sua cadeira.
–Está feito! –disse ele. –Finalmente terminou. Estão de parabéns. E eu não sei como agradecê-lo por tudo, Wasser.
–Não foi nada.
Houve um instante de silêncio e boa dose de reflexão, então Wasser disse:
–Preciso falar a sós com você, Carlos, antes de voltar para casa.
–Tudo bem. –respondeu o delegado.
–Entendi. –afirmou a legista. –Vejo vocês lá fora.
A médica saiu.
–Quero realmente lhe agradecer por tudo! –afirmou o delegado. –A garota, Amanda, estaria morta se você não estivesse aqui.
–Vocês a salvaram, não eu.
–Eu sei, mas mesmo assim...
–E vocês pegaram o assassino, não eu.
–Ah, isso? –perguntou o delegado. –Nós ainda estamos tentando identificar o dono da arma que...
–Corta essa! –interveio Wasser. –Nós dois sabemos quem matou aquele desgraçado.
O delegado ficou mais sério.
–E o que você quer que eu faça a respeito?
–O que deve ser feito. Siga a lei.
–Eu conheço Marcos desde que éramos crianças! –esbravejou o delegado. –Ele é um bom homem, um bom pai!
–Eu acredito.
–E você acha justo prender um homem com Marcos por causa daquele miserável?
–Não estou preocupado com o que aconteceu, estou preocupado com o que pode acontecer.
–E o que pode acontecer? Acha que Marcos vai sair matando pessoas? Isso não faz sentido.
–Não sei o que pode acontecer. Se eu soubesse, não estaríamos tendo esta conversa. Mas estou preocupado. Realmente preocupado. Existem muitas formas de ódio neste mundo, mas nenhuma tão intensa e perigosa como o ódio sem causa, o ódio sem ninguém para odiar. Seu amigo é uma bola de neve, delegado.
Wasser se levantou.
–De qualquer forma, não está mais em minhas mãos. A responsabilidade agora é sua. Apenas sua.
–Eu assumo daqui. –respondeu o delegado. –Vou ficar de olho nele. E, mais uma vez, muito obrigado por tudo!
Wasser se despediu, apanhou seu casaco e partiu. Já estava no pátio da delegacia quando foi surpreendido pela legista.
–Então, está feito? –ela perguntou.
–Sim. –respondeu Wasser. –Acabou.
–Então, acho que não vamos mais nos ver, detetive.
–Na verdade, eu não sou detetive. Detetive é coisa de cinema, eu sou um investigador e...
–Eu sei. –respondeu a médica, e se aproximou perigosamente. –Mas detetive soa mais sensual.
A mulher se aproximou ainda mais. Seus corpos quase se tocaram. Wasser não se recordava da última vez em que estivera tão perto de uma mulher, ainda mais uma tão bonita.
–Bem, agora que oficialmente não somos mais parceiros, eu poderia lhe oferecer uma bebida, ou algo mais forte. Isso se não houver uma senhora Wasser.
A legista percebeu que mencionar uma esposa não fora uma boa ideia. Os olhos de Wasser, até então apenas tímidos, talvez um tanto nervosos, se encheram lembranças amargas e ele se afastou. Havia uma esposa, agora menos que um nome. Que os anjos pudessem protegê-la, já que ele não pôde.
A médica desistiu. O policial era um homem interessante, mas parecia ferido demais, amargurado demais, sombrio demais, como um sobrevivente de guerra. Wasser acenou e se afastou. Quando ele já estava um tanto longe, a médica ainda perguntou:
–Vamos nos ver novamente?
–Espero realmente que não. –respondeu o policial, e seguiu seu caminho.
A legista entendeu o que aquelas palavras significavam. Ele só voltaria para aquela cidade se houvesse mais desgraça, mais mortes. Definitivamente, não parecia uma boa ideia. O policial entrou em seu carro velho e barulhento e partiu. Havia apenas mais uma coisa a ser feita naquela cidade, então ele riria embora definitivamente.
Capítulo 59
A campainha da casa dos Hasse tocou. Margarete Hasse levou apenas alguns segundos para atender a porta. Wasser não demorou para perceber que a mulher estava bem melhor do que da última vez que ele a vira, mais ativa, mais viva, e havia até uma ponta de alegria. Ela estava reagindo.
–Oh, é bom ver você investigador. Entre, por favor!
Wasser obedeceu.
–Obrigado, senhora. Estou de partida e só queria me despedir.
–Isso é bom. Caroline está no jardim. Ela vai ficar bastante feliz em ver você. A última conversa que vocês tiveram fez bem a ela. Importa-se de conversar com ela uma última vez?
–Claro que não. Se a senhora me der licença.
Ao passar pela sala, Wasser deu de cara com o anfitrião, sentado em sua poltrona.
–Investigador. –cumprimentou Marcos Hasse.
Wasser respondeu com um aceno. O ar em volta do homem se contorcia e vibrava. Nada saía dele. Era como olhar para um buraco negro devorando tudo o que o cercava. Aquilo não poderia acabar bem, Wasser sabia.
Mais alguns passos, e ele chegou ao jardim colorido. Caroline Hasse estava ali, debaixo de uma figueira velha, sentada em um banco de madeira. A menina sorriu quando o viu.
–Olá, eu queria me despedir antes de partir.
–Eu sei. Ouvi você conversando com minha mãe.
Wasser se sentou no banco, ao lado da menina. Queria dizer algo, mas não sabia o quê, nunca fora um homem muito bom com palavras.
–Você estava certo. –afirmou a menina.
–Sobre o quê?
–A dor... Ela passou por alguns dias, depois que aquele homem morreu. Eu me senti aliviada, recompensada, honrada, como se Deus finalmente tivesse ouvido minhas preces. Então, pouco tempo depois, eu senti apenas uma sensação estranha de indiferença, de impotência, e percebi que a dor começou a voltar. Agora eu estou perdida e não sei mais o que fazer.
–O sofrimento é inevitável. Algo foi arrancado de você.
–Como viver com isso?
–Nós apenas vivemos.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo. Pequenos pássaros cantavam, pousados nas folhas amareladas das laranjeiras.
–Qual a coisa que você mais ama no mundo? –perguntou Wasser.
–Dançar. –respondeu a menina, espontaneamente. Um sorriso sincero surgiu em seus lábios. –Eu era muito boa, mas, depois que minha irmã morreu, eu parei. Não consigo mais nem pensar nisso.
–Por quê?
–Porque parece errado: eu dançando, me divertindo, enquanto todos sofrem.
–Prometa-me uma coisa. –pediu Wasser. –Prometa-me que vai voltar a dançar.
–Eu sei o que você vai dizer, vai dizer que minha irmã iria querer isso. Eu mesma tentei me convencer, mas não adiantou.
–Não, você não vai voltar a dançar por sua irmã. Vai fazer isso por você mesma, apenas por você. Sua irmã não vai mais voltar, Caroline. E você não pode viver como se ela ainda estivesse aqui. Então apenas siga em frente. Acha que pode fazer esse favor para mim?
–Acho que sim. –respondeu a menina. E era como se aquelas palavras tivessem arrancado algo de seus ombros, algo pesado. –Você foi muito legal comigo. Você atendeu meu pedido de ajuda. Não precisava ter feito isso. E não precisava ter vindo até aqui hoje.
–Eu teria ajudado de qualquer forma. Mas a verdade é que gosto de você. Você me lembra alguém, alguém que eu nunca mais verei.
Wasser puxou um pequeno retrato do bolso do casaco e o estendeu. A menina o apanhou: uma garota loira, muito bonita, de uns quinze anos. Era uma foto meio antiga.
–Minha filha. Sofia.
–Ela está...?
–Morta.
–Ela... Ela foi...?
Era uma pergunta difícil de fazer, mas Wasser entendeu.
–Assassinada.
–Você o pegou.
–O assassino? Só até onde ele podia ser pego.
A garota não conseguiu entender o que aquelas palavras significavam, por mais que tentasse, e resolveu não perguntar mais. Wasser teria explicado, se pudesse, mas era difícil. Afinal,como capturar alguém que é feito de poeira e ossos?
–Eu sinto muito. –afirmou a menina. Foi tudo o que conseguiu dizer.
–Eu também. O fato é que vocês são muito parecidas.
A menina examinou a foto atentamente e não pareceu muito convencida.
–Não a aparência. É mais o jeito: quietas, meio tímidas. E ela também possuía esse fogo dentro dela, essa vontade de fazer as pessoas felizes.
–Ela parecia uma menina legal.
–Exatamente como você. Você também é uma boa pessoa, uma pessoa decente. Merece ser feliz. Então seja feliz.
–Simples assim?
–Simples assim.
Wasser se ergueu.
–Bem, eu preciso ir. Foi um prazer conhecê-la.
A menina se levantou e o abraçou com força. Wasser retribuiu o abraço e chegou a se sentir feliz pela primeira vez em muitos anos. Mas era preciso seguir em frente.
–Adeus, senhorita Hasse.
–Adeus.
Wasser partiu. Antes de deixar o jardim da casa, ele ainda perguntou:
–Posso pedir um último favor?
–Claro que sim.
–Pode ficar de olho no seu velho para mim?
–Por quê?
–Lembra o que falei sobre ser preciso viver? Acho que ele não está conseguindo.
–Eu vou ficar de olho nele. Pode deixar comigo.
A menina era inteligente, esperta. Ele confiava nela mais do que em qualquer outra pessoa daquela cidade.
Wasser deixou a casa dos Hasses, embarcou em seu sedã e partiu. O carro cortou as ruas da cidade e mergulhou na solidão de mais uma estrada deserta. Quando o automóvel subiu um morro alto, Wasser observou a cidade pelo retrovisor: a luz do dia morria lentamente no horizonte. Parecia um bom presságio.