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O Visitante

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(Baseado em uma história de família)

A alegria do baile de formatura dissipou, por algumas horas, o temor que pairava sobre a pequenina cidade. Temiam a presença da noite e de tudo o que ela trazia consigo. Os boatos surgiam como cavaleiros a galope, como um turbilhão de lábios invisíveis anunciando as notícias alarmantes, cada vez mais intensas, cada vez mais frequentes. Falava-se sobre um cavalheiro de capa preta e chapéu que surgia na penumbra da noite e desaparecia sem deixar rastros; falava-se sobre moças arrebatadas misteriosamente em plena madrugada; falava-se sobre batidas à porta, tarde da noite, batidas leves e educadas, como um visitante que chega de algum lugar longínquo e busca abrigo, solitário, sem aviso prévio.

Dos poucos que ouviram as batidas e relataram o ocorrido, permaneceram apenas aqueles que não abriram suas portas. E os que abriram... Bem, estavam mortos. Uma morte aparentemente natural. Grotesca, porém natural. Mas os moradores da cidade, apesar da insistência da polícia, não acreditavam na existência de um maníaco, e sim em uma presença demoníaca que chegara há pouco de algum lugar sombrio e distante em busca de almas.

No galpão improvisado que funcionava como oratório da cidade, acontecera a reunião. Ainda de dia, pois à noite não ousavam sair. O prefeito, magro e pálido, com seu terno surrado e suas bochechas flácidas, conduzira a assembleia. Queria caçar o intruso. Queria matá-lo.

—Não! —Advertiu Lorena, no fundo do casebre.

A voz da bruxa velha parecia o estrondo de um trovão. A mulher caminhou alguns passos, aspirou o ar gelado como um cão farejando sua caça e encarou a pequena multidão inerte. O corpo flácido se contorcia em uma corcunda quase sobrenatural. Seus dedos eram finos e compridos, e suas unhas afiadas como facas. A máscara de pantera, que ela carregava como uma espécie de ornamento, formava uma segunda cabeça e exalava um odor amargo. Correntes presas ao pescoço badalavam a cada movimento.

A mulher vivia na floresta e poucas vezes se aventurava na cidade. Mal falava a língua ingênua dos homens brancos. E era muito velha. Tão velha que o habitante mais velho da cidade tinha em suas memórias de infância a mulher tão velha quanto era agora. Como era possível, ninguém sabia. Ela caminhou alguns passos e lançou ao ar uma nuvem negra de poeira, então completou:

—Esse é o pó que ele vem!

Quando os moradores perceberam que a nuvem negra era cinza de carvão, compreenderam-na. Sobre a atmosfera tranquila da cidade, pairava ainda o cheiro sufocante de enxofre. Fazia quase dez anos desde a explosão, mas o impacto ainda era gritante, tanto na água quanto no ar. A mina, agora deserta, fora construída sobre o sangue e o suor de trabalhadores inocentes, que sacrificaram sua saúde em busca de um futuro melhor, mas acabaram quase todos mortos pelo carvão, pela peste e pela ganância dos proprietários. O último acidente, uma década antes, ceifara a vida de dezenas deles. Quase todos na cidade haviam perdido amigos e parentes.

Mais do que isso, diziam os boatos que aparições estranhas atormentaram os mineiros nas semanas anteriores à explosão. Alguns alegaram ouvir vozes clamando por socorro, outros disseram ter visto sombras sem corpos. Um estudioso vindo da capital afirmara que tudo não passava de crendice de gente sem instrução, mas ele próprio foi visto abandonando as sombras da mina e correndo de volta para a segurança da cidade grande, apavorado como uma sardinha fugindo de uma barracuda. Os mineiros abriram galerias profundas debaixo da terra, cavaram muito, chegaram a lugares inexplorados, e muitas pessoas ainda se perguntavam o que aqueles homens teriam de fato encontrado lá embaixo. Mais do que isso, muitos conjecturavam que talvez a explosão não tenha sido acidental, que talvez os trabalhadores tenham se explodido propositalmente para evitar que algo pudesse sair das profundezas da terra. Mesmo assim, talvez, e apenas “talvez”, algo tenha escapado.

No galpão da cidade, a feiticeira bateu com seu cajado em um dos bancos, fazendo surgir uma sequência sutil de batidas leves e ligeiras. Parecia... Sim, parecia alguém batendo à porta. A pequena multidão permanecia calada. 

 

—Sua casa é seu refúgio. Nela você é intocável. Na rua, ele pega você e leva sua alma! Casa… refúgio…

 As correntes de metal badalaram violentamente quando a feiticeira deixou o galpão a passos rápidos. Os moradores estavam apavorados. Lorena conhecia segredos, segredos antigos e sombrios. A sabedoria dos velhos índios ainda corria em suas veias. Os moradores da cidade estavam realmente amedrontados agora.

 

Se para os homens e mulheres da cidade o perigo era real, para os jovens, tudo não passava de boatos e histórias sem sentido, contadas por moradores supersticiosos e apavorados. A preocupação dos mais velhos não iria atrapalhar a explosão de ritmos e passos do baile de formatura.

O rock estava em alta, também os vestidos coloridos rodados. As costeletas e as calças bocas-de-sino eram a última tendência. Mas Elvis era coisa do passado, a onda agora era aquela banda de rapazes ingleses de vozes finas, cabelos escorridos e roupas engraçadas. Os críticos sabiam que os coitados não tinham muito futuro, é verdade, mas mesmo assim todos dançavam com gosto.

Carina observou a lua cheia, que já pairava alto no céu. Através da janela do salão, ela admirou as luzes cintilantes das estrelas sonhadoras. Havia esperança e paixão no fulgor daqueles astros, tão grandes e, ao mesmo tempo, tão distantes. Ela observou a irmã, Helen, que deslizava pela pista do salão, em meio à pequena multidão de dançarinos descontraídos. Havia muita luz nela também.

 Helen era a beldade da cidade, uma garota alegre, ligeira, radiante. Sempre fora. E, quanto a si mesma, Carina reconhecia dentro de si algo que rompia a barreira da simples solidão. Por que era tão diferente das outras? Por que não conseguia ser simples como sua irmã? Ela própria sabia a resposta. Ainda se recordava do dia em que o irmão mais velho morrera naquela explosão. Era um rapaz bonito, de presença, e sempre a fazia sorrir.

—Ah, não! –gritou Helen. —Venha agora mesmo dançar! O que foi, Carina? Você está tão estranha hoje. Algum rapaz ofendeu você?

—Não.

—Você nem entrou na pista. Algo errado?

—As estrelas.

 

—Como?

—Olhe as estrelas. Elas estão diferentes hoje.

Helen observou o céu cintilante, mas não percebeu qualquer alteração. Afinal, estrelas eram apenas estrelas, e aquelas coisinhas delicadas que permaneceram bilhões de anos ardendo no espaço não iriam mudar de uma hora para outra. Helen analisou mais atentamente a face preocupada da irmã. Aquela expressão já estivera ali antes, e ela nem gostava de pensar a respeito   -O que foi? –voltou a perguntar, agora mais séria. –De verdade.

—Aquelas moças... —sussurrou Carina.

—As que desapareceram?

—Sim. O que aconteceu com elas?

—Não sei. Talvez tenham fugido da cidade. Todos ouviram falar, mas as notícias são confusas e exageradas. Apenas boatos. E você sabe, melhor do que eu, que ninguém quer passar o resto da vida nesta droga de cidade. As pessoas vão embora, simples assim.

—E quanto à Júlia? —perguntou Carina.

—Júlia fugiu com Denis. Ela nos contou que fugiria.

—Sim, mas ela não deu mais notícias. Simplesmente evaporou. Ela era nossa amiga, Helen, não desapareceria assim.

—O fato de ela não ter mandado notícia ainda não significa que… Sei lá o que as pessoas andam dizendo. Mas não faz sentido. Você sabe disso.

Carina suspirou profundamente e lançou um sorriso para irmã.

—Talvez você tenha razão. Vamos dançar um pouco!

—É assim que se fala!

 

À medida que a lua cheia escorregava pelo céu, acompanhada pelo frio inesperado da madrugada, o ritmo e os passos da festa se tornaram cada vez mais lentos, até que, finalmente, foram vencidos pelo cansaço. Os jovens abandonaram, um a um, o aconchego do baile, deixando o lugar mais deserto, mais frio e mais estranho. Foi nesse momento que Helen percebeu o rapaz sentado em um dos cantos do salão.

—Eu não acredito.

—O quê? —perguntou Carina.

—Veja quem está lá!

As duas irmãs caminharam ao encontro do rapaz. Os olhos dele eram pura tristeza, exibiam olheiras profundas. Suas roupas estavam amarrotadas, seu cabelo despenteado. Uma garrafa de cachaça pendia vazia em uma das mãos.

—Meu Deus, Denis! —exclamou Carina, assustada. —O que aconteceu?

—Júlia. —disse o rapaz, com voz rouca.

Helen sentiu um arrepio estranho percorrer sua espinha.

—Mas vocês não estavam preparados para fugir da cidade?

—Foi naquela mesma noite. Eu a esperei na velha ponte de madeira, mas ela não apareceu.

O silêncio cortou o ambiente por algum tempo.

—Eu o vi naquela noite. –disse o rapaz, mudando de assunto inesperadamente.

—Quem? –perguntou Carina.

Os olhos faiscantes do rapaz respondiam à pergunta mais claramente que qualquer palavra.

—Vocês vão para a casa agora? —perguntou ele, ao perceber que o salão estava quase vazio.

—Sim.

—Nesse caso, é preciso muito cuidado. Andem sem parar e não olhem para trás.

—Por que está dizendo isso? —indagou Helen, assustada.

Não houve resposta.

—Você não vai para a casa? —perguntou Carina.

—Não. Vou esperar por ele aqui. Talvez ele apareça.

Denis inclinou a cabeça e cochilou. Helen tentou arrancar alguma explicação do rapaz, mas foi em vão. As duas garotas partiram.

 

O nevoeiro agora cobria tudo, denso como um gigantesco lençol. A temperatura despencou. As chamas dos poucos lampiões que iluminavam o centro da cidade vacilavam com o efeito da brisa gelada. As ruas estavam desertas.

As garotas caminhavam rapidamente, de braços dados. Sua casa não ficava muito longe. Por alguns minutos, elas conseguiram esquecer a conversa estranha e se concentrar nos comentários sobre o baile. Chegaram a sorrir em alguns momentos. Então a lua se apagou no céu, desaparecendo atrás de uma nuvem passageira. E tudo começou.

 

Carina foi a primeira a sentir. Que sensação era aquela. Uma pontada de dor feriu seu ventre, e um gosto amargo surgiu em sua boca.

—O que foi? —perguntou Helen.

Subitamente, os cães da cidade explodiram em uma enxurrada de rosnados, uivos e ruídos estranhos. Alguns pareciam chorar. Uma revoada de pássaros se ergueu no céu, numerosos como nunca se vira naquela cidade. todos seguiam na mesma direção, como que fugindo.

—O que está acontecendo? —perguntou Helen, em pânico.

“Sim, o que está acontecendo?”, perguntou a irmã, a si mesma.  E o turbilhão de sensações lentamente assumiu uma forma real e assustadora.

—Vamos sair daqui! –sussurrou ela, enquanto puxava a irmã pelo braço.    

   

—Espere! –retrucou Helen. Acho que vi alguma coisa ali.

 

Pouco a pouco, uma figura sombria surgiu da névoa e assumiu contornos cada vez mais sólidos. Embora a visão fosse ofuscada pala densa camada branca, a silhueta sinistra visivelmente tomou a forma de um homem, um homem assustadoramente alto e magro. Trajava um longo casaco negro, e um chapéu enorme lhe encobria quase todo o rosto. Na verdade, ele nem parecia ter um rosto. Seus braços e suas pernas eram desproporcionalmente compridos e finos, como se alguém os tivesse esticado à força. Ele ergueu seu rosto sem olhos e deu o primeiro passo.

—Vamos agora! —grunhiu Carina.

Helen obedeceu, e as duas partiram em uma marcha frenética na direção de casa. Podiam, porém, ouvir os passos ligeiros e leves no cerne do nevoeiro. O sujeito as acompanhava a certa distância, parando quando elas paravam, acelerando quando elas aceleravam. Quando os passos no nevoeiro se tornaram realmente muito rápidos, as duas irmãs correram alucinadamente, descalçando os sapatos a muito custo. O homem também correu. Em meio a tudo aquilo, Helen olhou rapidamente para trás e não gostou do que viu. O jeito como aquele homem corria era grotesco: os braços quase se desprendiam do corpo, a cabeça ia e voltava de forma estranha. Era como olhar para um daqueles bonecos estranhos de postos de gasolina balançando ao vento.

As irmãs chegaram, enfim, à estreita estrada de terra que cortava a relva e levava ao pequeno sítio onde moravam. A cerca de madeira era um pouco alta, mas as duas a saltaram com a facilidade habitual. Correram, então, até a porta da casa e gritaram desesperadamente por ajuda. Apesar do alvoroço, a porta não se abriu. Carina se deu conta de que, para seus pais, elas ainda estavam na cama. Como a maior parte dos jovens da cidade, elas só compareceram ao baile porque fugiram de casa no meio da noite. E não era necessário muito esforço para compreender: aquela porta não se abriria em hipótese alguma.

Os cães que guardavam a casa correram alvoroçados em direção à cerca, avisando que o intruso estava ali. Eram cinco ao todo, gigantescos e ferozes, mas, por alguma razão, Carina sabia que os animais não deteriam aquele homem. Levadas pelo medo, as irmãs mergulharam no galinheiro, nos fundos do casarão. A ferocidade dos cachorros demonstrava a posição do invasor. As galinhas permaneciam mudas. Apesar do estrondo dos cães, as coitadinhas nem se moviam. Pareciam hipnotizadas. Não, pareciam amedrontadas.

De alguma forma, o invasor sabia exatamente onde encontrá-las. Através das frestas largas da parede de madeira, elas observaram quando o homem simplesmente caminhou até a porta do galinheiro e bateu, chamando por elas. As batidas eram suaves e educadas.

O homem parecia ainda mais alto e realmente muito mais magro agora, mais alto e mais magro do que parecia humanamente possível, muito mais. As garotas permaneceram imóveis. O suor encharcava seus corpos quentes. O intruso continuava a bater. A porta não estava travada. Mais algumas daquelas batidas, e ela se abriria. Só havia uma coisa a fazer. Carina se esgueirou silenciosamente pelo chão pegajoso do galinheiro e levou uma das mãos à porta.

—Não! –sussurrou Helen, puxando a irmã pelo vestido.

Carina pediu silêncio com um gesto, tomou fôlego e, em um movimento silencioso e muito rápido, fechou por completo a porta, cerrando-a, em seguida, com a pequena trava de madeira. Depois daquele pequeno gesto de coragem, escorregou novamente para perto da irmã. Juntas, elas perceberam quando o cavalheiro se deu por vencido e bateu em retirada. Ele poderia ter despedaçado aquela trava ridícula com um sopro, elas sabiam, mas não o fez. Era um homem espantosamente educado.

A temperatura subiu vários graus de forma súbita. O nevoeiro se desfez como que por milagre. Agora a luz brilhante da lua revelava a cena assustadora: os cães mergulhavam ferozmente ao encontro do invasor e passavam pelo homem como se ele não existisse. O corpo magro e alto, banhado pela claridade da noite, parecia transparente. 

O sujeito acenou com o chapéu educadamente, despedindo-se das moças, e se lançou, com passos leves e elegantes, ao encontro da lua cheia, que agora quase tocava o horizonte.

 

 

Fim!

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